Carta IEDI
Contas externas do Brasil e a crise da Covid-19
A Carta IEDI de hoje apresenta os principais resultados das contas externas do Brasil, em 2020, que viu reduzir o déficit de suas transações correntes, mas que também atraiu muito menos capital estrangeiro do que no ano anterior. A análise dará especial atenção aos principais canais de contágio da crise do Covid-19: exportações, importações, viagens e fluxos financeiros.
O déficit nas transações correntes (DTC) da economia brasileira somou US$ 12.517 milhões em 2020, seu menor patamar desde 2009. A queda frente a 2019 chegou a -75% . Ou seja, a crise provocada pela pandemia do Covid-19 interrompeu a trajetória ascendente do déficit iniciada em 2018. Esse efeito fica ainda mais evidente quando analisamos a evolução do DTC em relação ao PIB: 0,83% em dez/20 ante 2,7% no final de 2019.
Movimento negativo também foi registrado na conta capital e financeira: após dois anos consecutivos de alta, seu resultado recuou para US$ 11.135 milhões, isto é, -77,6% frente à cifra de 2019, devido à redução dos fluxos líquidos de capitais. A diferença entre o DTC e o resultado da conta capital e financeira foi financiada pela venda de reservas internacionais pelo Banco Central do Brasil.
O efeito-contágio da crise do Covid-19 sobre as transações correntes brasileiras diferenciou-se do observado na crise financeira global de 2008/2009, em função das características singulares dessa crise, a exemplo do maior impacto no setor de serviços. Todas as subcontas foram atingidas e o Brasil apresentou especificidades comparativamente a outras economias emergentes. Isto devido ao perfil da inserção externa brasileira, que determina as fontes de receita em moeda estrangeira.
Dentro das transações correntes, a balança comercial de bens reagiu positivamente, registrando um superávit de US$ 43.230 milhões ou +6,8% ante 2019. Essa reação favorável decorreu da maior queda das importações: -9,7% contra -6,7% das exportações, na esteira da contração da demanda doméstica.
A depreciação cambial em termos reais efetivos de 20% em 2020 (deflacionada pelo IPCA), recorde entre as economias de mercado emergente não foi suficiente para estimular às exportações. Isso devido à forte queda da demanda externa, bem como do prazo dos contratos de exportação que retardam o efeito positivo dessa depreciação sobre a competitividade dos produtos brasileiros no exterior. Vale observar ainda que a expressiva alta de preços no atacado produziu uma valorização de 1% da taxa real de câmbio efetiva quando deflacionada pelo IPA-DI, não ajudando a exportação de determinados bens.
A perspectiva no início da pandemia, contudo, era de um ajuste bem mais intenso da balança comercial, o que não se confirmou em função de uma conjunção de fatores: a menor intensidade da recessão global, que resultou em um recuo menos agudo do volume de comércio de bens; a alta dos preços das commodities agrícolas e metálicas, frente à reativação da economia chinesa; e o desempenho da atividade econômica doméstica, que também foi menos desfavorável do que o esperado, graças às medidas emergenciais de amenização do impacto da Covid-19.
Já o recuo do déficit na balança de serviços (-43,2%), que inclui os gastos com viagens internacionais, foi ainda mais intenso do que na balança comercial pelo impacto direto das medidas de confinamento e restrição de mobilidade. No mundo todo o turismo foi um dos principais canais de transmissão da crise causando prejuízo a muitos países, mas como o Brasil gasta mais do que ganha com o turismo internacional o efeito da pandemia foi favorável, reduzindo o déficit da subconta “viagens” e da balança de serviços total.
Em relação aos fluxos financeiros, como observaram o FMI e outros organismos multilaterais, o efeito-contágio da Covid-19 sobre os mercados emergentes foi muito mais intenso do que na crise global de 2008/2009. No Brasil não foi diferente. A pandemia atingiu negativamente todas as modalidades de nossa conta financeira. A captação líquida somou US$ 11.146 milhões, uma queda de -77% ante 2019.
O primeiro canal de contágio sobre a conta financeira foi a liquidação de posições dos investidores não-residentes no mercado financeiro doméstico. A fuga de capitais em efeito-manada foi recorde entre as economias emergentes. A saída desses investimentos somou US$ 35 bilhões entre fev/20 e mai/20. Além da intensidade, a composição também se diferenciou: na crise do Covid-19, essa liquidação foi maior no mercado de títulos de dívida pública do que no mercado de ações.
A saída de capitais recorde das economias emergentes e notadamente do Brasil decorreu não só da maior dimensão da crise atual e do aumento da participação dos investidores não-residentes nos mercados de ações e de títulos públicos no boom de fluxos de capitais após a crise de 2008/2009, mas também da mudança de perfil desses investidores, que respondem muito mais rapidamente e intensamente às mudanças nas condições financeiras globais.
Assim, a crise do Covid-19 deixou evidente que a mudança na composição do passivo externo a partir de 2005, caracterizada pela redução da participação da dívida externa e aumento da presença dos investidores globais no mercado de capitais doméstico, não tornou necessariamente a economia brasileira menos vulnerável, mas mudou a natureza de nossa vulnerabilidade externa, como detalhado nessa Carta.
No caso da economia brasileira, a liquidez dos mercados de dívida pública, de ações e de câmbio facilita a liquidação das posições dos investidores não-residentes e, ao mesmo tempo, ajuda a explicar, ao lado de ativos baratos e moeda depreciada, a volta desses investidores a partir de jun/20, no contexto da retomada dos fluxos de portfólio para as economias emergentes. O Brasil foi o principal destino desses fluxos entre os principais emergentes (exceto China), absorvendo em torno de US$ 30 bilhões no acumulado de jun-dez/20.
A entrada líquida de investimento direto no país (ou seja, de IDE), que foi de US$ 34.167 milhões, registrando queda de -50,6% ante 2019, também contribuiu para o menor resultado da conta financeira, bem como o retorno líquido de ID no exterior, de US$ 16.419 milhões. Ou seja, o contexto de recessão global desestimulou o IDE e estimulou a repatriação de capitais pelas empresas transnacionais brasileiras, aproveitando-se também da depreciação cambial.
Considerando as perspectivas para as nossas vendas externas em 2021, as projeções recentemente divulgadas pelas instituições multilaterais indicam um cenário externo favorável tanto do lado dos preços das commodities, como do dinamismo do comércio internacional, que deve proporcionar um melhor desempenho para nossas exportações. Em contrapartida, a volta do crescimento econômico estimulará as importações. O resultado líquido deve ser crescimento do superávit comercial e recuo do DTC.
Já as incertezas sobre novas ondas de Covid-19 no mundo devem pesar sobre as condições financeiras globais e, portanto, sobre o desempenho dos fluxos de capitais para o Brasil. Assim, a alta de 0,75 p.p. da taxa de juros básica (Selic) pelo Banco Central pode não ser suficiente para manter a atratividade dos títulos negociados no mercado financeiro doméstico e dos títulos emitidos no exterior por residentes.
Nunca é demais lembrar que os fluxos de capitais para as economias emergentes em geral, e o Brasil em específico, são determinados primeiramente pelas condições do mercado financeiro internacional. Fatores domésticos, como o patamar interno das taxas de juros, os preços dos ativos e a taxa de câmbio são determinantes secundários, que afetam, sobretudo, a distribuição dos fluxos entre essas economias.
O desempenho das contas externas
Esta Carta IEDI analisa, na primeira seção, os resultados das contas externas brasileiras em 2020, destacando o impacto da crise do Covid-19 no balanço de pagamentos. As perspectivas para 2021 são apresentadas na segunda seção
Em 2020, o déficit nas transações correntes (DTC) da economia brasileira somou US$ 12.517 milhões, uma queda de 75% frente ao ano anterior (US$ 50.697 milhões). Ou seja, a crise provocada pela pandemia do Covid-19 interrompeu a trajetória ascendente desde 2018, resultando no menor DTC desde 2009. Movimento semelhante foi registrado na conta capital e financeira: após dois anos consecutivos de alta, seu resultado recuou para US$ 11.135 milhões, 77,6% inferior à cifra de 2019, mas, ao contrário das transações correntes, superior ao registrado em 2017 (US$ 9.547milhões). Como o saldo da conta capital foi irrisório (US$ 280 milhões), mantendo seu padrão histórico, esse resultado decorreu da redução dos fluxos líquidos de capitais registrados na conta financeira. A diferença entre o DTC e o resultado da conta capital e financeira foi financiada pela venda de reservas internacionais pelo Banco Central do Brasil.
Assim, a crise do Covid-19 interrompeu a deterioração das contas externas em curso no biênio precedente e, consequentemente, a maior dependência da absorção de capitais estrangeiros. A reação favorável das transações correntes, que decorreu dos mecanismos de transmissão dessa crise sobre a economia brasileira (detalhados a seguir), fica ainda mais evidente quando analisamos sua evolução em relação do PIB.
Após atingir -2,70% no final de 2019 (maior percentual desde dezembro de 2015), o DTC/PIB recuou para somente 0,83% em dezembro de 2020, menor cifra desde janeiro de 2018. Já a Necessidade de Financiamento Externo (NFE) – a diferença entre o DTC/PIB e a razão entre o investimento direto externo (IDE) e o PIB – embora tenha permanecido negativa, diminuiu somente 0,52 pontos percentuais (p.p.) para -1,51% do PIB. Isto porque o IDE, modalidade mais estável de capital externo, também se retraiu (para 2,38% do PIB, 1,31 p.p inferior ao resultado de 2019) no contexto da crise do Covid-19.
A seguir, detalha-se o desempenho das transações correntes e da conta financeira em 2020.
Transações Correntes
O efeito-contágio da crise do Covid-19 sobre as transações correntes brasileiras diferenciou-se do observado em choques externos anteriores - como a crise financeira global de 2008 (CFG) - devido às próprias especificidades dessa crise, como o maior impacto no setor de serviços. Esse efeito atingiu todas as sub-contas e também guardou especificidades comparativamente a outras economias de mercado emergente e em desenvolvimento (EMEDs) devido às características da inserção externa brasileira, que determina das fontes de receita em moeda estrangeira.
A balança comercial de bens reagiu positivamente, registrando um superávit de US$ 43.230 milhões, 6,8% superior ao resultado de 2019. Essa reação favorável decorreu da maior queda das importações relativamente às exportações (-9,7% contra -6,7%, respectivamente), resultando numa diminuição de 8% na corrente de comércio, padrão típico de ajuste das contas externas brasileira em momentos de choque externos. A depreciação cambial em termos reais efetivos de 20% em 2020, recorde entre as economias de mercado emergente (EMEs) não foi suficiente para estimular às exportações devido à forte queda da demanda externa, bem como do prazo dos contratos de exportação que retardam o efeito positivo dessa depreciação sobre a competitividade dos produtos brasileiros no exterior. Já a queda das importações decorreu, sobretudo, da contração da demanda interna dada a sua alta elasticidade-renda.
A perspectiva, contudo, eram de um ajuste bem mais intenso, que não se confirmou devido a uma conjunção de fatores. O primeiro foi a menor intensidade da recessão global. De acordo com o último cenário do Fundo Monetário Internacional (FMI) divulgado em janeiro (IMF, 2021), a economia mundial contraiu-se 3,5% em 2020 contra uma previsão de 4,4% em outubro. Consequentemente, tanto a queda do volume de comércio de bens foi menor que o esperado, como sua recuperação surpreendeu positivamente pela rapidez e intensidade, tendo registrado um crescimento de 1,3% na comparação de dezembro de 2020 com o mesmo mês do ano anterior.
O segundo fator foi o desempenho favorável dos preços das commodities agrícolas e metálicas. Além de terem recuado muito pouco no momento mais agudo da crise (março e abril de 2020), ao contrário do preço do Petróleo que registrou uma forte queda, as cotações internacionais dessas commodities ingressaram num movimento ascendente a partir de meados de 2020, acompanhado com um certo atraso pelo preço do Petróleo. Alguns dos determinantes da alta dessas cotações em 2009 atuaram novamente, como a recomposição dos estoques pela China, a depreciação do dólar e a especulação nos mercados de derivativos fomentada pelas políticas monetárias expansionistas, agora em escala ainda maior (Financial Times, 2021). No caso do Brasil, a alta do preço da soja e minério de ferro e respectivos derivados amorteceu, a queda do valor das exportações brasileiras. Enquanto as vendas externas dos produtos da indústria de transformação recuaram 12%, as exportações dos demais produtos mantiveram-se praticamente estável (alta de 0,12%). O terceiro fator foi o desempenho da atividade econômica doméstica, que foi menos desfavorável do que o esperado, atenuando a queda das importações.
Já o recuo do déficit na balança de serviços foi muito mais forte (-43,2%) exatamente em função da especificidade da crise do Covid-19 mencionada acima. A maior redução, da ordem de 80%, ocorreu em “Viagens”, subconta que sofreu impacto direto das medidas de confinamento e distanciamento social. Assim, enquanto o virtual colapso do turismo foi o principal canal de transmissão da crise sobre vários países em desenvolvimento que dependem das receitas em moeda estrangeira geradas por esse setor, no caso do Brasil, que é deficitário nessa subconta, esse colapso atuou na direção contrária, tendo um impacto positivo nas contas externas. O déficit da subconta “Transporte” também recuou significativamente (57,1%) devido à contração do volume comércio de serviços. Já o déficit da subconta “aluguel de equipamentos”, que depende sobretudo da produção da Petrobrás, sofreu uma menor queda (-19,5%).
O ajuste na conta de “renda primária”, estruturalmente deficitária devido ao elevado passivo externo líquido da economia brasileira, também foi expressivo (-33,3%). Vários fatores explicam esse ajuste: em primeiro lugar, a redução da receita das filiais das empresas transnacionais devido ao quadro recessivo; em segundo lugar, esse quadro também afetou negativamente os dividendos pagos aos investidores não-residentes com aplicações em ações; em terceiro lugar, a depreciação cambial desestimulou as remessas de lucros, dividendos e juros associados aos investimentos direto e de portfólio; em quarto lugar, essa depreciação reduziu o valor em dólares dessas remessas; em quinto lugar, o dólar mais apreciado estimulou as remessas de lucros e dividendos pelas filiais de empresas brasileiras no exterior.
No caso das “rendas secundárias”, o Brasil não foi atingido pela queda das remessas de imigrantes que foi um importante canal de contágio para vários países em desenvolvimento. Pelo contrário, as transferências pessoas, que registram essas remessas, mais que dobraram em 2020 na comparação com 2019.
Conta Financeira
O efeito-contágio da crise do Covid-19 sobre a conta financeira foi muito mais intenso do que na CFG e atingiu todas as modalidades não somente de recursos externos, mas também de capitais brasileiros no exterior. A captação líquida somou US$ 11.146 milhões, cifra 77% menor que a registrada no ano anterior (US$ 50.024 milhões). Contudo, como em 2019, ela decorreu, exclusivamente, do desempenho da modalidade Investimento Direto (ID), que somou US$ 50.586 milhões. Contribuíram para esse resultado o ingresso líquido de ID no país (ou seja, o IDE) de US$ 34.167 milhões – 50,6% inferior que o registrado em 2019 -, bem como o retorno líquido de ID no exterior, de US$ 16.419 milhões contra uma saída líquida de US$ 22.820 milhões no ano anterior. Ou seja, o contexto de recessão global desestimulou o IDE, mas, em contrapartida, teve o efeito contrário sobre o ID no exterior, resultando em repatriação de capitais (na modalidade “participação de capital” – ver tabela abaixo) pelas empresas transnacionais brasileiras, também estimulada pela depreciação cambial (que amplia seu valor em moeda doméstica).
Em contrapartida, nas demais modalidades houve saída líquida de capitais. A modalidade “Outros Investimentos” registrou uma saída de US$ 34.123 milhões, devido à redução do passivo de residentes no exterior (quitação de empréstimos bancários diante do aumento do custo da rolagem e de créditos comerciais e adiantamento associada à redução da corrente de comércio). O investimento de portfólio (IP) registrou uma concessão líquida de recursos de US$ 13.882 milhões associada tanto ao IP em ações e fundos de investimento no exterior como à venda de ativos no país de investidores não-residentes no país. O desempenho dessa modalidade de recurso externo é detalhado a seguir.
Assim como demais choques externos que atingiram a economia brasileira no contexto de globalização financeira, o primeiro canal de contágio da crise do Covid-19 sobre a conta financeira brasileira foi a liquidação de posições dos investidores não-residentes no mercado financeiro doméstico. Contudo, o efeito-manada foi muito mais intenso do que na CFG e recorde entre as EMEs.
A saída desses investimentos somou US$ 35 bilhões entre fevereiro e maio, dos quais US$ 22,4 bilhões (ou seja, 64%) em março quando o contágio atingiu os mercados financeiros globais, desencadeando um movimento de liquidação de posições em ativos de risco de velocidade e intensidade inédita. Além do grau de intensidade, a composição também foi diferente: na crise do Covid-19, essa liquidação foi maior no mercado de títulos de dívida pública do que no mercado de ações, ao contrário do observado na CFG. O impacto bem mais significativo deste canal financeiro de transmissão dos choques externos também se observou no total dos fluxos de portfólio de não-residentes para as EMEs: a saída líquida de capitais somarou US$ 104,8 bilhões na crise do Covid-19, mais de três vezes os US$ 33 bilhões registrados na CFG, em ambos considerando os 90 dias após o início do evento (Unctad, 2020).
A saída de capitais recorde das EMEs e do Brasil decorreu não só da maior dimensão da crise atual e do aumento da participação dos investidores não-residentes nos mercados de ações e de títulos públicos no boom de fluxos de capitais após a CFG, mas também da mudança de perfil desses investidores nesse período, qual seja, a crescente importância dos fundos de investimentos passivos. Esses fundos seguem um índice de referência emblemático (benchmark) com uma lista predefinida de países e títulos com pesos específicos (como o JP Morgan EMBI ou Morgan Stanley MSCI) e respondem muito mais rapidamente e intensamente às mudanças nas condições financeiras globais (IMF, 2020 e Unctad, 2020). Ademais, como são poucos os benchmarks utilizados, a correlação entre as decisões de portfólio dos investidores globais aumentou, reforçando ainda mais seu comportamento de manada em momentos de exacerbação da incerteza e fuga para a qualidade (ou seja, títulos do tesouro americano).
Assim, a crise do Covid-19 deixou ainda mais evidente que a mudança na composição do passivo externo a partir de 2005, caracterizada pela redução da participação da dívida externa e aumento da presença dos investidores globais no mercado de capitais doméstico, não tornou a economia brasileira menos vulnerável externamente, mas mudou a natureza dessa vulnerabilidade.
Essa maior presença em geral e, especialmente, dos fundos passivos, aumentou a transmissão de choques financeiros internacionais já que os surtos de entrada e saída de fluxos de portfólio resultam em deflação dos preços dos ativos domésticos, bem como depreciação da moeda doméstica, desencadeando um circulo vicioso: como os investidores não-residentes têm ativos em reais, mas obrigações com os clientes na moeda de seu país, essa depreciação resulta em vendas adicionais de títulos e ações, por sua vez, reforçando a alta da taxa de câmbio (Paula, Fritz e Prates, 2020).
Consequentemente, os indicadores de vulnerabilidade externa que incluem o estoque de investimento de portfólio no país indicam uma redução dessa vulnerabilidade logo após o efeito-contágio da crise do Covid-19 no mercado de capitais brasileiro, já que o valor desse investimento diminuiu em moeda doméstica (devido à queda do preço dos ativos) e, ainda mais quando convertido em dólares, devido à depreciação do real.
Esse fenômeno foi denominado “original sin redux” (“pecado original restaurado" numa tradução livre) por alguns economistas do Bank for International Settlement (BIS) (Carstens e Shin, 2019) em analogia ao “original sin” (pecado original), termo cunhado por Eichengreen, Hausmann e Panizza (2002). O pecado original diz respeito à incapacidade das EMEs emitirem dívida externa na sua própria moeda, o que resulta no descasamento de moeda nos balanços dos devedores (governos, instituições financeiras e empresas residentes), um dos principais determinantes das crises gêmeas (cambiais e bancárias) sofridas por essas economias nos anos 1980 e 1990.
A redução da importância da dívida denominada em moeda estrangeira nos passivos dos residentes das EMEs atenuou esse tipo de vulnerabilidade externa, mas, em contrapartida, o aumento simultâneo da participação dos investidores globais nos mercados de capitais domésticos resultou na emergência de um novo tipo de vulnerabilidade associada ao “pecado original restaurado”, que se refere ao descasamento de moeda no balanço dos credores (os investidores não residentes), que tem ativos em moeda doméstica e passivo em moeda estrangeira. Por isso, esses investidores procuram liquidar o mais rápido possível seus ativos locais para minimizar as perdas de capital na moeda de denominação desse passivo.
No caso da economia brasileira, a liquidez dos mercados de dívida pública, de ações e de câmbio reforça o impacto do “pecado original restaurado”, ao facilitar a liquidação das posições dos investidores não-residentes. Essa liquidez, ao lado de ativos baratos e moeda depreciada, explica, igualmente, a volta desses investidores - ávidos por rendimentos e para compensar as perdas sofridas - a partir de junho no contexto da retomada dos fluxos de portfólio para as EMEs na esteira das políticas monetárias contracíclicas adotadas pelos bancos centrais das economias avançadas.
O Brasil foi o principal destino desses fluxos entre as principais EMEs (excluindo a China), absorvendo em torno de US$ 30 bilhões no acumulado de junho-dezembro. O movimento se iniciou no mercado de títulos de dívida local se espraiando para o mercado acionário a partir de outubro. No final de 2020, a participação desses investidores no movimento financeiro da B3 (mercados primário e secundário) já tinha retornado para o patamar de 45% contra 46,6% no mesmo mês de 2019. Em contrapartida, no mercado de títulos públicos, essa participação ainda não tinha voltado ao patamar vigente na véspera da crise (8,8% contra 10,4%). Em junho e dezembro, a captação de recursos mediante a emissão de títulos no exterior também foi expressiva.
Perspectivas para 2021
Todas instituições multilaterais melhoraram suas perspectivas para o desempenho da economia global em relação aos cenários divulgados no segundo semestre de 2020. A projeção mais otimista é da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que projeta um crescimento de 5,6% no seu cenário de março - mais que 1 p.p. superior à projeção anterior (OECD, 2021) -, próxima da divulgada pelo FMI em janeiro (5,5%, 0,3 p.p. maior que em outubro). Já a United Nations Conference for Trade and Development (UNCTAD) é bem menos otimista, com uma projeção de 4,7% no seu cenário de março, 0,4 p.p acima da divulgada em setembro.
Assim, a economia global deve crescer num patamar entre 4,5% e 5,5% em 2021 contra uma contração prevista entre 3,5% (FMI) e 3,9% (UNCTAD) em 2020. Neste contexto, o volume do comércio global de bens e serviços deve registrar uma reação ainda mais expressiva, com uma expansão de 8,8% contra a queda de 9,6%, de acordo com o último do FMI.
Esse cenário apresenta uma perspectiva tanto ou até mais favorável para os preços das commodities, que devem seguir na fase ascendente iniciada em meados de 2020: as previsões são de uma alta de 21,2% para a cotação internacional do Petróleo (contra uma queda de mais de 30% em 2020) e de 12,8% para os preços das commodities metálicas e agrícolas (contra um avanço de 6,2% em 2020). Vários analistas já prenunciam, inclusive, mais um “superciclo” de preços das commodities (Financial Times, 2021).
Contudo, se essa previsão se concretizar, o mais provável é que o boom do ciclo seja liderado pela demanda por alguns metais, como cobre e zinco, fomentada pelos projetos de energia renovável e pelo crescimento da demanda por baterias para carros elétricos no contexto de avanço das políticas de mitigação das mudanças climáticas (Sanderson, 2021). Ou seja, mesmo que as demais commodities participem da festa, nossas exportações não serão especialmente beneficiadas como no superciclo que precedeu a CFG.
De qualquer forma, considerando as perspectivas para as nossas vendas externas em 2020, o cenário externo é favorável tanto do lado dos preços das commodities, como do dinamismo do comércio internacional, que deve proporcionar um melhor desempenho para as exportações de manufaturados num contexto de maior competitividade associada à forte depreciação cambial. Em contrapartida, a volta do crescimento econômico – 3,2% de acordo com a última previsão do relatório Focus divulgada em meados de março, próxima da projeção de 3,1% da UNCTAD (UNCTAD, 2021) – impulsionará as importações. O resultado líquido deve ser positivo: um crescimento do superávit comercial de bens em torno de 27% e um recuo do DTC da ordem de 14%, também segundo esse relatório.
Embora ainda haja incertezas pairando o desempenho da atividade econômica global devido às novas variantes mais contagiosas do Covid-19 e os ritmos desiguais de vacinação nos diferentes países, essas incertezas são muito maiores em relação às condições financeiras globais e, assim, o desempenho dos fluxos de capitais para as EMEs, dentre os quais a brasileira – que, como destacado acima, é especialmente atingida tanto nas fases de boom como de reversão desses fluxos. Isto porque, a aprovação do pacote fiscal do presidente Biden somada ao acelerado ritmo de vacinação nos Estados Unidos fomentou expectativas cada vez mais favoráveis de crescimento da economia americana, mas também de maior inflação.
Neste contexto, os investidores aumentaram suas expectativas para a taxa de juros de longo prazo (ou seja, dos rendimentos dos títulos de 10 anos do Tesouro americano), que contaminou as taxas de juros longas das demais economias avançadas e resultou em saída de capitais das EMEs. De acordo com o IIF, no início de março, essa saída aproximou-se dos níveis vistos durante o chamado “taper tantrum” em 2013 (Greene, 2021 e Oliver, 2021).
Na sua reunião em 17 de março, o Federal Reserve (Fed) não sancionou essas expectativas, reafirmando que manterá a taxa de juros básica no patamar atual (ou seja, próxima de zero) pelo menos até 2024, apesar da revisão para cima para o crescimento da economia americana. As taxas de juros longas cederam nos dias seguintes, mas os próximos meses devem ser marcados por uma “quebra-de-braço” entre o Fed e os mercados e, com isso, pela volatilidade do apetite dos investidores globais por ativos brasileiros.
Assim, a alta de 0,75% da taxa de juros básica pelo Comité de Política Monetária (COPOM) nesse mesmo dia – que surpreendeu o mercado que esperava um aumento menor – pode não ser suficiente para manter a atratividade dos títulos negociados no mercado financeiro doméstico e dos títulos emitidos no exterior por residentes. Nunca é demais lembrar que os fluxos de capitais para EMEs, como o Brasil, são determinados, principalmente, pelas condições financeiras internacionais. Fatores domésticos, como o patamar das taxas de juros, dos preços dos ativos e da taxa de câmbio são determinantes secundários, que afetam, sobretudo, a distribuição dos fluxos entre as EMEs.