Carta IEDI
Indústria 4.0: O Futuro da Indústria
No âmbito do II Encontro Nacional de Economia Industrial e Inovação (II ENEI), foi realizada, no dia 02 de agosto de 2017, a “Mesa IEDI: O Futuro da Indústria”, cuja discussão resumimos nesta Carta (clique aqui para acessar o material do evento na íntegra). Organizado pelo diretor do Instituto de Economia da UFRJ, David Kupfer, o evento contou com a participação de Luciano Coutinho da UNICAMP como palestrante e de Afonso Fleury da USP como comentador. Pedro Wongtschowski, Presidente do IEDI, coordenou os trabalhos.
A magnitude da crise que a indústria brasileira sofreu entre 2014 e 2016, bem como a fragilidade da incipiente recuperação da primeira metade de 2017, como ressaltou Luciano Coutinho, criam desafios importantes para que o setor se prepare para as profundas transformações tecnológicas que começam a redefinir o processo de produção industrial no mundo.
Este é um fator de preocupação, segundo o palestrante, porque a indústria do futuro não vai dar tempo para a indústria brasileira se restabelecer. Nossos concorrentes já estão ativamente envolvidos em novas políticas de promoção do desenvolvimento industrial e da inovação. Tais políticas, que começam a ser desenhadas por países como EUA, Alemanha, Japão, China, dentre outros, em nada se assemelham aos paradigmas protecionistas ou da industrialização por substituição de importações, mas concedem, por meio de formas muito proativas, o suporte à inovação industrial.
A incorporação no processo industrial de novas tecnologias, como a internet das coisas e inteligência artificial, que vem sendo denominada de Indústria 4.0, abre a possibilidade de integrar diferentes atividades internas à empresa, mas também toda sua cadeia produtiva, dos fornecedores de primeiro grau ao consumidor. Isso permitirá, por exemplo, otimizações logísticas hoje inalcançáveis ou a personalização radical da oferta de bens e serviços.
Como resultado, Coutinho aponta a ocorrência de grandes mudanças de paradigma. A título ilustrativo, a indústria automobilística deve passar por profunda transformação com a dominância da entrada do automóvel elétrico em primeiro lugar, mas posteriormente com a entrada do veículo autônomo. Uma perspectiva plausível é que no futuro a propriedade do automóvel seja dispensável.
Coutinho defende que, embora relativamente atrasada em relação a esse processo de sensorização e integração inteligente, não devemos imaginar que a indústria brasileira caminhe para um cadafalso. O que é necessário é refletir sobre como usar as vantagens competitivas e os potenciais atuais para defletir riscos e aproveitar as oportunidades. Neste sentido, o papel da prospectiva tecnológica ganha um relevo especial na concepção de políticas, aspecto em que também estamos atrasados frente a outros países.
Em sua intervenção, Afonso Fleury identifica quatro áreas que devem ganhar projeção no futuro: a da robótica e a de inteligência artificial; a da ciência da saúde humana, a de codificação do dinheiro, e a de big data, que estão se desenvolvendo mais rapidamente em países onde existe um link entre o tecnology push e o demand pull. Esses países parecem ser justamente aqueles que mais ativamente desenham políticas para acelerar o surgimento da manufatura avançada.
A despeito dos inúmeros riscos que o sistema industrial brasileiro corre com a emersão das novas tecnologias, Fleury acredita que o desenvolvimento da indústria avançada no país, em condições de liderança em cadeias globais de valor, poderá apoiar-se em áreas como biodiversidade, produção de metais raros e nas indústrias criativas.
Em seus comentários finais Pedro Wongtschowski aborda a ideia que tem se difundido no país de que a indústria é dispensável no processo de desenvolvimento econômico no Brasil. Além de ser o grande gerador de receitas fiscais para o Estado e de empregos de qualidade, o setor industrial é um destacado polo criador de novas tecnologias, fundamentais não apenas para o aumento da complexidade de produtos e processos no âmbito da indústria, mas também para o desenvolvimento de outros setores.
Para o Presidente do IEDI, “é uma enorme ilusão imaginar que podemos ter um agronegócio e um setor de serviços dinâmicos sem uma atividade industrial relevante e importante”. Nesse sentido, a inserção do Brasil na Indústria 4.0 é premente, exigindo inclusive novos e mais efetivos mecanismos de fomento à ciência, tecnologia e inovação. “Talvez nós não estejamos nos preparando suficientemente para que a indústria nacional sobreviva neste novo cenário, que cresça e se reposicione”.
Palestra de Luciano Coutinho
A indústria brasileira caiu fortemente entre 2015 e 2016 e agora está oscilando, sem uma tendência clara de recuperação. Este é um fator de preocupação, porque a indústria do futuro não vai dar tempo para a indústria brasileira se restabelecer. Nossos concorrentes já estão ativamente envolvidos em novas políticas de promoção do desenvolvimento industrial e da inovação, principalmente da inovação industrial. Não tem nada a ver com os paradigmas de industrialização por substituição de importações ou por proteção. Outras formas muito proativas de suporte à inovação industrial começam a ser desenhadas na maior parte das economias. Eu vou falar um pouco dessas mudanças, talvez retome o tema das políticas, que é um pouco indissociável.
Nós estamos trabalhando, por meio de uma parceria entre a UNICAMP e a UFRJ, em um projeto para a CNI, exatamente na reflexão sobre como essas transformações tecnológicas irão mudar de maneira profunda vários complexos da indústria, inclusive a própria configuração da indústria. Nós nos focamos em oito grandes complexos de tecnologias, sendo quatro deles relacionados às tecnologias de informação. A internet das coisas, as redes de comunicação e a segurança de rede, que são fundamentais para dar suporte à internet das coisas. Dentro da internet das coisas, e de fundamental importância para a indústria, está a manufatura avançada, também chamada “indústria 4.0”, e um componente novo chamado hoje de inteligência artificial, que são sistemas cognitivos que estarão embutidos nos equipamentos para permitir que eles possam “enxergar”, “entender”, “raciocinar” de uma maneira ainda tutorada, no sentido de que os equipamentos vão poder gerar e testar hipóteses para, a partir disso, decidir agir ou não agir, agir de uma forma ou agir de outra forma. Isso tem sido chamado de machine learning, “aprendizado das máquinas”.
Vou começar do começo e falar um pouco sobre a internet das coisas, que deve ocorrer em ondas sucessivas de sensorização ou de distribuição em objetos, equipamentos, bens de consumo e, no limite, pessoas, que estarão enfim equipadas ou “tagueadas” com um pequeno chip emissor de radiofrequência e de identidade, ou com pequeno sistema que, além de emitir identidade, localização etc., será capaz de acumular e processar dados ou de realizar pequenas operações microeletromecânicas.
Teremos diversos tipos de sensores, alguns deles atuadores, com capacidade eletromecânica ou microeletromecânica, distribuídos em toda a frota de veículos e nos sistemas de distribuição de água, de energia e nos sistemas de iluminação pública. Para dar um exemplo mais palpável de projetos que já existem e deveriam estar em curso: a troca de todas as luminárias de uma cidade como São Paulo por luminárias de led, equipadas com pequenos processadores ou sensores que permitiriam dimerizar, otimizar, avisar ao sistema quando a lâmpada está mais fraca; um sensor de temperatura, que faz a luz brilhar com mais intensidade se alguém passa embaixo dela à noite e brilhar menos quando não tem nada para iluminar. Isso significa um potencial de economia de energia de mais de 30% e, obviamente, é um sistema que se autofinancia e se amortiza rapidamente.
Esses são exemplos relativamente pobres para o potencial da internet das coisas. Existem projeções que variam dependendo do consultor. Em 2020, teremos 15 bilhões; em 2030, 30 ou 35 bilhões, e alguns mais otimistas chutam números mais altos: em 2050, alguns consultores falam em 100 bilhões de coisas ligadas à internet através desses sensores. Obviamente esses equipamentos estarão produzindo informação e exercerão uma pressão muito forte sobre a rede de comunicações, que terá que ganhar potência e cobertura para poder tornar realidade esses processos.
Sem dúvida, há problemas e discussões sobre como vai ser a arquitetura dessas redes. Por exemplo, esses sensores terão que comunicar diretamente com a nuvem ou com o servidor? Não, eles passarão por gateways e por estamentos intermediários de processamento. Existem vários desenhos das camadas técnicas e das camadas de software para usos e aplicações otimizadoras do funcionamento dos sistemas.
Se pensarmos, por exemplo, que a indústria automobilística tende a ser objeto de profunda transformação com a dominância da entrada do automóvel elétrico em primeiro lugar, mas posteriormente com a entrada do veículo autônomo, cuja projeção é um pouco mais dilatada, estamos em uma corrida nessa direção. Uma perspectiva plausível é que no futuro a propriedade do automóvel será dispensável. Poderemos chamar um veículo qualquer pelo smartphone e ele nos levará ao aeroporto, sem motorista.
Então, trata-se também de mudanças de paradigma que esses sistemas de internet das coisas poderão produzir na sociedade, com implicações muito fortes sobre os sistemas industriais. Obviamente, a indústria será afetada por essa transformação, primeiro pela possibilidade de integrar todo o sistema produtivo, não mais necessariamente por redes corporativas, mas via internet. Segundo, não só para integrar a empresa por dentro, mas a cadeia produtiva inteira. Dos fornecedores de primeiro, segundo e terceiro grau, integrando a cadeia para frente, da distribuição e chegando até o consumidor. Como esses sistemas geram muitos dados, é preciso uma estruturação da base de dados e capacidade de analisá-los, reconhecer padrões e subpadrões e extrair informações deles por meio de algoritmos matemáticos, com o que haverá a capacidade de identificar, por exemplo, acidentes, desgastes, períodos de manutenção, defeitos e outros. Tudo isso permitirá otimizações logísticas hoje não alcançáveis.
A possibilidade de que as preferências dos consumidores possam ser analisadas de uma maneira muito mais rica e detalhada vai permitir até a chamada “personalização radical” da oferta de bens e serviços. Então, a indústria de transformação vai sofrer modificações profundas no horizonte de 10 ou 20 anos e, em vários casos, essas mudanças tecnológicas poderão levar a mudanças paradigma, de forma que a liderança de determinados oligopólios antigos, alguns deles centenários, será subvertida. Outros players entrarão no sistema. Quem é o grande concorrente dentro da indústria automobilística do futuro? Não são as incumbentes de hoje. É a TESLA. É a Google, que quer entrar no sistema. Isso porque o automóvel autônomo depende de um piloto automático inteligente, que está embutido na capacidade de enxergar, processar e tomar decisões autônomas por meio de um sistema automatizado, computadorizado e dedicado.
Dentre essas transformações, a questão da “inteligência artificial”, é a mais interessante e também a mais difícil de avaliar. Quando estamos em um momento de rupturas de grandes ciclos tecnológicos, aquilo com que estamos acostumados, como o conceito de trajetória, se dissolve. Não se tem um incrementalismo e uma trajetória discutíveis. A dose ou as trajetórias conhecidas podem colapsar. Tem-se mudanças de configuração muito fortes e a inteligência artificial começa com a acumulação e estruturação de dados, a possibilidade de analisá-los com um grau de profundidade a que várias famílias de algoritmos matemáticos recorrem, que vão desde das nossas conhecidas ferramentas estatísticas, que refazem todas as regressões do último livro texto de econometria, até os diversos ramos da estatística e da matemática que são usados para simular redes em níveis e subníveis que imitam o funcionamento de redes neurais. Mas, o objetivo é montar sistemas cognitivos e acumular conhecimentos. Esses sistemas cognitivos estão avançando rapidamente. O reconhecimento de linguagens, a tradução simultânea, a robotização da linguagem, o reconhecimento de imagens etc. A acuracidade do reconhecimento de imagens em vários computadores hoje, por exemplo, já supera a capacidade humana. A fronteira agora está no reconhecimento de imagens em movimento, fundamentais para o piloto e para a navegação automática, porque a imagem parada já está reconhecida. A navegação automática também pode incluir aeronaves no futuro.
A inteligência artificial vai significar o acúmulo dessas capacitações nos equipamentos. Existem vários problemas associados a essas trajetórias, que podem engripar ou criar um breakthrough, que as acelere. Há um elemento de incerteza em relação a essas trajetórias. Mas, outro aspecto importante é que, nos últimos 5 ou 6 anos, houve um avanço muito grande da combinação da capacidade de supercomputação com instrumentação científica altamente poderosa – e não estou falando apenas de microscopia, mas de vários equipamentos, espectrografia etc., muitos equipamentos científicos que, em sua grande maioria, foram empoderados pela capacidade de supercomputação, e disso resulta um avanço na ciência da matéria e das nanotecnologias que se trifurca, porque há uma nanobiotecnologia, uma nanoquímica e uma nanopartícula de estado sólido. Uma nano de materiais tipo grafeno, entre outros, que vai pelo caminho da química e que permite simulação de diferentes modelagens para a química, além de uma nano que já permitiu uma redução radical do custo de mapeamento do genoma de qualquer indivíduo. O genoma humano, que há 15 anos custava 100 milhões de dólares, vê agora seu custo caindo para mil dólares e há quem fale que em mais algum tempo poderá custar 100 dólares. Mais do que isso, o desenvolvimento da biotecnologia, hoje, permite intervenção no DNA extremamente micro, nano, de forma a trocar uma letrinha, um nucleótido específico do genoma. Se existe a possibilidade de ter um marcador naquele trecho do DNA onde há uma fragilidade ou uma característica qualquer que precise ser trocada, pode-se evoluir para uma engenharia genética muito mais precisa e sofisticada, que vai dispensar a transgenia. Há algum tempo, essa transgenia era altamente polêmica, porque usava-se o gene de uma espécie de bactéria e o colocava em uma planta ou em um ser vivo, o que gerava preocupações éticas e regulatórias justificáveis que bloqueavam o procedimento. Esse obstáculo será removido, porque opera-se um aperfeiçoamento no gene de um indivíduo para gerar matrizes ou indivíduos e depois fazer ou cultivar sua multiplicação aplicando o resultado para a agricultura e para saúde humana. Com isso, muda-se de paradigma.
O paradigma da medicina vai mudar. Hoje, ele é de tentativa e erro: testamos drogas, verificamos todos os seus efeitos colaterais etc. É necessário um processo muito longo que pode ser abreviado e modificado por uma medicina de natureza muito mais preventiva do que curativa, e que se baseia na compreensão de como o mecanismo molecular de uma determinada doença se comporta e como ele pode ser objeto de intervenção. Então, nós estamos tentando entender como as biotecnologias, os materiais, as nanotecnologias – no fundo estas 3 são de natureza nano – irão transformar indústrias e setores e que impactos relevantes terão sobre a indústria do futuro.
Outro aspecto que nós escolhemos explorar no projeto com a CNI são as baterias, a conservação de energia. Por uma razão muito simples: a internet das coisas vai exigir bilhões de sensores, mas não haverá um fio ligado a uma tomada, porque a maior parte deles são dispositivos móveis. Por isso, é preciso que existam pequenas baterias eficientes, com capacidade de duração de pelo menos 10 anos. Então, as tecnologias de baterias e de conservação de energia – para conservar a energia eólica, solar etc – precisam desenvolver dispositivos potentes, tornando as energias renováveis muito mais eficientes. As discussões sobre baterias são, na verdade, discussões sobre eletroquímica, e, pelo menos até o presente, levantam questões superinteressantes.
Fechando o capítulo, qual é a importância desses exercícios? Não é algo que estamos fazendo por puro diletantismo. Estamos tentando ao máximo baixar essa reflexão para uma perspectiva de 5 ou 10 anos, quando os avanços já estarão mais visíveis ou plausíveis. Quais são os impactos que nós deveríamos esperar desses processos sobre a indústria mundial e, por consequência, sobre a indústria brasileira?
Não devemos imaginar que a indústria brasileira, embora relativamente atrasada em relação a esse processo de sensorização e integração inteligente, vá para um cadafalso. Devemos, sim, refletir sobre como usar as vantagens competitivas e os potenciais atuais para defletir riscos e aproveitar as oportunidades. Essa é uma reflexão que precisa ser feita sob pena de uma morte súbita. Assim, se deixarmos de avançar, de repente estaremos acumulando um atraso difícil de superar ou então seremos atropelados pela entrada disruptiva de um outro paradigma.
Então, o papel da prospectiva tecnológica ganha um relevo especial na concepção de políticas. Nós também estamos atrasados neste aspecto, porque a maior parte dos países está fazendo uma prospectiva tecnológica fina para poder pensar em políticas. Eu, particularmente, vejo que a indústria e os agronegócios brasileiros deveriam pensar nessas adaptações, em como acumular as capacitações e buscar focos em oportunidades novas, algumas delas, inclusive, acessíveis a pequenas empresas.
Um dos consensos sobre a rede de internet é que cerca de metade das novas soluções, técnicas de hardware e software ou de equipamentos associados à internet das coisas, como sensores, será desenvolvida por startups. Então, pensar por exemplo, na remoção da barreira regulatória que existe em relação aos transgênicos abre um espaço muito grande para que pequenas empresas entrem no campo de biotecnologias avançadas e contestem o paradigma do oligopólio que domina o mercado mundial de sementes, por exemplo. Existirão muitas oportunidades que podem ser puras, isto é, sem riscos. Ou se aproveita e entra no jogo, ou não se aproveita e perde o bonde. Mas existem também os riscos disruptivos.
A comunidade que estuda economia industrial não pode mais não olhar para o futuro e para prospectivas tecnológicas organizadas. É preciso conhecer o que os países estão fazendo, as modalidades novas de reforço de ecossistemas empresariais, o papel de institutos de pesquisa, o papel de externalidades, de sinergias a serem criadas para certas plataformas de conhecimentos que precisam avançar com a devida velocidade. Isso é algo que deveria ser incorporado ao exercício de pensar políticas industriais e tecnológicas para o futuro.
Intervenção de Afonso Fleury
Há pouco mais de uma década, Maria Teresa Leme Fleury e eu estamos trabalhando sobre a questão de internacionalização de empresas e das chamadas cadeias globais de valor, sobre as quais será pautada esta apresentação. Alguns pontos têm uma afinidade total com o que Luciano Coutinho expôs, mas vou adotar uma perspectiva um pouco diferente, que vem do nosso trabalho junto da área de international business, que estuda especificamente a questão das multinacionais brasileiras.
A partir dessa experiência podemos citar dois pontos antes de começar a falar especificamente sobre a questão de cadeias globais de valor nesse novo contexto. O primeiro é sobre a natureza da multinacional; e o segundo é sobre a competitividade entre países. Por que é importante falarmos sobre a natureza das multinacionais? Porque as multinacionais, desde a década de 1950, através das suas subsidiárias, são parte importante do desenvolvimento industrial brasileiro. Na verdade, elas foram, de uma certa forma, convidadas a se instalar no Brasil para liderar o processo de desenvolvimento da indústria brasileira, especialmente naqueles setores que são mais intensivos em tecnologia. Quando começamos a tentar entender a teoria das multinacionais, uma das coisas que surge é o seguinte: precisamos entender melhor o termo subsidiária, porque existem diversos tipos de subsidiárias.
Gostaria de retomar aqui a classificação de Bartlett & Ghoshal, em seu trabalho precursor de 1986, intitulado Tap your subsidiaries for global reach. Os autores usaram duas dimensões para categorizá-las: primeiro, a importância do mercado onde a subsidiária está instalada e, segundo, sua competência. Qual é a competência local que a subsidiária tem? Observamos que há diferentes tipos, desde uma com mandato global, ou seja, uma competência que é, na verdade, fundamental para o desenvolvimento da multinacional como um todo, até o black hole, o buraco negro, que é a multinacional que está em um país de importância estratégica para a multinacional, mas cuja competência local é reduzida, muito mais operacional.
Por que estou chamando a atenção para isso? Porque, no atual contexto, precisamos pensar em que tipo de subsidiárias temos no Brasil. Elas são parte fundamental no desenvolvimento industrial e, em alguns setores, como o automotivo, ela é absolutamente hegemônica. Mas essa questão é discutível.
Há aproximadamente 5 anos, Teresa e eu estamos trabalhando com a Universidade de Tsinghua, em Pequim, que é provavelmente uma das mais importantes universidades chinesas. Temos contato com um grupo que trabalha sobre a questão do FDI spillover, ou seja, do efeito de transbordamento que o investimento externo estrangeiro provoca nas empresas locais. A ideia de transbordamento está associada à ideia de spillover. É a partir desses dados gerados, não só por Tsinghua, mas por uma rede de universidades e institutos de pesquisa focalizando essa questão do FDI spillover, que o governo central chinês estabelece as políticas em relação às multinacionais e em relação ao investimento externo direto, de modo que precisem necessariamente transferir tecnologia e gerar conhecimento local. Esse é um ponto fundamental: tentar entender um pouco melhor que tipo de subsidiária nós temos aqui, no Brasil, e qual o seu poder de alavancagem tecnológica.
O segundo ponto, antes de entrar em global value chains é a questão da competitividade entre países. Que os países competem entre si ninguém tem dúvida, mas é importante começarmos a pensar sobre quais os impactos das políticas desses países sobre as multinacionais que têm subsidiárias no Brasil. Há dois anos, participei de um trabalho junto à Universidade de Cambridge, cujo projeto, solicitado pela UNIDO, tratava do impacto dessas novas tecnologias que Luciano Coutinho acabou de tratar nas empresas ou no sistema industrial da América Latina. Como o tempo era exíguo, trabalhamos sobre os technological foresights, como o Luciano propôs anteriormente, que são sistematicamente feitos por todos os países desenvolvidos e por alguns países em desenvolvimento. Por exemplo, a Austrália tem um trabalho invejável sobre technological foresight. É impressionante o nível de acuracidade que eles colocam. É fundamental termos acesso e estudarmos o que esses países estão pensando em fazer, porque isso terá impacto direto sobre nós, além de reorientar a atividade das multinacionais presentes em nosso território. As discussões dos programas manufacturing 4.0, dos Estados Unidos, e industry 4.0, da Alemanha partem daí.
Até a década de 1980, as multinacionais eram essencialmente empresas integradas. Elas cresceram, por aquisição ou por crescimento orgânico, internalizando todas as funções. O único problema é que esse crescimento gerou modelos de gestão tão complexos que essas empresas começaram a não funcionar direito. Foi a época da emergência do sistema japonês de produção, que vinha com uma nova proposta baseada no zaibatsu japonês, que consiste em uma hierarquia de empresas com uma grande série de relações entre si. Esse foi o momento em que as multinacionais passaram a se reinventar, a época da reengenharia, quando se começou a criar o conceito de subcontratação. Em outros termos, as multinacionais começaram a pensar da seguinte forma: eu fico na função em que eu tenho competência, isto é, no meu core business, e deixo para subcontratar aquelas que não são tão estratégicas para mim. E assim, começa a subcontratação e também o offshoring, a transferência do sistema de produção para outros locais, de onde resulta o conceito de fragmentação da produção.
Em 1913, Ford desenvolveu uma empresa integrada desde o insumo básico até a distribuição, com todas as atividades realizadas no local. Isso só foi valido no tempo de Ford. A partir de então, a indústria começou a se fragmentar cada vez mais. Passamos a ter empresas extrativas e produtoras de insumos básicos, empresas manufatureiras, operadoras de serviços, o comércio e outros serviços de uma maneira geral, e um novo tipo de empresa, cujo termo foi criado em um pequeno centro de pesquisa na Universidade de Sussex algum tempo atrás. São as empresas que integram sistemas complexos, produtos complexos. Foi estabelecida, inclusive, uma nomenclatura curiosa: o COPS – complex product systems.
Nos últimos anos, a questão de criação e de valor agregado foi deslocada na direção de produtos complexos de uma maneira violenta. As empresas que têm capacidade de liderança de cadeias de valor e de agregação de valor no produto estão se tornando cada vez mais operadores de serviço ou integradores de produtos complexos. Então, o que aconteceu?
As multinacionais que estão no Brasil, há algum tempo, estão se deslocando nesta direção, fazendo offshoring ou trabalhando através das suas subsidiárias, com diferentes tipos de configuração, como exposto anteriormente. É importante ressaltar que isso não é uma decisão só das multinacionais, mas está em consonância com suas condições de operação nos países de origem, onde o trabalho é mais caro, os trabalhadores são mais qualificados, os consumidores mais exigentes e as pressões para inovações mais intensas. Então, está tudo articulado para elas virem para o lado de cá.
Mas, o que acontece com as multinacionais de países emergentes? As multinacionais tradicionais começam a criar um vácuo ao avançar na direção de produtos complexos, e as multinacionais dos países emergentes começam a ocupar as posições liberadas por elas. Se analisarmos como evoluíram as multinacionais brasileiras, em geral, constatamos que o processo se deu por aquisição de negócios que não interessavam mais às multinacionais tradicionais. Se considerarmos as aquisições da Braskem, nos Estados Unidos, e da Weg na Europa e na América Latina, encontraremos fábricas que não interessavam tanto mais às multinacionais originais. Algumas, contudo, especialmente a Embraer, cresceram organicamente.
Este quadro, nos países desenvolvidos, traz alguns problemas. O primeiro é a questão do emprego, como mostrou o discurso da campanha de Donald Trump. Segundo, as multinacionais emergentes começam a ficar ameaçadoras: Hyer, Lenovo e Embraer, de repente, começam a incomodar. E há um terceiro ponto, muito importante: os mercados mais atraentes estão nos países em desenvolvimento e não nos países desenvolvidos. Então, existe toda uma equação que, de alguma forma, força os países desenvolvidos a tomar alguma atitude. É nesse contexto que surgem os programas a que o Luciano fez referência anteriormente: manufatura 4.0 ou indústria 4.0. São programas desenvolvidos para não perder e até reconquistar a hegemonia no setor industrial. O programa americano é de 2004, e o programa alemão é de 2012.
No livro de Alec Ross (The Industries of the Future), há uma definição sobre as industrias do futuro que afirma que existem 4 indústrias do futuro – e não o futuro da indústria, que é uma visão um pouco diferente. A primeira delas é a robótica e a de inteligência artificial; a segunda é a da ciência da saúde humana, a terceira de codificação do dinheiro, e a quarta fala em big data.
É importante pensarmos que essas indústrias estão se desenvolvendo em determinados locais onde existe um link entre o tecnology push e o demand pull. Não são tecnologias que estão sendo geradas no vazio. Dois exemplos ilustrativos: o primeiro é a robótica no Japão. Por que o Japão é o líder absoluto em robótica? Porque existe uma demanda social para acompanhamento de idosos, e como a família no Japão é muito diferente dos padrões ocidentais conhecidos, esse é um problema social enorme. Por isso, há um grande investimento na humanização dos robôs, de modo que os robôs possam tratar e ser acompanhantes das pessoas idosas. Essa é a ideia da tecnology push e do demand pull. O segundo exemplo é da China, sobre codificação de dinheiro. Uma recente reportagem do jornal Valor Econômico fala de um jornalista especializado na área de TI que desce em Xangai e não conseguia fazer transações financeiras porque ninguém mais usa moeda, as pessoas realizam as transações com smartphone. Ele confessa ter ficado constrangido em vários locais, porque tinha de pagar com dinheiro e eles não têm mais estrutura para receber pagamento em dinheiro. Então, nossa hipótese é de que os chineses vão sair na frente nessa parte de codificação do dinheiro, porque tem uma associação direta entre demand pull e tecnology push.
Minha primeira impressão em relação ao futuro da indústria brasileira é de que ela será parecida com a ONU: haverá multinacionais de todas as origens aqui, trabalhando de maneira articulada com as empresas brasileiras, e teremos que encontrar uma forma de gerenciar esse processo. O segundo ponto é que, da forma como as coisas estão evoluindo, as multinacionais que instaladas aqui serão cada vez mais black hole, isto é, o país terá importância estratégica para a multinacional, mas a competência de sua subsidiária local será reduzida, muito mais operacional.
Gostaria de lembra-los de uma recente entrevista, em que o presidente da Volkswagen diz estar decepcionado com o que está acontecendo Brasil, tendo de trazer cada vez mais coisas da Europa. Esse é um indicativo do que está acontecendo na Volkswagen, uma empresa tradicional. Se pensarmos nas multinacionais brasileiras, poucas são líderes de global value chain. Na verdade, só a Embraer é uma verdadeira líder, na acepção da palavra. Então, as possibilidades de trabalharmos por meio dessa liderança de global value chains é reduzida.
Outras questões, que não estão sendo necessariamente discutidas no contexto do futuro da indústria brasileira são as questões alternativas, ligadas a vantagens comparativas de que já dispomos e que poderíamos usar melhor. A primeira delas é a biodiversidade, que pode se transformar em proposta protagonista da indústria brasileira. A segunda, baseada em metais raros. Em cada um dos smartphones que usamos há aproximadamente 60 tipos de metais raros, e até hoje esse mercado não está organizado. A China é a líder do mercado, com 40%, mas talvez consigamos desenvolver alguma coisa neste setor, visto que nossa geologia é muito favorável, fazendo do Brasil um dos países protagonistas nessa área. A Companhia Brasileira de Metais e Mineração-CBMM pode funcionar como modelo para gerenciar empresas na área de metais raros. Ela detém 85% do mercado mundial de nióbio. O último fator de oportunidade são as indústrias criativas. Existem dois países que assentaram seus modelos de desenvolvimento em indústrias criativas: o Canadá e a Inglaterra. Não nos tornaremos um centro de excelência em um curto período de tempo, mas podemos oferecer condições de entrada nessas novas lógicas que estão associadas às indústrias do futuro.
Para concluir, essas são sugestões de que precisamos fazer uma amarração para sobreviver em um contexto de mudança de paradigma tecnológico. Primeiro, temos que definir qual papel pretendemos desempenhar na complexa economia global. Segundo, a questão de equacionar melhor as dependências em relação às multinacionais estrangeiras. Terceiro, identificar setores onde podemos ter protagonismo imediatamente, investindo em indústrias de entrada no novo paradigma e, por fim, a longo prazo, criar ou recriar um sistema nacional de inovação ao mesmo tempo que estimulamos a demanda nos setores correspondentes.
Comentários Pedro Wongtschowski
Há um conceito que está se difundindo sorrateiramente na sociedade brasileira, de que a indústria no Brasil é dispensável, de que nosso país pode viver sem indústria. Evidentemente, esse é um conceito muito equivocado, já que esse setor gera empregos, tecnologia, inovação e impostos. É o maior contribuinte tributário no Brasil e grande gerador de empregos em quantidade e também em qualidade; é o setor que melhor paga na economia brasileira.
Por isso, é uma enorme ilusão imaginar que podemos ter um agronegócio e um setor de serviços dinâmicos sem uma atividade industrial relevante e importante. Em outras palavras, não existe agronegócio sem defensivo agrícola, sem fertilizantes, sem colheitadeiras, sem tratamento dos materiais colhidos, sem algum tipo de atividade industrial conexa com o agronegócio. Não existe na proteína animal, vegetal, ou em qualquer atividade do agronegócio a possibilidade de ela sobreviver sem um enorme apoio do setor industrial. Isso porque, uma atividade como o agronegócio tem, evidentemente, um enorme componente local, que é a natureza da agricultura, pois cada país é único por seus efeitos climáticos, suas práticas, sua cultura etc.
Existe um sintoma muito preocupante sobre a redução do tamanho e da relevância da indústria no cenário brasileiro. Como Luciano Coutinho apontou, nos últimos 4 ou 5 anos, aconteceram reduções da ordem de 20% de produção, consumo de energia e emprego, mão de obra empregada e assim por diante.
E, finalmente, existe a necessidade de pensar a indústria do futuro no Brasil. O último ponto a ressaltar é a importância do papel do governo, que fomenta inovação e organiza a atividade produtiva. A indústria está se transformando no mundo todo e essa transformação vai chegar ao Brasil. Talvez nós não estejamos nos preparando suficientemente para que a indústria nacional sobreviva neste novo cenário, que cresça e se reposicione. Daí a relevância deste debate.