Carta IEDI
Indústria 4.0: Desafios e Oportunidades para o Brasil
Inovações tecnológicas e novos conceitos de organização das cadeias de valores, com o apoio de políticas de desenvolvimento produtivo dos principais países desenvolvidos, estão em vias de estabelecer um novo paradigma industrial. Os termos Indústria 4.0 e Manufatura Avançada são frequentemente empregados para sintetizar o conjunto de transformações referentes à Quarta Revolução Industrial.
Este é o tema desta Carta IEDI, que foi preparada a partir do trabalho realizado pelo economista e especialista em inovação João Furtado e equipe cujo relatório final está disponível no site do IEDI. Especial atenção foi conferida aos desafios que o Brasil deve enfrentar para que sua indústria seja parte integrante deste novo paradigma que se avizinha. Neste sentido, ao final desta Carta são reproduzidas as dez medidas propostas pelos autores do estudo que poderiam auxiliar o país a não perder as janelas de oportunidade que se abrem com o advento da Indústria 4.0.
Um espectro relativamente diversificado de tecnologias aplicadas à produção manufatureira é o pré-requisito da Indústria 4.0. Dentre aquelas que são citadas com mais frequência estão: Sistemas ciber-físicos (CPS), Big Data Analytics, Computação em nuvem, Internet das Coisas (IoT) e Internet dos serviços (IoS), Impressão 3D e outras formas de manufatura aditiva, Inteligência artificial, Digitalização, Colheita de energia (Energy harvesting) e Realidade aumentada.
Mas o conceito não se limita à aplicação combinada dessas tecnologias. A Indústria 4.0 cria e articula fábricas inteligentes em um sistema produtivo e de comercialização substancialmente diferentes. Nas fábricas inteligentes, produtos também inteligentes possuem uma identidade única e a sua história de produção e consumo pode ser rastreada a qualquer momento, permitindo mudanças importantes ou ajustes pontuais ao longo dos processos de produção envolvidos. Os sistemas de fabricação estão conectados verticalmente, ao longo da cadeia produtiva, e horizontalmente, com outras redes de valor, podendo ser geridos em tempo real.
Uma consequência de alto impacto é a drástica redução de estoques e das escalas mínimas de produção (no limite, lotes unitários). Além disso, a Indústria 4.0 cria fábricas e sistemas industriais inteligentes de tal forma que afeta profundamente as qualificações profissionais e as relações de trabalho, cria novos mercados e modelos de negócio, e pode alterar significativamente a dinâmica econômica do mundo moderno.
Países como Alemanha e Estados Unidos, entre outros, por meio de políticas industriais e de ciência, tecnologia e inovação, não só têm apoiado o desenvolvimento das diferentes tecnologias envolvidas, mas se esforçam para articulá-las de maneira a retirar o maior potencial possível delas, contribuindo deliberadamente para a constituição daquilo que se entende por Indústria 4.0 ou Manufatura Avançada.
Questão relevante, então, é saber qual o lugar do Brasil e de sua indústria neste “novo mundo”. Os desafios não são desprezíveis e surgem, em boa medida, em decorrência de limitações que herdamos do passado. São destacadas pelos autores três ordens de limitações que complicam o pleno desenvolvimento da Indústria 4.0 no país.
Em primeiro lugar, estão aquelas limitações referentes à própria estrutura industrial. Vale lembrar que o Brasil não foi capaz de acompanhar o avaço do restante do mundo em setores fundamentais para o desenvolvimento das tecnologias da Industria 4.0, como é o caso da microeletrônica. Encontramo-nos, então, desde o ponto de partida, em desvantagem. Além disso, pela própria natureza do processo de industrialização do país, dois outros aspectos tornaram-se deficiências cada vez mais importantes: pequena integração no comércio internacional e esforços tecnológicos relativamente modestos.
Em segundo lugar, com as características do consumo do Brasil, ao contrário dos países desenvolvidos, não favorece uma forte diferenciação dos produtos a qual viria ao encontro da Indústria 4.0. Em terceiro lugar, devido a essas deficiências, o Brasil corre o risco de se transformar, ainda mais, em mercado-alvo da produção chinesa, que deve acompanhar com atraso o avanço industrial dos países desenvolvidos, que hoje compreendem os principais mercados consumidos de produtos chineses.
A despeito disso, as janelas de oportunidade de um novo paradigma industrial existem, mas não de maneira incondicional. Elas envolvem algum tipo de compromisso de vários segmentos – produtores e usuários das soluções da Indústria 4.0 – para o estabelecimento de trajetórias factíveis, com custos e benefícios distribuídos ao longo do tempo de forma equânime entre as partes interessadas. O maior desafio da Indústria 4.0 para o Brasil é o da construção de uma estratégia consensual entre os principais interessados, sejam usuários do modelo ou produtores dos seus componentes materiais e de serviços.
A escolha do modelo de incorporação rápida dos componentes da Indústria 4.0 por meio de importações assegura ilhas de modernidade, mas desperdiça oportunidades industriais e sua difusão pelo sistema produtivo. Em oposição, a opção pelo modelo de produção nacional de soluções 4.0 pode ampliar o desenvolvimento tecnológico e as oportunidades industriais, com difusão mais ampla do novo padrão industrial. Apesar dos riscos que acompanham esta última opção, ela deveria estar no centro da futura política industrial do país. A hesitação entre uma estratégia rápida de assimilação dos componentes do modelo por meio de importações e uma de produção local estimulada por políticas pode criar o pior das duas fórmulas.
Os autores sugerem algumas medidas que podem auxiliar o desenvolvimento virtuoso da Indústria 4.0 no país. Um primeiro conjunto de ações não se refere diretamente à Indústria 4.0, mas sim à criação das condições para que a indústria de diversos segmentos e estratos de empresas possa se preparar para esse segundo esforço que será o padrão industrial emergente, em definição nos países líderes. Foram também propostas medidas para a formação de recursos humanos e competências tecnológicas que serão necessários à Indústria 4.0, bem como para a transformação do tecido industrial, seja o de pequenas empresas, seja o de empresas de base tecnológica, seja ainda o das grandes empresas e das cadeias industriais em que o Brasil possui posição de protagonismo global.
O Conceito de Indústria 4.0
O termo Indústria 4.0 surgiu na feira de Hannover no ano de 2011, sendo utilizado para denominar o projeto alemão de promover um grande salto de competitividade por meio da aplicação de novas tecnologias no mundo da manufatura. Por meio da Indústria 4.0, a Alemanha tem como objetivo o revigoramento do tecido industrial germânico e o fortalecimento das suas exportações de equipamentos e soluções “inteligentes”. O conceito encontra, contudo, equivalentes fora do contexto alemão como “Advanced Manufacturing”, no caso dos EUA, ou mesmo “Industrial Internet of Things”.
De todo modo, estes termos são empregados para descrever um novo paradigma industrial, referente à Quarta Revolução Industrial, decorrente de inovações tecnológicas e novos conceitos de organização da cadeia de valor. Como sintetizam os pesquisadores da Technische Universität Dortmund, Hermann, Pentek e Otto, “no interior das fábricas inteligentes e modulares da Indústria 4.0, sistemas ciber-físicos (CPS) monitoram processos, criam uma cópia virtual da realidade e tomam decisões descentralizadas. Através da Internet das Coisas (IoT) os CPS se comunicam e cooperam entre si e com seres humanos em tempo real, e através da Internet dos Serviços (IoS) são oferecidos serviços organizacionais internos e externos, utilizados por participantes desta cadeia de valor” (Design Principles for Industrie 4.0 Scenarios: A Literature Review, 2015).
Do ponto de vista das tecnologias essenciais para o pleno desenvolvimento da Indústria 4.0 é difícil obter um consenso entre os analistas. Dentre aquelas que são citadas com mais frequência estão: Sistemas ciber-físicos (CPS), Big Data Analytics, Computação em nuvem, Internet das Coisas (IoT) e Internet dos serviços (IoS), Impressão 3D e outras formas de manufatura aditiva, Inteligência artificial, Digitalização, Colheita de energia (Energy harvesting) e Realidade aumentada. Cada uma destas tecnologias viabilizadoras do modelo industrial emergente será analisada mais à frente.
A aplicação dessas tecnologias à produção manufatureira é pré-requisito da Indústria 4.0, mas o conceito não se limita à aplicação combinada dessas tecnologias. Indústria 4.0 cria e articula fábricas inteligentes em um sistema produtivo e de comercialização substancialmente diferentes. No entanto, essas mudanças não esgotam o novo modelo industrial. Na Indústria 4.0, como argumentam Hermann, Pentek e Otto, “as empresas irão estabelecer redes globais com os seus equipamentos, depósitos e unidades de produção articulados por sistemas ciber-físicos. No ambiente industrial (manufatureiro), estes sistemas ciber-físicos incluem máquinas, sistemas de armazenagem e unidades de produção inteligentes, capazes de trocarem informações de forma autônoma, desencadeando ações e controles mútuos de modo independente”.
Quanto às fábricas inteligentes, já existem elementos que permitem caracterizá-las e elas empregam uma abordagem completamente diferente da produção. Os seus produtos, também inteligentes, possuem uma identidade única e a sua história de produção e consumo pode ser rastreada a qualquer momento, permitindo mudanças importantes ou ajustes pontuais ao longo dos processos de produção envolvidos. Os sistemas de fabricação envolvidos estão conectados verticalmente com os processos das fábricas e das empresas e estão horizontalmente conectados com outras redes de valor, podendo ser geridos em tempo real - desde o momento em que um pedido é feito até a logística da expedição. Uma consequência de alto impacto desta transformação envolve a possibilidade de eliminação de estoques e a fabricação sob demanda de lotes mínimos - no limite, lotes unitários.
A Indústria 4.0 cria fábricas inteligentes e um sistema industrial inteligente de tal forma que afeta profundamente as qualificações profissionais e as relações de trabalho, cria novos mercados e modelos de negócio, e pode alterar significativamente a dinâmica econômica do mundo moderno. Esses temas serão abordados nas próximas seções.
Em paralelo às grandes transformações propriamente industriais que se avizinham com a Indústria 4.0, várias outras importantes mudanças, em ambientes relacionados ou circunvizinhos prometem transformar a face das economias: avanço substancial das novas fontes de energia renováveis (e mais limpas), smart grid e veículos autônomos, para ficar em três dimensões que possuem grandes repercussões tanto nas estruturas econômicas como na ordem econômica internacional. O avanço das energias renováveis e mais limpas modifica a natureza das relações entre países industrializados avançados e os pólos mundiais de produção de energia. De modo complementar, o avanço dos conceitos relacionados com a chamada economia circular também deverá reduzir a dependência dos países industrializados mais avançados com relação aos fluxos de matérias-primas dos produtores de commodities básicas, tais como o Brasil.
Parece evidente que estas múltiplas mudanças nas estruturas e na dinâmica nos padrões de produção material e de serviços terão profundas consequências sobre a geografia da economia mundial e sobre os fluxos de comércio e de investimento. No entanto, nem todas as empresas, os setores e os países são impactados da mesma forma, podendo haver por isso alterações profundas nas posições competitivas.
Uma diferença crucial entre a Indústria 4.0 e as revoluções industriais que a precederam é que o novo paradigma dos meios de produção não foi constatado após seu desenvolvimento e impacto no mercado, mas previsto e anunciado a priori. Mais do que isso, a direção de desenvolvimento vem sendo moldada e sua velocidade aprimorada pela aplicação de políticas públicas. Este fato muda substancialmente a dinâmica da transformação, uma vez que empresas e países têm a chance de traçar estratégias e se preparar para as mudanças que se anunciam, em um primeiro momento como ameaça, mas também como fonte de oportunidades de transformação estrutural e desenvolvimento.
Pode-se argumentar, inclusive, que a Quarta Revolução Industrial é, em alguma medida, fruto de estratégia dos países desenvolvidos de articulação coesa de estratégias empresariais e ações públicas de suporte para combater as ameaças ao protagonismo ocidental advindas do crescimento industrial no oriente. Com efeito, as mudanças promovidas pela Indústria 4.0 apresentam um potencial bastante promissor para combater o modelo de produção em larga escala e baixo custo dos países emergentes, bem como os seus efeitos nos fluxos de comércio (os déficits comerciais de muitos países ocidentais com a China, por exemplo) e, ao menos parcialmente, na desindustrialização.
No mundo vislumbrado por especialistas da manufatura e da concepção da nova manufatura, a criação de pequenas fábricas modulares, flexíveis e ultra-conectadas possibilita reduzir drasticamente a escala sem afetar de modo substancial o custo final dos produtos. O modelo possui as vantagens adicionais de permitir a customização extrema da produção e reduzir os custos logísticos ao dispersar a produção e aproximá-la dos mercados consumidores. Com isso, o modelo dos grandes complexos industriais especializados típicos de países como a China estaria ameaçado por uma forma mais ágil, distribuída e conectada de produção.
Os Princípios e as Tecnologias Essenciais para a Indústria 4.0
A tecnologia tem papel essencial na vida das pessoas, e sua evolução em velocidade acelerada promove mudanças e disrupções nas trajetórias conhecidas e no modo como vivemos. Desde o início da era digital assistimos a uma evolução rápida e consistente de fatores de desempenho, como poder de processamento, acompanhado da redução de custos e miniaturização de componentes, seguindo o ritmo previsto na Lei de Moore, uma proposição do universo informático segundo a qual a capacidade de processamento computacional derivada dos avanços da microeletrônica ocorre numa velocidade que permite duplicar o seu poder em ciclos de 18 meses. Essa evolução promove e possibilita o surgimento de diversas outras tecnologias e aplicações, algumas delas diretamente relacionadas à Indústria 4.0.
Os princípios básicos para a aplicação bem sucedida de iniciativas de Indústria 4.0 identificados na literatura compreendem:
• Interoperabilidade: baseia-se na capacidade de comunicação entre produtos, sistemas de produção e de transporte através da rede, independentemente da natureza do elemento inteligente e de seu fabricante. Para isso, é necessária a definição e implantação abrangente de protocolos e padrões internacionais.
• Virtualização: refere-se à capacidade dos sistemas de monitorar processos e, utilizando dados provenientes de sensores, criar uma versão digital que espelha o mundo físico por meio de modelos matemáticos.
• Descentralização: a tomada de decisão descentralização é um fator essencial no desenvolvimento de soluções para a Indústria 4.0, dado o aumento na complexidade e individualização na produção.
• Capacidade de Resposta em Tempo Real: para garantir a capacidade de reação do sistema a mudanças de demandas ou problemas de operação, é necessário que haja coleta e análise dos dados gerados pelos sistemas inteligentes para propiciar respostas em tempo real. Somente com aquisição permanente do estado dos processos é possível redirecionar produtos para linhas alternativas e adaptar a fábrica inteligente de forma eficiente.
• Orientação ao Serviço: trata-se da disponibilização das funcionalidades de empresas, sistemas inteligentes e operadores humanos encapsulados sob a forma de serviços prestados em plataformas da Internet dos Serviços (IoS).
• Modularidade: sistemas modulares têm a capacidade de se ajustar e reorganizar pari passu com mudanças na demanda ou necessidade de customização de produtos. Com princípios de padronização e protocolos universais de comunicação esses sistemas modulares flexíveis podem ser facilmente incorporados a instalações industriais já existentes, oferecendo suas funcionalidades via IoS.
Sob a ótica dos princípios necessários para a implantação da Indústria 4.0, podem ser identificadas algumas das tendências tecnológicas emergentes que, quando plenamente desenvolvidas, serão capazes de prover funcionalidades aos novos processos de produção. São elas:
• Sistemas ciber-físicos (CPS) combinam atuação no mundo físico com conexão com o mundo virtual, empregando sensores que permitem capturar informações sobre a realidade, transformá-las em dados e utilizá-los na tomada de decisão e atuação com algum grau de automatismo.
• Big Data Analytics compreendem um conjunto de técnicas e ferramentas computacionais para extrair valor (analisar e utilizar esses dados de forma estratégica) de grandes volumes de dados gerados pela aplicação de CPS e demais equipamentos conectados no sistema produtivo, além do grande volume que já circula na Internet. Técnicas anteriores utilizadas na indústria, como análises estatísticas por amostragem, mostram-se ineficazes frente a projeção de mais de 35 zettabytes anuais gerados para 2020. Algoritmos de identificação de padrões e aprendizado de máquina, aliados a grandes bancos de dados e métodos de mineração aplicados diretamente aos sensores geradores de informação (Smart Sensors), compõem o estado da arte atual.
• Computação em nuvem, cujo conceito se baseia na transferência de dados e realização de processos computacionais em instalações externas à empresa e posterior recuperação destes dados e resultados, por meio da internet. Esse tipo de tecnologia permite a redução dos gastos em infraestrutura de TI, que em geral exige investimentos significativos, custos de manutenção e com funcionários especializados. Servidores externos têm grande poder computacional, altas capacidades de armazenamento e nível de segurança dos dados superior aos presentes em empresas, especialmente de pequeno e médio porte, e já é prática comum do mercado disponibilizá-los como serviços.
• Internet das Coisas (IoT) trata-se do meio digital por onde as versões virtuais de sistemas inteligentes e integrados se comunicam. Com a redução de custos de sensores e miniaturização de componentes eletrônicos cresce o número de objetos conectados à Internet (Smart Objects) gerando dados obtidos por eles sobre a realidade, dando origem ao termo que descreve sua interação e dinâmica de comunicação. Em certa extensão os objetos inteligentes conectados através da IoT podem ser considerados sistemas ciber-físicos, e então no contexto industrial a Internet das coisas é a rede de colaboração desses CPS buscando alcançar objetivos produtivos comuns.
• Internet dos serviços (IoS) é o meio digital por onde empresas, pessoas ou sistemas inteligentes podem se comunicar com o objetivo de disponibilizar e obter serviços. Esse tipo de plataforma pode ser utilizado para troca de informações através da cadeia de valor, uma vez que os processos de desenvolvimento, produção e transporte de produtos e materiais sejam encarados como serviços prestados de forma interna ou externa à companhia. Nesse sentido, a IoS é a aplicação da Internet para a criação de uma rede flexível e adaptável de planejamento e controle de processos.
• Impressão 3D e outras formas de Manufatura Aditiva se referem a processos produtivos que, diferentemente dos métodos clássicos de fabricação, adicionam camadas de material como forma de traduzir uma geometria virtual em objeto físico. A Impressão 3D é a técnica mais comum de Manufatura Aditiva e traz grandes vantagens em relação aos processos de manufatura subtrativa (como torneamento e fresagem) pois permite maior liberdade de forma para o produto, diminui o desperdício de material e reduz o tempo de produção em pequena escala. Com isso, vem sendo muito aplicada à fabricação rápida de protótipos e em algumas indústrias específicas, como a aeronáutica, na manufatura de componentes complexos. Como ocorre em muitas novas tecnologias, as aplicações iniciais ocorrem em áreas em que o custo de produção é menos relevante e a concorrência direta com as tecnologias consolidadas não ocorre principalmente em termos de custos e preços. Mas uma vez que as essas aplicações iniciais vão gerando aprendizado e propiciam uma progressiva redução dos custos de produção, a competição entre as velhas e as novas tecnologias vai se estendendo aos mercados de maiores volumes e o processo de aprendizado vai definindo a competição em favor das novas tecnologias. Ao transportar esse tipo de processo produtivo para a Indústria 4.0 adiciona-se flexibilidade à produção, garantindo a eficiente customização de produtos com grande liberdade.
• Inteligência artificial é definida pela capacidade de computadores de realizar tarefas tipicamente associadas exclusivamente a seres dotados de inteligência. Idealmente, um elemento que exiba inteligência artificial será capaz de avaliar seu ambiente, processar informações de forma flexível, aprender com novas experiências e maximizar suas chances de sucesso em seus objetivos. Alguns exemplos de objetivos de curto e médio prazo associados ao desenvolvimento de inteligência artificial são: processamento e reconhecimento de imagens; compreensão e criação de discurso com linguagem natural; navegar por e manipular elementos físicos em espaço desconhecido de forma autônoma; e aprender regras e estratégias de vitória em jogos complexos. Objetivos de longo prazo também são definidos: gerar ideias novas de forma criativa; entender, interagir e demonstrar reações sociais, de empatia e emocionais etc.
• Colheita de energia (Energy harvesting), que reúne um conjunto de técnicas e mecanismos que buscam aproveitar pequenas quantidades de energia de processos físicos e mecânicos ou do ambiente (como energia solar, do vento, gradientes de salinidade, campos eletromagnéticos e gradientes de temperatura) e transformá-las em energia útil. Esse tipo de tecnologia permite aumentar a eficiência energética de equipamentos e garantir a autonomia de sensores e transmissores dispersos através das plantas industriais. Com cada vez mais componentes eletrônicos, a geração distribuída de energia se torna fator decisivo para a viabilização e robustez de produtos e equipamentos inteligentes. Paralelamente ao desenvolvimento de formas de colher a energia é necessário possuir formas eficientes de armazenamento e equipamentos eletrônicos especialmente projetados para poupar energia em seus processos.
• Realidade aumentada (AR) é a sobreposição computacional de elementos virtuais sobre o ambiente físico do usuário em tempo real, modificando ou incluindo elementos visuais e/ou auditivos que complementam sua experiência. Em contraposição à realidade virtual que cria um ambiente totalmente novo e não conectado com elementos reais, a AR captura informações, cria um modelo virtual da realidade e usa como base para a geração de elementos gráficos, de vídeo, sonoros ou de localização. Aplicada ao ambiente industrial essa tecnologia pode ser muito útil para incluir de forma eficiente operadores humanos em uma fábrica inteligente. Com dados e modelos já disponíveis sobre diversos processos via IoT, equipamentos de AR poderiam fornecer informações importantes aos humanos na execução de processos.
Em resumo, as relações entre tecnologias e princípios básicos para a implantação da Indústria 4.0 podem ser visualizados no quadro a seguir.
É importante pontuar que durante o desenvolvimento de tecnologias disruptivas é comum que haja distorções em prever seus impactos, exagerando ou menosprezando possíveis efeitos de sua aplicação ao longo do tempo. A figura abaixo ilustra esse comportamento.
Nota-se também nesse esquema que, de acordo com o estudo do IEC de 2015, o tempo para atingir o estado de maturidade das tecnologias citadas como essenciais para o desenvolvimento da Indústria 4.0 varia na faixa de 2 a 10 anos, com exemplos de tecnologias já bastante evoluídas – como a Impressão 3D – e outras ainda em fase de maturação – como a Internet das Coisas.
Emprego e Indústria 4.0
Os impactos da Indústria 4.0 sobre o emprego, a criação e a distribuição de riqueza não são, por ora, bem conhecidos e ainda demandam estudos adicionais, mas já se esperam desafios importantes. Uma crescente automação da produção e a substituição de trabalhadores por máquinas podem eliminar trabalhos "rotineiros", diminuir a demanda por trabalho barato, aumentar a desigualdade e causar migração de trabalhadores. Em países em desenvolvimento, esta dinâmica tende a ser ainda mais desafiadora, já que nestes países há milhões de jovens adentrando o mercado de trabalho todos os anos (UNIDO 2016 Industry 4.0 Opportunities and Challenges of the New Industrial Revolution for Developing Countries and Economies in Transition).
Outro grande desafio para os países em desenvolvimento, com impactos expressivos sobre o emprego e a distribuição de renda, é a reversão de fluxos externos de capital. As diferenças de custo do trabalho deixarão de ser um aspecto relevante na atração de investimento estrangeiro direto no âmbito da Indústria 4.0. Desafios adicionais para economias em desenvolvimento incluem, segundo a UNIDO, o aumento na defasagem tecnológica e de conhecimento em relação aos países desenvolvidos e suas implicações sobre a construção de novas capacidades, o aumento da desigualdade e sobre a igualdade de gênero.
As transformações nas ocupações serão graduais, porém profundas. O trabalho digital, como o uso de drones inteligentes, robôs e assistência hiper-customizada, será incorporado à força de trabalho. Novos setores industriais irão emergir, como a medicina digital, a agricultura de precisão, o design de robôs para a medicina e a gestão de modernização de redes. Haverá também alterações nos trabalhos existentes. Como exemplo, a realidade virtual e a realidade aumentada auxiliarão os trabalhadores "tradicionais" a elevarem a sua produtividade e a tornarem suas atividades mais seguras. É necessário então preparar o sistema educacional para lidar com estes desafios de adicionar novas habilidades à força de trabalho. Incentivos de políticas públicas serão necessários para o treinamento dos trabalhadores e será preciso que os trabalhadores aprendam a colaborar e a coexistir com máquinas inteligentes.
Embora os resultados globais sobre o emprego possam ser discutidos e a resultante final entre destruição e criação de empregos possa ser desconhecida, não existem dúvidas de que a composição dos empregos vai mudar de modo substancial; e não há ainda muita clareza sobre a natureza de todas as ocupações em que haverá perda de postos de trabalho, ainda mais porque muitas funções que são consideradas de elevada qualificação podem efetivamente ser desempenhadas – em diferentes níveis – por equipamentos ou sistemas munidos de inteligência artificial.
O impacto destas tendências tende a ser devastador para as economias que adotarem aceleradamente os modelos produtivos típicos da Indústria 4.0 sem conseguirem produzir ou participar da produção dos seus componentes materiais e de serviços: perderão os empregos destruídos pela Indústria 4.0 e não ganharão aqueles que serão criados para a criação da nova base produtiva.
Estratégias Nacionais e Tecnologia
No caso da Alemanha, há um duplo interesse ao colocar em prática sua estratégia ofensiva-defensiva de desenvolvimento da Indústria 4.0: manutenção da liderança no fornecimento de equipamentos de produção, ao se tornar pioneira na definição dos padrões de comunicação e integração do novo modelo industrial; e aumento da competitividade de seu setor industrial, em geral com saltos de produtividade e protagonismo na proposição de novos modelos de negócio.
Além do interesse, a Alemanha possui condições importantes para a sua ambição em direção a uma nova indústria, revigorada por novas tecnologias e com demanda reforçada por exportações dos seus equipamentos e soluções avançados. A principal dessas condições é uma indústria de máquinas e equipamentos sem paralelo entre os outros grandes países avançados (EUA e Japão, por exemplo), alicerçada em um tecido de empresas que formam um sistema integrado, germânico.
Há, entretanto, uma grande ameaça às aspirações alemãs: as grandes empresas de tecnologia. O grupo de companhias do mundo digital emergente, representadas por empresas novas e muito novas: Google, Apple, Facebook, Amazon, Netflix, Airbnb, Twitter e Uber, todas com sede no Vale do Silício. Elas são a referência absoluta no aproveitamento das tecnologias digitais como forma de interagir com o usuário e capturar valor definindo novos padrões de consumo. Essa relação direta com o mercado consumidor, através da captação e análise de dados, é parte importante da cadeia de valor da Indústria 4.0, e os gigantes digitais têm boas chances de absorver uma fatia considerável do valor agregado em toda a cadeia industrial, ou até mesmo se tornarem participantes ativos do mercado, a exemplo do caso do veículo autônomo (em que o veículo Google tem a pretensão - fundada ou não - de enfrentar o modelo alternativo de uma dezena de montadoras tradicionais e com posições dominantes no mercado automobilístico).
Com isso em mente, é possível imaginar uma posição de fragilidade do sistema produtivo manufatureiro, caso este não seja eficiente em incorporar a prestação de serviços e a comunicação com o mercado digital em novos modelos de negócios. Sugere-se, portanto, que, sendo referência em tecnologia e inovação, os Estados Unidos estão em posição estratégica - superior à Alemanha - para a migração rumo ao novo paradigma industrial.
As empresas do mundo digital e dos novos modelos de negócio de escala global viabilizados pela conectividade em tempo real possuem - é certo - boas vantagens no novo mundo que se anuncia. Mas também as empresas industriais podem beneficiar-se de algumas das características emergentes do novo modelo. Essa é uma equação não resolvida. Mas muitas empresas que fabricam e fornecem equipamentos para os mais diversos setores de atividade, uma vez os equipamentos vendidos e entregues, possuem hoje acesso muito restrito às condições de uso e ao desempenho real dos seus produtos. O novo modelo fornece as condições para que um equipamento ou um sistema produza permanentemente, por toda a sua vida, em tempo real, informações que permitem ao fabricante original prestar continuamente serviços associados ao seu desempenho.
Os efeitos dessa mudança são substanciais, incluindo a coleta de dados que permitem alimentar os processos de engenharia e de P&D e a manutenção que pode, assim, tornar-se preditiva. É impressionante que os sistemas de gestão hoje existentes, e abaixo deles muitos sistemas parcialmente integrados ou não integrados, bem como equipamentos de produção e outros, já produzam grandes volumes de informações que repousam, desperdiçados, em bancos de dados sem nenhuma utilidade, quando poderiam servir a muitos modelos de análise, predição e gerar ações de melhoria e mudança.
A dinâmica de inovação e produção resultante das tendências apontadas está longe de ser evidente. Por um lado, a informação da ponta comercial ganha importância e pode ter funções reforçadas de comando sobre as cadeias produtivas, seja pela capacidade de interpretar grandes volumes de informações, seja pela oportunidade de comandar a reorganização das cadeias de produção. Por outro lado, em sentido inverso, é possível que os grandes fabricantes de equipamentos e soluções integradas possam, com ajustes em seus hardwares, evoluir substancialmente em termos de informações produzidas, que os fabricantes podem, tão bem ou melhor do que os usuários dos equipamentos, capturar e transformar em base para novo conteúdo tecnológico e nova capacidade industrial.
A Quarta Revolução Industrial está sendo gestada por estratégias empresariais autônomas e promovida por articulações de instituições públicas com empresas e organizações privadas, e promete causar grandes impactos no setor industrial e na economia como um todo. Tendo sido anunciada a priori, permite a empresas e países prever suas consequências e se preparar para seus impactos; e de fato há grandes mobilizações em diversas partes do mundo. Para tanto, é preciso tratar o tema de forma séria e imediata, reunindo esforços do setor privado, governo e academia, de forma a mitigar riscos e aproveitar ao máximo as oportunidades relacionadas a essa tendência. Mais do que nunca a presença de políticas industriais consistentes e decisões estratégicas poderá afetar a dinâmica econômica e o lugar de cada país no novo ambiente.
Desafios da Indústria 4.0 para o Brasil
A indústria brasileira encontra-se, já há muitos anos, em busca de um novo modelo. O II PND pode ser considerado o último plano estruturado para a indústria nacional, estruturando novos setores industriais e aumentando substancial suas capacidades e escalas de produção. Seus seus resultados, contudo, envolvem muito mais o completamento do padrão metalomecânico e químico do que qualquer iniciativa mais ambiciosa em termos das indústrias à época emergentes – a microeletrônica e a informática.
A partir de então, ao longo dos anos 1980, a indústria prosseguiu em sua trajetória, tardia, de completar os investimentos dos projetos do II PND e de digerir as capacidades produtivas que foram criadas. Mas esse prosseguimento, que ajudou a sustentar a economia e a balança comercial brasileira, também mascarou o fato de que o mundo se encontrava àquele momento em plena migração para um novo padrão de produção industrial, de desenvolvimento tecnológico acelerado e de competitividade em bases cada vez mais globalizadas. É esse o momento em que o Brasil e a sua indústria perdem o passo.
Em que pesem os notáveis avanços que a indústria brasileira alcançou no meio século de industrialização acelerada, sobretudo entre o início dos anos 1950 e o final dos anos 1970, é forçoso reconhecer algumas características limitadoras de seu potencial dinamizador sobre o conjunto da economia (e do território) brasileiro, que tendem, no presente, a impor desafios ao desenvolvimento da Indústria 4.0 no país. Tais características são elencadas logo abaixo:
• O tecido industrial constituído no Brasil até o final dos anos 1970 reproduziu aquele que existia nos países mais avançados, com predomínio dos mesmos setores (metalmecânico e químico, bases da indústria típica da Segunda Revolução Industrial), mas as empresas estatais e as empresas multinacionais ocupavam, nessa estrutura, posições destacadas, e as empresas nacionais estavam em muitas áreas relegadas a posições secundárias. A indústria de petróleo (incluindo o refino, que foi durante muito tempo o segmento mais importante) constitui uma ilustração da importância do setor produtivo estatal. O exemplo da indústria automobilística é eloquente quanto ao papel complementar, mas secundário, das empresas privadas nacionais em setores de grande dinamismo, e ele se repete em vários outros setores, cobrindo vastas áreas da indústria (eletrônicos).
• Uma segunda característica, quando o mundo iniciava a sua transição para um novo padrão industrial no final dos anos 1970, foi a abertura relativamente modesta da indústria nacional aos fluxos comerciais. Embora seja impreciso afirmar que a indústria era fechada, uma vez que desde os anos 1950 investimentos de todos os tipos e origens internacionalizaram a base industrial brasileira, os fluxos comerciais de importação e de exportação eram relativamente modestos. É compreensível que o modelo de industrialização brasileiro, às voltas com uma severa restrição de divisas, estivesse voltado para o preenchimento do mercado interno e para o aproveitamento das crescentes oportunidades que ele ia oferecendo, com o crescimento da base econômica e o avanço da urbanização e da industrialização. Mas essa característica representa uma limitação e ela possui implicações importantes quando, nos anos 1980 e 1990, a projeção internacional das economias nacionais se dá com maior intensidade, com expoxtações, investimentos e redes empresariais que vão de parcerias pontuais a fusões e aquisições.
• Um terceiro elemento a se considerar é a modéstia dos esforços tecnológicos, um fato que muitas vezes é confundido, pelos observadores pouco familiarizados com o setor industrial, com improdutividade ou incompetência industrial. A indústria brasileira realizou um trabalho notável de constituição de uma base abrangente e diversificada, mas os sinais que a orientaram – e, a rigor, a dinâmica que a mobilizou – foram os da reprodução de processos e de produtos que existiam anteriormente e que, em muitos casos, se tornavam visíveis na pauta de importações. Este processo de industrialização foi capaz de produzir um “emparelhamento” em termos daquilo que era produzido e em muitos casos também como era produzido, mas faltavam os elementos de dinamismo tecnológico que foram se tornando crescentemente importantes nos anos 1980 e 1990.
Aceitando ou refutando a expressão Terceira Revolução Industrial como um fenômeno relevante para caracterizar o movimento industrial desde os anos 1970, é fato que ocorreu uma notável aceleração do progresso tecnológico e numerosas oportunidades foram sendo exploradas pelas empresas mais preparadas, fossem elas herdeiras de longos históricos de desenvolvimento empresarial (a grande maioria) ou empresas emergentes que souberam aproveitar as novas oportunidades para crescerem aceleradamente e se posicionarem em pontos de grande dinamismo e relevância do sistema industrial em mutação.
Quase todos os países relevantes na cena industrial internacional implantaram políticas para promoverem a inserção de suas empresas e de seus sistemas industriais no novo ambiente, muito embora existam importantes diferenças entre os objetivos imaginados por esses esforços nacionais e os resultados alcançados efetivamente.
A percepção de que a microeletrônica era um setor estratégico percorreu as políticas nacionais em muitos países relevantes em termos industriais, mas poucos foram aqueles que conseguiram posicionar-se como fabricantes qualificados dos elementos básicos da eletrônica. Todos buscaram, poucos alcançaram. Entretanto, quase todos esses países, incluindo aqueles que não alcançaram os resultados almejados, foram capazes de absorver os elementos fundamentais da revolução microeletrônica, incluindo processos produtivos dotados de graus elevados de automação e eficiência. Esta herança da revolução microeletrônica é um alicerce fundamental para informar a reflexão sobre a nova fase de desenvolvimento produtivo – a Indústria 4.0.
Diferentemente do que ocorreu na química e na metalomecânica, as duas bases da indústria do século XX, o Brasil não foi capaz de constituir um sistema industrial eletrônico. O país chegou a instalar, a partir de recursos próprios e aportes externos significativos, as indústrias metalmecânicas e eletromecânicas e indústrias químicas de produtos de alto volume (as grandes commodities), mas não foi capaz de fazer o mesmo com a microeletrônica e a química fina. Ambos possuem, em comum, uma importância elevada da tecnologia e do ritmo de mudança tecnológica.
No caso da microeletrônica, a despeito de medidas de política industrial, quatro conjuntos de dificuldades bloquearam seu desenvolvimento. Em primeiro lugar, a base de mercado mais importante para essa indústria é a de eletroeletrônicos de consumo, que à época (anos 1980) já havia se tornado, em grande medida, uma indústria importadora-montadora após sua transferência para Manaus. Em segundo lugar, o eixo ligado à indústria de telecomunicações ensejou estratégias de cumprimento da lei com espaços apenas muito limitados para desenvolvimentos tecnológicos por parte de empresas locais. Em terceiro lugar, nos segmentos que seriam hoje considerados propriamente de informática, os equipamentos de grande porte, os minicomputadores e os computadores pessoais, ensejaram vertentes de política muito díspares e dificilmente integráveis de modo consistente. Por último, mas não menos importante, vários dos setores usuários de produtos de microeletrônica em nenhum momento viram as suas demandas contempladas e ofereceram grande resistência à política adotada.
Na medida em que se considere que a Indústria 4.0, sendo ou não uma ruptura, arranca das bases anteriores, das quais aproveita bases estruturais, elementos humanos e condições funcionais, o grau de desenvolvimento alcançado na etapa anterior representa uma alavanca ou uma trava para o aproveitamento das novas oportunidades que se descortinam.
O perfil de consumo também é uma dimensão fundamental da Indústria 4.0 – e o consumo em bases contemporâneas, em um modelo típico de sociedades que alcançaram elevado grau de desenvolvimento social e material, se traduz em padrões de diferenciação muito elevados. Entre as promessas da Indústria 4.0 está o alcance de uma produção de “lotes unitários” (cada produto é único) a custos competitivos. Esse modelo produtivo está em sintonia com os padrões de consumo. Consumo totalmente diferenciado (produtos únicos) corresponde a uma produção que necessariamente precisa lidar com produção para cada demanda.
O exame da realidade brasileira revela uma importante dificuldade também neste plano do consumo. O nível de renda médio brasileiro permitiria pensar que as diferenciações de consumo possíveis estariam em medida suficiente para oferecer estímulos para o avanço da Indústria 4.0. Entretanto, o padrão distributivo brasileiro, extremamente concentrado, com amplas camadas das famílias brasileiras confinadas em espaços de consumo em que o elemento preço é o determinante principal – quando não o único – das decisões de compra. É difícil imaginar um obstáculo maior do que esse para a implantação de modelos produtivos de Indústria 4.0 de forma ampla no Brasil.
A evolução das estruturas econômica e social brasileiras desde os anos em que se rompeu o crescimento baseado na indústria como articuladora das trajetórias do sistema econômico não favorece, assim, bases nacionais para a Indústria 4.0, seja no âmbito industrial e tecnológico, de um lado, seja, de outro lado, na esfera das ocupações, da renda e do consumo.
As análises que têm sido feitas sobre a Indústria 4.0 e as oportunidades e os desafios que ela coloca para o Brasil têm se dedicado sobretudo aos temas tecnológicos e industriais. Essa abordagem coloca em evidência, sobretudo, a questão de se a indústria brasileira possui os meios técnicos e econômicos para desenvolver ou assimilar as novas tecnologias típicas da manufatura avançada. Sem pretender diminuir a importância desta abordagem, é necessário colocá-la ao lado de outras, que envolvem implicações para os diferentes espaços geo-econômicos do novo modelo industrial que se avizinha.
Um desafio ainda pouco discutido que a Indústria 4.0 impõe ao Brasil envolve a China. Diferentemente de muitos outros analistas, o sucesso industrial chinês deve-se sobretudo à sua capacidade de manter taxas de investimento – industriais e urbanas – muito elevadas, por um longo período de tempo. Os salários baixos, se algum dia cumpriram um papel relevante para o crescimento industrial e o desenvolvimento econômico chinês, não cumprem atualmente uma função relevante equivalente. Pode-se afirmar que o crescimento econômico da China está primordialmente vinculado à expansão da demanda e sobretudo do investimento.
O crescimento e o investimento da China, associados que estão a uma acelerada renovação da estrutura de capital fixo da economia, com rápido aprendizado, poderão alçar a China a uma condição superior na Indústria 4.0? A pergunta procede, pois, afinal, os chineses surpreenderam a quase todos até aqui com um percurso que, em termos econômicos, pode ser considerado “sem falhas”. Estaria a China, que hoje é a manufatura do mundo, vocacionada para assumir, na Indústria 4.0, a liderança industrial também em termos tecnológicos? A resposta a essa pergunta, por enquanto, parece ser negativa: as vantagens que constituiu até aqui são largamente dependentes de volumes elevados de produção e custos baixos, enquanto a Indústria 4.0 promete custos relativamente baixos para produtos costumizados. Promete, também, eliminar as eventuais vantagens que o custo de trabalho reduzido possa oferecer em alguns processos industriais – mesmo que esta vantagem seja muito questionável e tenha que ser relativizada quando se tem em vista que uma das mariores potências industriais ocidentais é precisamente a Alemanha, cujos salários estão entre os mais elevados no plano internacional.
São dois os elementos decisivos para o argumento de que a China não poderá ocupar, no modelo da Indústria 4.0, o lugar de destaque (crescente) que vem ocupando ao longo dos últimos 25 anos: a reintegração espacial da produção e do consumo e a importância da diversificação produtiva e dos padrões mais sofisticados (individualizados) de consumo. Ao permitir a relocalização espacial entre produção e consumo, a gigantesca máquina fabril chinesa perde inevitavelmente competitividade e importância, e a existência de padrões de consumo cada vez mais individualizados e costumizados fragiliza ainda mais a posição manufatureira das empresas, das indústrias e dos países baseados no binômio escala-custo, como é o caso da China.
Existe uma implicação desta possível trajetória da Indústria 4.0 da China para o Brasil: para onde dirigirá a China a sua crescente sobrecapacidade, à medida que os mercados centrais, para onde ela destina hoje os seus grandes volumes de produção, se tornem menos acessíveis em razão da reintegração espacial produção-consumo propiciada pelo novo modelo industrial em construção tanto na Europa como nos EUA? A resposta a essa pergunta não pode ignorar que os mercados de menor poder aquisitivo ou empobrecidos das periferias do sistema global possuem padrões de consumo dependentes muito mais dos elementos ligados a preços do que dos elementos de qualidade e diferenciação. Tais mercados, como o brasileiro, são, por isso, alvos adequados para o redirecionamento que a indústria chinesa terá que fazer para ocupar suas sobrecapacidades.
Recomendações para uma estratégia nacional 4.0
A estrutura industrial brasileira é considerada bastante diversificada. Essa proposição era certamente mais fiel à realidade ao final do longo período de expansão industrial que se encerrou entre o final dos anos 1970 e o início dos anos 1980 do que é hoje, após os dois movimentos – simultâneos – que provocaram o seu retardo: o avanço acelerado dos processos de transformação dos sistemas industriais nacionais e global e a prolongada crise doméstica, que tem impedido a sustentação dos investimentos industriais. Em que pesem os efeitos desses dois fatores, não são eles que representam o principal obstáculo para que o Brasil possa participar de modo ativo do movimento em direção à Indústria 4.0.
O Brasil possui certamente uma das mais internacionalizadas de todas as indústrias existentes no mundo. Desde os anos 1950, muito antes que os países asiáticos se tornassem receptores de fluxos relevantes de investimento direto estrangeiro, empresas de todas as origens geográficas implantaram no Brasil unidades de produção relevantes, precedidas ou não por fluxos comerciais de importação. Em muitos casos, a unidade brasileira é, ou foi durante muito tempo, a principal unidade implantada fora do país de origem da empresa. Este é um fator que joga a favor das possibilidades de o Brasil se tornar um locus para a Indústria 4.0, uma afirmação que se revela mais realista ainda se considerarmos o fato de que algumas das principais empresas que participam em posições de liderança das articulações em prol da nova indústria possuem unidades no Brasil.
A questão mais relevante, portanto, não é sobre as possibilidades que o Brasil tem ou não tem de participar da Indústria 4.0, mas sobre as modalidades dessa participação. É evidente que o modelo da Indústria 4.0 impõe um patamar mínimo muito elevado em termos de difusão das modernas tecnologias que a compõem, e que isso representa um desafio importante para muitas das empresas que compõem um sistema industrial combalido por muitos anos de instabilidade crônica e subinvestimento, como é o caso do Brasil. Entretanto, muitas das empresas transnacionais que compõem esse sistema estão em condições de internalizar para as suas filiais brasileiras os desenvolvimentos concebidos e implantados em seus centros principais – mesmo que o façam com defasagens. O mesmo pode ser dito das grandes empresas nacionais cujo porte as tornará clientes cobiçados por todos os principais provedores das soluções da Indústria 4.0. O quadro mais provável é que as empresas dos principais segmentos industriais consigam acompanhar a transição para o novo modelo industrial sem sobressaltos ameaçadores.
Mas a aspiração industrial brasileira pode se resumir a acompanhar – com defasagem menor ou maior – o movimento global, na condição de importador de tecnologias, soluções, bens e serviços associados à Indústria 4.0? Uma tal solução certamente pode contribuir para a modernização de plantas, empresas e segmentos industriais variados, mas ela está longe de aproveitar o potencial associado a um conjunto de novas tecnologias transformadoras do sistema industrial.
Existem pelo menos duas perspectivas para examinarmos o potencial dessas tecnologias transformadoras: mercado e indústria. Quando se discutem as perspectivas do Brasil na Indústria 4.0 com profissionais ou equipes de grandes empresas provedoras de soluções 4.0, o mais comum é que elas revelem a percepção de que o Brasil é um mercado com grande potencial para as suas soluções, mas é muito raro que associem o sistema industrial brasileiro ao desenvolvimento dessas soluções ou que se vejam partícipes do processo de criação de soluções no Brasil. Dito de outro modo: na Indústria 4.0 o Brasil é mercado, não é indústria; é cliente, não é produtor. E assim poderá permanecer se nada for feito para potencializar as oportunidades industriais existentes no mercado brasileiro e em outros mercados ao alcance das empresas brasileiras e das unidades locais de outras empresas.
Mas quais são as diferenças entre uma e outra solução? Que vantagens e que desvantagens possui a abordagem mercado com relação à abordagem industrial?
São duas as vantagens imediatas da opção pelas soluções prontas, disponíveis globalmente uma vez que elas sejam viabilizadas pelas empresas e pelos consórcios que lideram o seu desenvolvimento: tempo e custo. Se uma configuração industrial e econômica foi concebida, implantada, testada e comprovada em um determinado ambiente (Alemanha, Estados Unidos, Japão, por exemplo), ela poderá ser estendida a outros espaços, e reproduzida com eventuais adaptações. Tal solução terá, também, a vantagem de seus componentes estarem regulados por preços internacionais, mesmo que no caso de países não cêntricos esses preços devam ser acrescidos dos custos adicionais típicos dessa condição.
A opção por um desenvolvimento local mais forte envolve o ganho da produção local e o da mobilização de recursos existentes e da criação de novos. É mais do que trocar importações por produção local, por mais que ela envolva ganhos consideráveis. Trata-se de desenvolver novas competências, mobilizando conhecimentos existentes e produzindo novos, articulando essa produção com empresas existentes e novas. É evidente que o caminho da construção pode envolver custos de desenvolvimento, mas envolve também o desenvolvimento de competências tecnológicas e industriais.
A disjuntiva entre uma opção e outra pode ser resumida em duplo binômio: prazo e custo mais favoráveis, de um lado, aprendizado e novas competências, de outro lado. Os parâmetros precisos desta decisão são desconhecidos e a rigor são muito difíceis de serem determinados. As vantagens associadas à solução externa podem desaparecer ao longo do tempo, se as curvas de aprendizado da opção pelo desenvolvimento local de soluções se mostrarem efetivas, mas esse resultado não está assegurado a priori e a experiência mostra que ele pode estar associado a fracassos importantes (como foi o caso do nosso Programa Nuclear), ao lado de sucessos dignos de nota (como no da Aeronáutica). Por outro lado, é também necessário considerar que as promessas de curvas de aprendizado muito ambiciosas e velozes podem esbarrar em dificuldades intransponíveis que as frustrem, seja por razões internas (ao setor ou às empresas), seja por razões externas (estruturais e sistêmicas).
Um elemento importante associado à opção mais autônoma envolve o conjunto de transbordamentos (spill-overs) decorrentes do desenvolvimento de novas competências. A chamada reinvenção da roda é uma expressão caricatural que não descreve a riqueza envolvida no aprendizado, esteja ele associado a simples mimetismo ou exija doses de engenharia reversa. Os caminhos do aprendizado são longos e eles envolvem etapas de reprodução deficiente e de reprodução proficiente antes que possam atingir estágios de autonomia e criatividade. O reconhecimento do potencial dessa trajetória, entretanto, não deve levar à escolha automática da opção mais autônoma, pois ela envolve custos que demandam dimensionamento (tentativo) ex ante e acompanhamento sistemático ao longo do percurso.
É crucial que a escolha entre as duas opções seja informada. As vantagens e desvantagens de cada uma das opções – e das combinações possíveis entre elas – precisam ser consideradas por todas as partes envolvidas, incluídas aquelas que são os ganhadores diretos da opção “pacote pronto” e não têm ganhos diretos na opção do desenvolvimento de curvas de aprendizado coletivas pelo sistema industrial local. É possível sustentar que existem ganhos indiretos associados ao enriquecimento da estrutura produtiva e aos fluxos de renda e consumo decorrentes, mas dificilmente uma estratégia empresarial individual pode sobrepor esses ganhos difusos àqueles que são decorrentes de vantagens diretas e imediatas (como as decorrentes da opção “pacote pronto” testado e com riscos mínimos). Os ganhos diretos podem prevalecer nas opções empresariais dos setores que não são fornecedores, mas usuários.
A persuasão desses interesses usuários por empresas e segmentos industriais beneficiários diretos da opção mais autônoma envolve o reconhecimento liminar de que as vantagens desta opção são tudo menos automáticas; e que elas só podem ser efetivamente construídas se a estratégia a ser implantada for capaz de explicitar o enfrentamento dos custos associados, a sua diluição no sistema e a sua superação ao longo do tempo. Os exemplos das dificuldades brasileiras em tratar esta matéria de modo apropriado têm contribuído sobremaneira para criar, no empresariado, nos poderes públicos e na sociedade de uma maneira geral, anticorpos mais ou menos automáticos contra toda e qualquer proposta que possa ser considerada um custo imediato, mesmo que ela possa, sob outra perspectiva, ser um investimento de retorno potencialmente muito favorável. O maior fracasso possível de uma política de desenvolvimento ou de uma política industrial é a perda de sua legitimidade perante a sociedade e, mais grave ainda, perante amplos segmentos do empresariado, mesmo quando esses segmentos são produto – consciente ou não – de políticas análogas que foram adotadas no passado. Em que pesem estas dificuldades, há espaço para avanços e para a constituição de uma estratégia brasileira para a Indústria 4.0.
O Brasil possui empresas e instituições com condições de construir uma estratégia consistente e vigorosa em direção à Indústria 4.0. O seu sistema de ciência dá sinais de vitalidade importantes. No âmbito da tecnologia, apesar de tantos observadores continuarem a ver apenas a metade vazia do copo, os sinais de vigor são crescentes e cada vez mais promissores, com resultados que mostram o longo caminho já percorrido e resultados cada vez mais robustos. Existem pelo menos dois grandes avanços cuja importância não é devidamente apreciada. O primeiro refere-se à demografia da inovação: mais e mais atores, privados e públicos, das mais diversas áreas, estão mobilizados pela e para a inovação. O segundo é de natureza institucional: para além das barreiras que tantos transtornos causam aos atores (empresas, instituições, indivíduos), o aprendizado tem ajudado as empresas a identificarem os caminhos mais apropriados para a viabilização de seus projetos e das suas estratégias. Nesse espaço destaca-se a iniciativa da Confederação Nacional da Indústria de promover, com o apoio financeiro do BNDES, a criação dos Institutos SENAI de Inovação, distribuídos pelo território nacional e vocacionados para competências específicas. O tecido empresarial, mesmo após tantos anos de instabilidades e crises, possui uma elevada diversidade e um grau de integração muito apreciável. Ao seu lado, atuando de forma muito complementar e integrada, a Embrapii vem também propiciando o aumento do número e da qualidade dos projetos de desenvolvimento tecnológico da indústria, em produtos e processos. Existem cadeias produtivas muito dinâmicas e mesmo nos segmentos mais rarefeitos do complexo eletrônico-informático existem competências e esforços que já produziram resultados concretos e promissores para o futuro.
A mobilização deste conjunto de elementos para a construção de uma estratégia nacional para a Indústria 4.0 exige como preliminar a viabilização de uma agenda compartilhada: o Brasil quer mesmo ter um sistema industrial ou podemos nos contentar com as nossas vocações – as naturais e as remanescentes daquelas que foram construídas por ações deliberadas de empresas e programas públicos – que se traduzem em ilhas de excelência?
Um sistema industrial é muito mais do que algumas áreas de excelência, mesmo que elas sejam numerosas. Um sistema industrial possui encadeamentos múltiplos ao longo de cadeias e vetores transversais que perpassam várias cadeias. Quando um destes vetores, articulado em um nó específico, gera progresso tecnológico, ele gera também a capacidade de transmitir esse efeito a outros segmentos, a outras cadeias. Avanços pontuais alimentam avanços gerais. Fortalecem-se as cadeias e fortalecem-se os vetores transversais. O sistema industrial ganha vigor e solidez. Uma estratégia articulada para a Indústria 4.0 pode ser um caminho promissor para que o Brasil reencontre o caminho do seu desenvolvimento e de uma estabilidade alicerçada no crescimento da produção e dos investimentos.
Dez propostas de ações para uma estratégia nacional 4.0
Os autores sugerem algumas medidas, apresentadas a seguir, que poderão auxiliar o desenvolvimento da Indústria 4.0 no País. Um primeiro conjunto de ações não se refere diretamente à Indústria 4.0, mas sim à criação das condições para que a indústria de diversos segmentos e estratos de empresas possa se preparar para esse segundo esforço que será o padrão industrial emergente, em definição nos países líderes. Foram também propostas medidas para a formação de recursos humanos e competências tecnológicas que serão necessários à Indústria 4.0, bem como para a transformação do tecido industrial, seja o de pequenas empresas, seja o de empresas de base tecnológica, seja ainda o das grandes empresas e das cadeias industriais em que o Brasil possui posição de protagonismo global. Nesse sentido, as sugestões incluem:
1. A vinculação dos programas de financiamento público para a compra de máquinas (Finame) ou o acesso aos programas de crédito de capital de giro (como o Cartão BNDES) à contratação de serviços de consultoria em programas de alto impacto em melhoria de qualidade e produtividade baseados na difusão de práticas de manufatura enxuta e congêneres. Os Institutos Senai de Inovação, as Escolas Técnicas do Senai, os Institutos de Pesquisa Tecnológica deveriam tornar-se as agências promotoras em larga escala desse processo de difusão, aproveitando-se de experiências bem sucedidas, como a Indústria Mais Produtiva.
2. Uma ação análoga, mais direcionada, deveria ser realizada em todos os APLs – Arranjos Produtivos Locais – relevantes. As atividades de formação e capacitação das unidades locais do Senai ou escolas técnicas locais também podem constituir mecanismos de difusão, alçando essas aglomerações industriais a novos patamares de produtividade e eficiência, preparando-as para modelos mais avançados de organização da produção por meio de tecnologias de base microeletrônica e outras formas de automação.
3. A demanda da base industrial por tecnologias e métodos de produção mais avançados deveria ser completada por estímulos ao desenvolvimento de soluções tecnológicas baseadas em artefatos e tecnologias de base microeletrônica. Os programas federais e estaduais de desenvolvimento tecnológico possuem os recursos de financiamento necessários para a criação e a ampliação das competências empresariais nessas áreas. Programas como o Pappe – Subvenção, da Finep, seus congêneres estaduais (incluindo com destaque o Pipe da Fapesp) e as linhas de financiamento à inovação do BNDES possuem o arcabouço adequado para a formulação e a execução de programas bem adaptados às necessidades.
4. Um possível desdobramento destas ações elencadas poderia ser a constituição de protótipos de unidades de produção com elevados índices de automação a partir dos Institutos Senai de Inovação, com financiamento compartilhado entre o próprio Instituto, as empresas interessadas (por exemplo, um consórcio de empresas do setor beneficiário da solução em desenvolvimento), o Governo Federal (com recursos orçamentários alocados à Embrapii) e o governo do Estado onde a solução seria desenvolvida e implementada.
5. A formação de cursos técnicos, de graduação e de pós-graduação nas áreas que representam os alicerces da Indústria 4.0 deveria ser uma construção articulada entre os entes federais e as unidades da federação, evitando redundâncias e sobreposições das iniciativas. A ideia norteadora deveria ser a de reunir em alguns dos principais centros de formação de recursos humanos brasileiros as competências fundamentais que formam a base da Indústria 4.0. Cada um dos principais alicerces tecnológicos da Indústria 4.0 desenvolver-se-ia a partir de um centro que disponha de algumas das competências básicas e um projeto de reunir as demais e avançar consistentemente em direção à fronteira do conhecimento em termos científicos, tecnológicos, didático-pedagógicos e de alianças industriais abrangentes, com os principais setores industriais interessados. A partir desse “vetor avançado”, duas ações seriam desdobradas posteriormente: uma de integração, entre as diversas competências, e uma de difusão, para outras unidades da federação e outras instituições.
6. Outra ação incluiria a atração de recursos humanos altamente capacitados. A “importação de cérebros”, sejam eles jovens talentos ou experientes, deveria ser reforçada por um programa de apoio à vinda de empreendedores de base tecnológica com apoio de programas públicos.
7. A formação de recursos humanos deve estar articulada à formação de bases tecnológicas adequadas à construção e à difusão de soluções. O BNDES e a Finep, para não falar das demais instituições públicas de fomento, têm sido tímidos frente aos riscos tecnológicos nos setores vitais para a indústria e a economia do futuro. A criação de programas como o Criatec pode ser considerada apenas como um protótipo daquilo que o Brasil efetivamente precisa: uma sementeira numerosa, de iniciativas múltiplas, capazes de preencher com redundâncias o leque de oportunidades tecnológicas, filtradas seletivamente em processos competitivos promovidos por soluções diversas e por suas respectivas capacidades de construírem modelos de negócios e alianças empresariais viáveis.
8. O BNDES e a Finep, em articulação com as instituições estaduais análogas e com as unidades do Sistema S, deveriam tomar para si a responsabilidade de promoverem a criação anual de centenas de empresas de base tecnológica para a Indústria 4.0. Um instrumento factível para essa trajetória poderia ser um bônus de subscrição de duas etapas: numa primeira etapa o banco subscreve um aporte de até R$ 500 mil para um projeto de 12 a 24 meses destinado ao desenvolvimento de alguma solução, idealmente com risco elevado, associado a planos de negócio ousados. Havendo sucesso nessa primeira etapa, o aporte na segunda etapa seria de até R$ 2 milhões, para planos de 24 a 36 meses, necessariamente vinculados a planos de comercialização de escala global. Não se espera que a empresa seja capaz, na primeira etapa, de atrair investidores privados, mas é desejável que eles já possam estar presentes na segunda etapa.
9. A constituição de um tecido de empresas detentoras de tecnologias estruturantes da Indústria 4.0 pode se beneficiar do apoio de empresas nascidas em outros ambientes e portadoras de soluções ou de elementos constituintes de soluções apropriadas. Em vários sentidos, a Indústria 4.0 é um mosaico e ele pode ser composto com elementos locais e elementos vindos de outros ecossistemas de inovação, mas detentores de tecnologias capazes de interagir e enriquecer o sistema local. Um instrumento apropriado para enfrentar esse desafio é o apoio financeiro à aquisição de ativos tecnológicos no exterior. Essa compra, que hoje é penalizada, deveria ser incentivada, desde que ela passe a integrar uma solução de natureza local e com potencial de projeção internacional (uma vez integrada).
10. Como as estratégias das grandes empresas devem orientá-las em direção a constituírem seus próprios caminhos para o modelo 4.0, por meio de soluções globais aplicadas localmente, a formação e a consolidação de uma base industrial fabricante de soluções 4.0 têm que contar com estímulos públicos capazes de reorientar as estratégias empresariais privadas para os caminhos que são, em curto prazo, mais arriscados e custosos, mas geram retornos de médio e longo prazo mais vantajosos. Em linhas gerais, um modelo possível seria: os entes federais (incluindo os principais ministérios e os seus organismos de execução de políticas) lançam um edital de chamamento de propostas setoriais para a formação de consórcios industriais e tecnológicos de Indústria 4.0. Cada um dos consórcios recebe um aporte (não reembolsável) de até R$ 5 milhões para o detalhamento de uma proposta técnica de desenvolvimento de uma solução setorial para a Indústria 4.0, sendo apoiáveis todas as propostas que reúnam ao menos 5 empresas com faturamentos superiores a um patamar mínimo (elevado) ou ao menos 100 empresas de qualquer tamanho. Os dois modelos destinam-se a promover soluções para setores concentrados e para setores pulverizados. As cinco propostas mais ousadas e mais consistentes serão apoiadas com recursos não reembolsáveis de R$ 100 milhões. Não deveriam ser premiadas propostas de um mesmo setor industrial. Todas as propostas teriam como contrapartida o apoio a empresas de base tecnológica portadoras de soluções promissoras e o compartilhamento não oneroso da propriedade intelectual das soluções geradas para outras indústrias não concorrentes.