IEDI na Imprensa - Desalavancagem do setor privado
Valor Econômico
Felipe Rezende
Em meio à turbulenta crise política do governo atual, a economia brasileira sofre uma das piores crises da sua história. Segundo dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Produto Interno Bruto (PIB) per capita brasileiro acumula queda de 9,1% de 2014 a 2016. O desemprego bateu novo recorde e ultrapassou os 13 milhões.
O setor privado - e as empresas não financeiras em particular - estão em plena fase de redução no endividamento. Entretanto, políticas econômicas equivocadas adotadas tanto pelo governo anterior quanto o atual negligenciaram dados fundamentais sobre o balanço do setor privado e contribuíram tanto para as causas quanto para o aprofundamento da crise que assola o país.
Para se entender o problema do endividamento das empresas é necessário analisar a capacidade de geração de caixa e a evolução das despesas financeiras líquidas. Isto porque a validação de dívidas assumidas por agentes econômicos está intrinsicamente associada aos retornos gerados pelos ativos adquiridos de forma que permitam honrar compromissos financeiros ao mesmo tempo que remunerem o investidor. Nesse sentido é fundamental observar balanços financeiros e indicadores de fragilidade financeira visando identificar o surgimento de práticas adotadas por agentes que podem se tornar insustentáveis face a cenários adversos.
Governo insiste em reformas que terão um baixo impacto sobre a redução da dívida privada e criação de empregos
A economia brasileira passou por um período de expectativas otimistas, alimentadas pelo crescimento econômico, expansão dos lucros e do crédito, que contribuíram para a criação de renda e emprego, a qual influenciou o comportamento dos agentes econômicos de tal forma que reduziram as margens de segurança. Isto ocorreu por meio da contratação de dívidas para a aplicação em ativos e consumo, aumentando, desta forma, a exposição ao risco e a fragilidade financeira.
Por exemplo, os dados do BIS (Bank for International Settlements) mostram uma brutal elevação do crédito total das empresas e famílias, que passou de US$ 345 bilhões em 2004 para US$ 1,5 trilhão em 2014. Isto é, um crescimento de 345% no período. O endividamento das empresas e famílias como proporção do PIB subiu de 48% do PIB em dezembro de 2005 para 71% do PIB em 2015.
Embora entre 2005 e 2010 o lucro líquido das empresas de capital aberto aumentou 162% em termos reais, a economia brasileira nos últimos anos experimentou aumentos significativos da fragilidade financeira tanto no nível microeconômico, através da deterioração dos balanços, quanto no nível macroeconômico.
Por exemplo, indicadores de rentabilidade, cobertura de juros e alavancagem permitem uma mensuração mais adequada da fragilidade financeira das empresas.
Ao longo da última década temos, assim, dois grandes movimentos. De um lado, houve um forte aumento do endividamento das empresas. Segundo os dados do Banco Central, a dívida líquida das empresas de capital aberto aumentou, em termos reais, 225% entre 2005 e 2015 enquanto que o Ebitda (ganhos antes de juros, impostos, depreciação e amortização) cresceu 10% durante o mesmo período.
Por outro lado, o lucro líquido sofreu uma queda de 89% entre 2010 e 2016. Essa queda do lucro líquido afetou diretamente a rentabilidade das empresas - medida através do retorno sobre o patrimônio líquido - que despencou 82% entre 2010 e 2016. Os dados do BC mostram que a mediana da rentabilidade das empresas de capital aberto (medida pela razão entre o lucro líquido e patrimônio líquido médio) apresentou uma queda de 86% entre 2010-2016.
Já o índice de cobertura de juros - obtido pelo quociente entre Ebitda e despesa financeira bruta - sofreu uma queda de 53% no mesmo período, enquanto que a mediana da dívida líquida/Ebitda das empresas apresentou uma elevação de 93% entre 2010-2016.
Isto impactou não somente a geração de valor das empresas a seus acionistas mas também a geração operacional de caixa das empresas, comprometendo a capacidade de realizar investimentos através de lucros retidos. Essa queda foi particularmente importante para a indústria. Os dados do IEDI mostram que o retorno sobre o Patrimônio Líquido da indústria foi de 14,2% em 2010, 2,8% em 2013, e desabou para -10,2% em 2015. Já para o setor de serviços e varejo o retorno sobre o Patrimônio Líquido em 2015 foi de 1,5% e 1,7% respectivamente.
A combinação perversa entre queda da rentabilidade, menor disponibilidade de recursos internos e deterioração de balanços foi decisiva para a forte e sucessiva contração na formação bruta de capital fixo que se iniciou em 2014, quando caiu 4,5% e 14,1% em 2015. Esta crise foi aprofundada pela forte contração fiscal em 2015, que segundo os dados do governo federal gerou um impulso fiscal contracionista igual a 1,2% do PIB, que, somados ao choque de custos, incerteza política e um forte aperto monetário em plena desalavancagem do setor privado, amplificaram a recessão e adormeceram o espírito animal do empresário.
Contudo, tais políticas foram na contramão das adotadas nas economias que sofreram as consequências do endividamento do setor privado. Apesar do argumento bastante difundido de que o ajuste fiscal fosse capaz de recuperar a confiança e os investimentos privados - e com isso, gerar uma elevação das receitas - a realidade mostra quedas recordes na arrecadação do governo federal em função da deterioração da atividade econômica. Ou seja, o ajuste fiscal e o choque de juros foram, pasmem, contracionistas.
Além disso, a elevada percepção de risco das instituições financeiras juntamente com a deterioração da qualidade dos ativos - e a inadimplência em alta - contribuíram para que os bancos públicos e privados tivessem um menor apetite para oferecer crédito, gerando um "credit crunch" e a elevação dos spreads bancários. Embora não haja uma crise financeira, a combinação destes fatores faz com que o canal de crédito permaneça congestionado.
Em suma, em meio à grave crise institucional o governo insiste em reformas que terão um pequeno impacto sobre a desalavancagem do setor privado e a criação de empregos. O país caminha, assim, para mais uma década perdida.
Felipe Rezende é professor associado do Bard College e Levy Economics Institute, em Nova York.