IEDI na Imprensa - A difícil recuperação do terreno perdido
Conjuntura Econômica
Com a produtividade despencando, a indústria de transformação se distancia cada vez mais das tecnologias mais avançadas, encolhendo de tamanho e perdendo mercados
Chico Santos
A transição política que se concretiza em janeiro de 2019 alcança a indústria de transformação brasileira, historicamente o setor pelo lado da oferta que oferece os empregos, na média, mais bem remunerados, em um contexto difícil e sem saídas fáceis à vista. O Brasil mantém-se como uma das maiores economias industriais do mundo, ocupando no final de 2017 a nona colocação – era sexto em 2014, antes da recessão –-, no ranking dos maiores por valor agregado (VA) da sua indústria de transformação à produção industrial do planeta, segundo os dados da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial (Unido).
Ainda que não seja uma posição desprezível, conforme ressalta o economista Rafael Cagnin, do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI), é pouco, se os dados forem examina dos mais atentamente, para um país de 209 milhões de habitantes que optou pela indústria como principal arma para superar o subdesenvolvimento desde 9 de abril de 1941, quando foi inaugurada a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN).
A série histórica da própria Unido é a primeira a mostrar que há mais motivos para preocupações do que para regozijo. Em 1994, quando o país emergiu de uma década e meia de forte desequilíbrio macroeconômico, sua participação no VA industrial do planeta era de 3,4%.
Desde então, o Brasil transitou permanentemente na pista de descida em uma hipotética rodovia serrana, chegando a 2014 com 2,5% e mergulhando de vez com a crise recente, tendo fechado 2017 com 2% da produção de manufaturas global.
Houve queda em relação a 2016, apesar de o IBGE ter constatado crescimento de 2,2% da indústria de transformação no plano doméstico, primeiro número positivo desde 2014, porque houve também reação no plano mundial e a indústria de transformação cresceu 3,5%, melhor resultado em seis anos. Este ano os números seguem positivos, 2,9% até agosto, último dado do IBGE antes do fechamento desta edição, mas também com sinal de anemia e muito dependente da produção de veículos que cresceu 17,4% em 2017 e 18,4% até agosto de 2018.
“Não basta a indústria mostrar algum crescimento. Os números ainda seguem muito baixos”, lamenta com algum desalento Silvia Matos, coordenadora do Boletim Macro do FGV IBRE. A economista ressalta que as exportações para a Argentina vinham desempenhando importante papel na recuperação da indústria automobilística, mas essa ajuda tende a passar por um forte eclipse em decorrência da crise em que mergulhou a economia do país vizinho.
Os dados da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) de setembro mostraram uma violenta queda nas exportações, alcançando 29,7% na comparação com agosto e de 34,5% sobre setembro do ano passado, contaminando a produção total que caiu 23,5% e 6,3% nas duas formas de comparação, respectivamente. Embora no acumulado do ano a produção ainda estivesse positiva em 10,5%, as exportações já apresentavam queda de 8% em nove meses, de acordo com a entidade.
Quando se retira a lupa do comparativo internacional e a coloca nos números domésticos, a situação segue desfavorável para a indústria de transformação. Segundo os dados das Contas Nacionais do IBGE, a participação do setor na composição do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro como um todo vem mostrando trajetória bastante parecida com aquela que se constata ao medir sua relevância na indústria global.
Em 1995 o peso total da indústria de transformação na composição do PIB brasileiro era de 16,8%, vindo da borrasca de uma década de planos de estabilização econômica frustrados até o sucesso do Plano Real em 1994. Em 2017 essa participação fechou em 11,8%. Retomando a analogia da estrada serrana usada no exame dos dados da Unido, a diferença aqui é que a pista apresentou alguns pontos de aclive ao longo do trajeto, chegando ao pico de 17,8% em 2004.
Paralelamente, os serviços, historicamente no país relacionados a empregos menos satisfatórios do ponto de vista financeiro, tomaram a pista de subida, também com alguns declives pontuais ao longo do percurso. De uma participação no PIB que chegava a 67,2% em 1995 eles passaram a responder por 73,2% de toda a atividade econômica do país em 2017.
Em relação aos números da indústria, o IBGE não informa o comparativo de pesos para aquém de 1995 em decorrência de mudanças metodológicas ocorridas ao longo do período. Mas a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), no seu Panorama da Indústria de Transformação Brasileira que teve em agosto deste ano sua 16 a atualização, traz uma série histórica desde 1947, com base em metodologia de harmonização dos dados desenvolvida pelos economistas Regis Bonelli e Samuel Pessôa, ambos do FGV IBRE (Bonelli faleceu em dezembro de 2017).
Na série, é possível constatar que a participação atual da indústria no PIB é inferior aos 12,1% que ela detinha em 1947 e dez pontos percentuais abaixo do pico dessa participação registrado em 1986. Ainda de acordo com o documento da Fiesp, com base em dados do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), a participação do setor manufatureiro no total de empregos formais gerados pela economia do país despencou de 27,1% naquele 1986 para 15,5% no ano passado.
Outro indicador claro da anemia que acomete a produção industrial brasileira, mesmo anteriormente à recessão de 2015 e 2016 (o PIB encolheu 3,5% em cada um desses anos), é o levantamento referente à situação atual da produção em cada um dos ramos que compõem a indústria de transformação segundo a Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE), comparativamente ao pico de produção alcançado por cada um desses ramos ao longo do tempo.
Os dados do IBGE mostram que dos 25 ramos, apenas o de papel e celulose, fortemente influenciado pela celulose que é uma commodity internacional, estava no seu pico de produção em agosto deste ano, com defasagem zero, consequentemente. A indústria de transformação, mesmo com a modesta recuperação que vem apresentando desde o ano passado, ainda amargava em agosto uma defasagem de 16,2% em relação ao pico de produção alcançado em março de 2011.
A produção de aparelhos de informática, eletrônicos e ópticos, na qual se incluem os telefones celulares, por exemplo, a defasagem atingia estratosféricos 49,9% em relação ao pico de dezembro de 2007. Mesmo o segmento de veículos automotores, que tem sido o carro-chefe da recuperação recente, ainda carregava um déficit de produção de 30,2% na comparação com o recorde registrado em julho de 2011, número muito próximo à defasagem de 30,8% apresentada pela indústria de máquinas e equipamentos que teve seu pico em setembro de 2008.
Esses números, que se refletem no baixo nível de utilização da capacidade instalada (Nuci) – segundo a Sondagem da Indústria de Transformação do FGV IBRE, o Nuci fechou o mês de setembro em 76,9% na série livre de efeitos sazonais –, corroboram a avaliação de Silvia, coordenadora do Boletim Macro IBRE, de que no curto e médio prazo não é difícil conseguir uma recuperação da atividade industrial.
A ociosidade constatada, basicamente, dispensa novos investimentos para impulsionar essa recuperação imediata, mas, de acordo com Silvia, esconde o problema mais grave: como sustentar essa recuperação no longo prazo, fazendo simultaneamente os investimentos necessários a que ela venha acompanhada de uma forte modernização tecnológica da maior parte do parque industrial para que ele supere as barreiras da baixa produtividade e da baixa competitividade internacional, requisitos sem os quais essa indústria dificilmente dará o retorno que dela se espera?
Apesar de destacar a resiliência que a economia brasileira vem apresentando, mesmo em cenário desfavorável de conjuntura política, desestimulando o apetite investidor das empresas e em um quadro de forte restrição fiscal, tornando praticamente nula a participação dos governos em todos os níveis no esforço de recuperação, a economista demonstra pouco otimismo quanto ao futuro mais longo. Silvia ressalta que não basta haver uma boa equipe econômica, preocupada com as reformas necessárias ao crescimento mais equilibrado da economia. “É necessário o convencimento da classe política”, algo que ela não enxerga com muita clareza no horizonte próximo.
Também André Macedo, gerente da Coordenação de Indústria do IBGE, responsável pela Pesquisa Industrial Mensal – Produção Física (PIM-PF) do órgão estatístico oficial do país, está pouco otimista com os números que o setor vem apresentando este ano. “De uma forma geral, a indústria não caminha como se esperava desde o final de 2017”, avaliou. Com a indústria de transformação tendo fechado o ano passado com crescimento de 2,2% e em curva ascendente, esperava-se uma continuidade dessa trajetória, o que não ocorreu, apesar de no acumulado até agosto a alta ser de 2,9%.
Até abril, rememora o economista do IBGE, o crescimento vinha dentro do esperado, com a indústria como um todo crescendo 4,5% no acumulado, mas veio maio e a greve dos caminhoneiros e o sinal se inverteu. Em agosto a indústria amargava o segundo mês consecutivo de queda, algo que não ocorria desde o final de 2015.
Para Macedo, o quadro de anemia para muito além da greve de maio demonstrava que a doença não decorria apenas da virtual paralisação dos transportes do país naquele mês, mas revelava uma renovação do quadro agudo de incerteza que parecia ter sido superado em 2017. Claro que a disputa eleitoral que se encerrou em outubro tinha grande dose de responsabilidade.
Mas ele destacou outros fatores relevantes que vinham impactando a fraqueza nas decisões de investimentos e no consumo das famílias. O principal é o mercado de trabalho, com 12,7 milhões de desempregados e a taxa de desemprego recuando de forma muito lenta, com forte presença do trabalho por conta própria e recorde no número de desalentados que fechou agosto, último trimestre da Pnad Contínua do IBGE conhecido até o fechamento desta reportagem no número recorde de 4,8 milhões de pessoas, repetindo o número de julho. E do lado externo, a crise argentina já mencionada por Silvia.
Como resultado, os setores mais relevantes da indústria do ponto de vista da agregação de valor e da indicação do aumento dos investimentos, bens de consumo duráveis e bens de capital, eram os que apresentavam maior defasagem em relação aos picos de produção, respectivamente, 22,6% e 31,7%. Falta de crédito e de confiança são as respectivas sinalizações. Os bens intermediários estavam 14,1% defasados em agosto e os bens de consumo semi e não duráveis, aqueles que estão mais associados às despesas do dia a dia, tinham defasagem menor, 8,9%, ainda assim, sinalizando aperto de cinto por parte das famílias.
A batalha da produtividade
Há longo tempo debruçado sobre a problemática vital da produtividade na economia brasileira, o economista Fernando Veloso, em parceria com Fernando de Holanda Barbosa Filho, ambos pesquisadores do FGV IBRE, mostra que os resultados são péssimos para a economia como um todo e piores ainda para a indústria. “Desde meados dos anos 1990 a produtividade do trabalho na indústria é negativa. Caiu muito na recessão de 2015 e 2016, mas aí recuperou mais rápido do que o geral. Mas a perda ao longo de mais de 20 anos é atípica”, pondera, ressaltando que são dados restritos à indústria de transformação, ou seja, ao parque manufatureiro do país.
Os dados demonstram de forma preocupante que de 1996 a 2017, enquanto a produtividade da economia cresceu magro 1%, na indústria de transformação o que aconteceu foi uma perda de 0,5%. Em um corte de 2002 a 2009, enquanto a produtividade geral cresceu 1,7%, a da indústria de transformação caiu 0,3%. Apenas no corte de 2009 a 2017 o desempenho da indústria foi positivo, em escasso 0,8%, mesmo assim, abaixo do crescimento geral que foi de 1,1%.
Quando se observa o período recente, marcado pela maior recessão da história econômica do país, constata-se que o fundo do poço da produtividade industrial foi uma queda de 5,5% no primeiro trimestre de 2015. Na economia como um todo, o movimento foi mais suave e o vale, de menos 2,7%, foi registrado no primeiro trimestre de 2016.
Quando veio a recuperação, o impulso sobre a produtividade industrial foi mais vigoroso, chegando a uma alta de 3% no segundo trimestre de 2017 e fechando o segundo trimestre deste ano com alta de 0,5%, enquanto na economia geral o melhor resultado foi um crescimento de 1,1% no quarto trimestre de 2017 seguido de novo recuo que resultou em queda de 0,1% no segundo trimestre de 2018.
Veloso cita Regis Bonelli, falecido em dezembro de 2017, um dos maiores estudiosos da questão da produtividade no Brasil, para ilustrar sua fala. Em trabalho apresentado em fevereiro de 2017 em seminário na instituição carioca de pesquisas e estudos econômicos Casa das Garças (em homenagem aos 75 anos do economista Edmar Bacha), intitulado “Contabilizando o Futuro: o Brasil na Armadilha do Lento Crescimento”, Bonelli mostrou a estreita associação entre os solavancos da economia brasileira desde a década de 1980 e a perda da produtividade.
De acordo com o estudo, enquanto de 1950 a 1980, quando a economia brasileira cresceu a uma média de 7,4% ao ano, a produtividade cresceu 4,2% ao ano, respondendo por 57% do aumento do PIB, de 1980 a 2016, quando a taxa de crescimento do PIB desabou para 2,2% ao ano, a contribuição da produtividade do trabalho (na economia como um todo), que cresceu no período escasso 0,6%, contribuiu com apenas 27% da taxa de crescimento.
Veloso cita também os trabalhos do economista turco Dani Rodrik (radicado nos Estados Unidos), um dos principais estudiosos dos efeitos da produtividade sobre o crescimento das economias emergentes. Uma das teses de Rodrik é a dos efeitos “desindustrialização prematura” sobre economias emergentes como a brasileira.
Ele demonstra que enquanto nos países ricos, como Estados Unidos, Japão e Alemanha, a redução do setor industrial, e o consequente aumento da participação dos serviços na composição do PIB, só ocorreu depois que o aumento da produtividade na indústria colocou esses países em um nível elevado de renda, no qual os serviços, associados a inovações, passaram a ser de alta produtividade e também geradores de empregos de alta renda.
No Brasil e em outras economias de características semelhantes, que precisavam de um aumento da produtividade industrial mais acelerado do que nos países ricos, como modo de recuperar a defasagem de renda existente entre os dois grupos, Rodrik aponta que a perda do vigor industrial em favor do crescimento dos serviços funciona negativamente, uma vez que a maioria dos empregos no setor de serviços ainda é de baixa exigência de qualificação e, consequentemente, menos produtiva, resultando em crescimento anêmico do PIB e contribuindo para o aumento do fosso entre emergentes e desenvolvidos.
O exemplo pelo lado positivo mais notório seria o chinês. Com uma estratégia de desenvolvimento industrial voltada para a exportação, especialmente nas três primeiras décadas desse processo, a China beneficiou-se do aumento da produtividade industrial necessário à competitividade global, deixando para trás outras economias, como a brasileira. Como os números da produtividade geral confirmam, Veloso destaca que no Brasil a produtividade dos serviços cresceu mais do que a da indústria nas últimas décadas, algo que ele também classifica como “atípico”, com exceção de segmentos clássicos de alta tecnologia, como osserviços financeiro e o de tecnologia da informação.
Foi um período, pontua o pesquisador, em que a demanda do setor de serviços reduziu a taxa de desemprego e pressionou os salários que aumentaram acima do crescimento da produtividade. Já a indústria, com a produtividade em baixa, perdeu competitividade, sendo positiva essa recuperação recente. Mas Veloso adverte que o fôlego industrial está refluindo novamente. “Muito difícil de engrenar. Por quê? Porque depende de investimento e investimento depende de confiança”, avalia.
Para ele, a crise fiscal é um dos combustíveis mais eficientes da falta de confiança. Conjunturalmente, a greve dos caminhoneiros trouxe problemas que, mesmo passado aquele momento, deixaram sequelas, uma vez que as reações do governo e do Congresso Nacional teriam sido precipitadas. “O tabelamento (dos fretes) descontentou o mercado e o subsídio ao diesel agravou o problema fiscal, criando uma despesa de R$ 9,5 bilhões somente até 31 de dezembro deste ano.”
Veloso ressalta que ainda pesa sobre os agentes econômicos a incerteza sobre o que será feito desse subsídio a partir de janeiro, mesmo que sob um novo governo. O resultado, disse, foi que se adicionou ingrediente ao caldeirão fervente das incertezas, comprovado pelo fato de o indicador de incerteza da economia, apurado pelo FGV IBRE, ter subido a um nível mais alto do que estava em 2002, na época da primeira eleição do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Para o economista do FGV IBRE, independentemente de quem tome posse no Palácio do Planalto no dia 1 o de janeiro, enquanto persistirem as indefinições quanto ao problema fiscal e quanto ao ambiente de negócios – aí incluídos burocracia, ineficiência tributária e infraestrutura ruim, entre outros – elas irão afetar as decisões de investimentos, especialmente na indústria.
“O investimento em uma indústria é irreversível”, destaca. Alinhado ao pensamento liberal, Veloso entende que a convergência da produtividade da indústria depende, entre outros fatores, de abertura econômica e de investimento em modernização e tecnologia, sendo este segundo ponto uma unanimidade, seja qual for a corrente de pensamento do analista. Para ele, o câmbio não é um fator decisivo nessa recuperação.
Sem resposta
A economista Lia Valls Pereira, pesquisadora do FGV IBRE na área de comércio exterior, não se mostra muito otimista, dadas as evidências recentes, de que a saída pela via das exportações venha a ser uma solução para a retomada do crescimento industrial brasileiro em ritmo sustentável. Ela apresentou uma tabela, com dados de janeiro a setembro desde 1999, segundo os quais a participação dos produtos manufaturados no valor total das exportações do país vem caindo consistentemente.
“Se você olha os dados, a participação dos manufaturados nas exportações para o período, de 35%, foi a menor desde 1980”, lamentou. Em 1999 a participação dos manufaturados para o período era de 56% e no ano 2000, de 58%. Dali em diante a queda foi praticamente contínua, caindo abaixo da casa dos 50% em 2008 (47%) e abaixo dos 40% em 2011 (36%) para não mais retornar.
A pesquisadora ressaltou que a participação dos automóveis, cujas exportações cresceram muito nos últimos quatro anos como reação à crise, é muito grande no grupo dos manufaturados e que a Argentina, mergulhada em uma crise sem horizonte à vista, é um cliente largamente majoritário da indústria automobilística brasileira, tendo respondido por 77,4% das exportações do setor de janeiro a setembro deste ano.
Enquanto isso, o Chile respondeu por 4%, o Uruguai, por 2% e o México, outro parceiro importante, mas na descendente no que se refere às importações de veículos brasileiros, fechou setembro com 7,8% das compras totais. Lia não acredita que os recentes acordos firmados com outros vizinhos, como Colômbia e Peru, sejam suficientes para cobrir o espaço deixado pela Argentina, ressaltando que se trata de economias bem menores e que o acordo brasileiro com a Argentina inclui compromissos de compras bilaterais.
Descontada a posição de liderança dos veículos, partes e peças, a economista avalia que, ao menos até agora, as possibilidades de crescimento por outros produtos têm sido limitadas. Os aviões e turbinas são importantes, mas não sustentam, plataformas são exportações apenas contábeis, destinadas ao mercado externo e laminados dependem da evolução das tratativas com os Estados Unidos. Outros itens importantes são óleos combustíveis e máquinas.
“A competitividade não tem mudado. Não têm entrado novos produtos. Este é o desafio das exportações”, sentencia a analista, ressaltando que “fazer acordos não adianta se você não é competitivo”. Para Lia, o investimento direto estrangeiro pode ser um fator de aumento das exportações, mas ela lembra que historicamente as grandes empresas multinacionais têm vindo para o país mais de olho no mercado doméstico do que na expectativa de construírem aqui plataformas globais de comércio.
Impactos e riscos
Para Rafael Cagnin, do IEDI, o primeiro ponto a ser destacado no debate sobre o futuro da indústria a partir de 2019 é que a “economia brasileira e mundial vem navegando sobre águas da imprevisibilidade desde a crise internacional de 2008, enfrentando altos e baixos e com respostas protecionistas que podem alterar significativamente as regras do jogo”. Dito isso, ele ressalta como de importância fundamental voltar as atenções para as “profundas transformações tecnológicas” que a indústria está passando e continuará a passar nos próximos anos.
Essas mudanças têm como foco a economia digital e suas ramificações industriais, como a indústria 4.0, big data, inteligência artificial e outros processos inovadores em curso. Cagnin avalia que, caso os países emergentes não consigam acompanhar esse processo, como a China vem procurando fazer, é possível que se esteja começando a assistir a um retorno da concentração industrial nos chamados países centrais.
Para o economista do IEDI, há estratégias claras em busca desse retorno, sendo as mais evidentes as da Alemanha, com a indústria 4.0 sendo uma estratégia para tornar o país o fornecedor estratégico de máquinas e equipamentos para o mundo, e dos Estados Unidos, voltados para uma aproximação dos laboratórios de pesquisa com o chão de fábrica de modo a transformar a liderança que ainda detêm em inovação tecnológi ca em geração de empregos industriais de qualidade dentro do país.
Cagnin ressalta que ao longo das últimas décadas a participação da indústria na economia mundial não caiu, mas se deslocou, graças à estratégia chinesa de manter a paridade da sua moeda e atrair fábricas de outras regiões do mundo para seu território. O que está acontecendo agora, na sua avaliação, é que Estados Unidos e Alemanha estão preferindo trocar empresas menores em seus territórios pela estratégia de montar megafábricas na China.
Para o especialista, há outros fatores importantes no processo de desindustrialização em economias como a brasileira, como o aumento da renda em outros segmentos e a terceirização de serviços que antes estavam embutidos na atividade industrial, esta, uma tendência que veio para ficar. Mas o que de mais importante que ele está vendo acontecer é essa corrida a partir da tecnologia, envolvendo as economias centrais de um lado e as estratégias asiáticas como reação.
E como o Brasil conseguirá sua inserção neste tabuleiro? “O ambiente é de areia movediça, mas há espaço”, responde Cagnin, ressaltando que as novas tecnologias são mais abertas, havendo espaço para a inserção de vários países, mesmo na indústria 4.0. O economista do IEDI ressalta que o Brasil tem competências em áreas como a de novos materiais e em biotecnologia, sendo possível encontrar um caminho. “Mas o ambiente traz incertezas muito grandes e nós podemos também perder o bonde que passa”, adverte.
Cagnin acha que nada disso que está acontecendo no mundo parece enraizado no debate atualmente em curso no Brasil que, na sua avaliação, está estacionado em torno de reformas, importantes, mas que podem tornar-se pouco relevantes no novo ambiente que está sendo gestado. Ele cita como exemplo o debate sobre a criação aqui de um imposto sobre valor agregado (IVA) para aumentar a eficiência tributária. Se gundo Cagnin, nas economias mais desenvolvidas o debate já é em torno de uma alternativa a esse mesmo IVA que estaria sendo incapaz de captar determinadas agregações de valor. “Estamos sempre correndo atrás de um processo capitaneado pelos países centrais”, lamenta.
O economista Fernando Sarti, professor da Unicamp e pesquisador do Núcleo de Economia Industrial e da Tecnologia (Neit) da universidade, tem uma avaliação parecida com a de Cagnin no que diz respeito ao cenário internacional. “Há uma revolução tecnológica em pleno processo, a quarta revolução industrial e nós ainda não internalizamos nem a terceira. Isso preocupa muito”, avalia, acrescentando que não se trata de alguma perspectiva distante: “Isso vai acontecer nos próximos dois a três anos”.
Paralelamente a essa pressão tecnológica, Sarti vê, ainda nos limites da indústria convencional, a “fábrica asiática colocando preços e escala em um patamar absurdo” e acrescentando uma pressão imediata que já vem acontecendo há mais de uma década. “A China nos anos 1990 produzia um milhão de veículos por ano, hoje produz 30 milhões”, exemplifica, lembrando que no mesmo intervalo de tempo o Brasil apenas dobrou sua capacidade, da casa dos dois milhões para a dos quatro milhões de veículos anuais e que mesmo assim o setor funciona há vários anos com elevada capacidade ociosa, tendo descido a perto de 50% de uso dessa capacidade.
Tudo isso, na avaliação do economista da Unicamp, coloca o setor industrial de países como o Brasil na dependência de fatores que ele chama de “espúrios”, como câmbio e salários baixos, atiçando a fogueira da incerteza, inimiga maior do investimento. E essa moldura externa desafiadora, de acordo com a avaliação do especialista, envolve um quadro doméstico que é dominado por outros desafios nada triviais, começando pelo “enorme atraso na fronteira tecnológica que não vem de agora”, pelo lado da oferta.
Pelo lado da demanda, Sarti vê avanços recentes nos bens de capital, mas ressalta que eles “apanharam muito” nos últimos tempos, conforme mostra o comparativo do IBGE, acima, entre pico de produção e produção atual. O professor da Unicampnão vê outra alternativa para o aumento da demanda por bens de capital que não passe por uma retomada vigorosa dos investimentos em infraestrutura, em todas as suas vertentes, inclusive a do saneamento básico, aspecto no qual o atraso brasileiro ganha contornos vergonhosos.
Em relação aos bens intermediários, ele vê uma queda estrutural da demanda, estimulada por processos de abertura mal conduzidos e redução do conteúdo nacional. “Acho que há um vazamento estrutural que não pode ser mais explicado só pelo câmbio”, avalia, acrescentando que a tendência é de que o processo de desindustrialização se acelere com setores como o de petróleo e de eletrônicos comprando cada vez mais componentes no exterior.
Quanto aos bens de consumo, os não duráveis, diretamente vinculados à massa salarial, Sarti avalia que podem reagir se houver uma política ativa de geração de empregos, algo do qual ele desconfia. Quanto aos bens duráveis, o economista acha que eles podem ter alguma reação se houver alguma expansão do crédito, mas ressalva que a concorrência dos importados será grande e que o segmento não é grande na indústria brasileira, exceto o ramo de veículos com seu conhecido poder de pressão.
Em resumo, o professor da Unicamp mostrou-se pessimista com o contexto que envolve a indústria brasileira e com as alternativas visíveis para dinamizá-la para muito além da recuperação do uso da capacidade já instalada. “Não vejo movimento que bata em investimento, a não ser que haja um crescimento na casa dos 5% ao ano durante pelo menos cinco anos”, disse, ressaltando ainda que será necessário investir pesado em modernização do parque existente para suportar a competição externa.
O equacionamento fiscal
A economista Vilma Pinto, pesquisadora do FGV IBRE especializada em contas públicas, avalia que o equacionamento do desequilíbrio fiscal em alguma medida será uma agenda inevitável para o governo que toma posse no dia 1 o de janeiro de 2019, com repercussões para todos os segmentos econômicos que dependam de algum tipo de apoio ou investimento público, inclusive a indústria.
Com o arrefecimento do ritmo de recuperação da economia já constatado pelos números recentes, derrubando as perspectivas de crescimento do PIB em 2018 novamente para a casa de 1% (o Boletim Macro IBRE previa 1,5% na versão de setembro), a possibilidade de aumento da arrecadação de forma consistente, permitindo algum equacionamento pelo lado da receita, fica mais reduzida ainda que, graças a receitas não recorrentes, o resultado do governo central este ano deva ser melhor do que o previsto.
“A melhora recente da arrecadação é fruto de intervenções do governo e não do ciclo econômico”, explica a pesquisadora, prevendo que 2019 tende a ser um ano bem mais difícil, sob pressão de limites legais, como o teto dos gastos e a regra de ouro (limita as operações de crédito da União aos gastos de capital). Ela ressalta que o quadro se torna ainda mais preocupante quando se observa o crescimento contínuo da dúvida pública brasileira. Segundo seus estudos, a dívida bruta do governo geral fechará 2018 em 76,9% do PIB, devendo alcançar 80,5% em 2019.
Pelo lado das despesas, não há também boas notícias. Na série histórica iniciada em 1998, apenas em três anos – 2003, 2015 e 2017 – a evolução das despesas primárias recorrentes da União foi negativa, ao mesmo tempo que o resultado primário do setor público esteve pela última vez no azul em 2017. Diante desse quadro, Pinto pergunta qual o limite que se tem para despesas discricionárias (aquelas sobre as quais o governo pode decidir livremente) em 2019, incluindo nelas os investimentos que, segundo a pesquisadora, já estão negativos quando deles se desconta a depreciação dos estoques (o investimento líquido da União foi de R$ 16 bilhões em 2017).
Os estudos da pesquisadora apontam para um limite mínimo de R$ 120 bilhões das despesas discricionárias da União, embora a estimativa do governo esteja na casa dos R$ 98 bilhões, número que ela considera não factível. Dentro desse cenário tão desafiador, ela não vê espaço para algum tipo de política ativa de apoio à indústria ou para ampliação dos investimentos diretos da União. Ao contrário, ela avalia que para manter a regra do teto de gastos, caso seja esta a intenção do futuro governo, pode ser necessário cortar algum dos 28 programas de subsídios já existentes.