Carta IEDI
O futuro da atuação do BNDES
O Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) vem atravessando nos últimos dois anos um choque de grandes proporções. A rota de expansão que a instituição seguiu desde 2008 foi subitamente revertida a partir de 2015. O IEDI tem realizado estudos sobre o papel desempenhado pelo BNDES na evolução recente do crédito, os desafios que enfrenta sua atuação futura e as propostas que devem ser consideradas para a melhora e aperfeiçoamento das funções do banco de desenvolvimento. A presente Carta IEDI resume o primeiro estudo da série realizada pelo economista Ernani Teixeira Torres Filho, cuja íntegra pode ser acessada no site do IEDI.
A mudança de rumos do BNDES nos últimos anos, segundo o Autor, derivou da atuação, em simultâneo, de cinco fatores. O primeiro fator é de natureza conjuntural e está associado à forte queda na demanda de crédito, resultante da longa e profunda recessão que se abateu sobre a economia brasileira a partir de 2015. O segundo fator, por sua vez, está relacionado às mudanças em curso na estrutura do mercado de crédito de longo prazo e com a perspectiva de a economia brasileira atravessar um regime prolongado de taxas nominais de juros (e de inflação) historicamente baixas, em níveis de apenas um dígito ao ano.
Em seguida, o terceiro fator decorre de decisões de política econômica, que comprometem a capacidade de financiamento da instituição. É o caso da criação da Taxa de Longo Prazo (TLP) pela Lei nº 13.483/2017, que estabeleceu uma nova fórmula de determinação da taxa de juros para os recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Em lugar de ser determinada pelo Conselho Monetário Nacional, de acordo com a política econômica do governo, a exemplo da antiga Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP), a nova taxa do BNDES - a TLP - seguirá automaticamente a taxa de risco cobrada pelo mercado para os títulos do Tesouro de 5 anos, adicionada ao Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).
A essa medida, se soma o quarto fator a ser destacado: a drenagem do caixa livre do BNDES pelo Tesouro Nacional. Se toda a demanda anunciada pelo governo for atendida, o BNDES terá devolvido cerca de R$ 260 bilhões (Tesouro, FAT e PIS-PASEP) até 2018, isto é, um montante de recursos equivalente à metade do estoque de créditos do governo federal na instituição em 2016. Esses pagamentos reduzem sobremaneira o tamanho do ativo de crédito do banco e comprometem sua liquidez no médio prazo.
Finalmente, o quinto fator da transformação recente do BNDES é de ordem reputacional. O banco foi publicamente envolvido nas ações investigativas sobre o financiamento ilegal de políticos por grandes empresas nacionais. Sua atuação desenvolvimentista foi, nesse episódio, reduzida a um mero instrumento de subsídio a grandes interesses econômicos e vulgarmente comparada a uma “meia entrada” de cinema. Antigos dirigentes e vários de seus técnicos estão sendo investigados pelos órgãos de controle e da justiça.
A ação desses cinco fatores levanta fortes indagações sobre o destino que o BNDES terá nos próximos anos. Não será a primeira vez que perguntas dessa natureza são feitas na história da instituição. Entretanto, nunca ao longo de seus mais de 60 anos de existência, o banco de desenvolvimento enfrentou uma situação de tão grande fragilidade.
Em compensação, existem elementos de robustez que ainda estão preservados. A qualidade dos ativos financeiros do BNDES garante sua solvência no futuro e abre espaço para se repensar sua atuação e sua base de liquidez. Apesar de todas as ilações negativas que foram feitas, o risco de suas carteiras de empréstimos e de ações continua sendo muito inferior ao do restante do sistema bancário. O mesmo acontece com a capacidade do corpo técnico da instituição. Existe um conhecimento acumulado na gestão de operações de financiamento de longo prazo e de participação acionária que constituem uma vantagem competitiva da instituição.
Esses dois elementos não são de fácil nem rápida constituição e podem ser de relevância estratégica para um governo que veja valor em dispor de um instrumento próprio e já consolidado para atuar no mercado financeiro com vistas à operacionalização de créditos de longo prazo voltados para a retomada da economia e do desenvolvimento nacional.
Diante desse cenário, o presente trabalho busca apresentar sucintamente a evolução do crédito do BNDES que, depois de 2015, deixou de atuar de forma a compensar a redução do crédito livre, diferentemente da postura adotada nos anos anteriores. A instituição agiu de forma passiva e se tornou primordialmente um instrumento do ajustamento fiscal. O estudo dá ênfase ao desempenho do BNDES no mercado de crédito corporativo de longo prazo, avaliando os fatores contracionistas que estão colocando em cheque o modelo operacional da instituição.
As propostas apresentadas para a atuação futura do BNDES são resumidas no item final desta Carta.
O BNDES e as Transformações Recentes do Crédito Corporativo de Longo Prazo
A melhor maneira de se analisar a evolução recente do BNDES é do ponto de vista do crédito corporativo doméstico de longo prazo. Esse mercado, no Brasil, é formado por quatro segmentos, que se distinguem conforme o originador do empréstimo e a fonte do financiamento. O maior deles é formado pelas operações diretas do BNDES. Estes créditos são gerados e mantidos na carteira própria da instituição (operações diretas) e são, em sua maioria, associadas a investimentos de maior valor absoluto e sujeito a retornos com prazos mais longos.
O segundo segmento em tamanho é constituído pelos repasses realizados pelos bancos comerciais com recursos do BNDES. Nesse caso, são os intermediários financeiros que estendem empréstimos de longo prazo para seus clientes para aplicação em alguma das finalidades admitidas pelo banco de desenvolvimento, por exemplo, a aquisição de um bem de capital ou a investimento de expansão de sua capacidade. Essas operações indiretas geralmente se destinam a investimentos de menor valor unitário, baixa complexidade e prazos relativamente mais curtos (até 5 anos).
Historicamente, as operações diretas e indiretas representaram cada uma, metade do saldo dos empréstimos do BNDES. A partir de 2014, a participação das operações indiretas começou a declinar, refletindo a queda acentuada nas vendas de máquinas e equipamentos. Entre 2014 e 2016, segundo a ANFAVEA, a produção de ônibus acumulada em 12 meses, por exemplo, caiu de 43.899 para 18.705 unidades e a de caminhões, de 203.330 para 60.482 unidades. Em dezembro de 2016, o estoque das operações indiretas havia recuado para 43% do total dos empréstimos do BNDES.
O terceiro segmento do mercado de crédito corporativo de longo prazo reúne as operações com debêntures. Esses títulos de dívida são adquiridos principalmente pelos bancos, para serem mantidos em sua tesouraria (recursos próprios) ou para serem colocadas nos fundos de investimento que administram (recursos de terceiros. Finalmente, o último segmento é o menor de todos. Existe um pequeno segmento nesse mercado formado pelas “debêntures de infraestrutura”, que possuem características de mercado distinta do restante. Pelo fato de gozarem da isenção de imposto de renda para o investidor do tipo Pessoa Física, são muito demandadas por famílias que detêm patrimônio elevado e que buscam diversificar o risco e o retorno de suas carteiras.
Apesar de, na prática, apresentarem interconexões, cada um desses segmentos obedece a uma racionalidade própria, respondendo a vantagens competitivas específicas. No caso dos recursos BNDES, o custo baixo dos seus créditos e o apetite de longo prazo da instituição são os principais atrativos. No caso dos bancos, existem vantagens fiscais, regulatórias, de liquidez e de flexibilidade gerencial, que tornam as operações de longo prazo através do mercado de capitais mais eficientes do que as intermediadas por meio de seus balanços. No caso das Pessoas Físicas de alta renda, o incentivo fiscal lhes permite competir com os bancos nos empréstimos de longo prazo para as Pessoas Jurídicas, ao mesmo tempo em que as empresas acessam um crédito de menor custo.
BNDES: de agente anticíclico a instrumento de ajuste fiscal
O BNDES tradicionalmente desempenhou no sistema financeiro brasileiro o papel de principal financiador de longo prazo das empresas. Sua atuação se faz presente em praticamente todos os setores. Seus empréstimos são vinculados a gastos com finalidades específicas (projetos de investimento, exportação de manufaturados e serviços etc.) de acordo com os objetivos legais associados a suas fontes de recursos parafiscais. Em 2016, o banco de desenvolvimento respondeu por mais de 50% de todos os empréstimos bancários com prazos superiores a 5 anos, segundo os dados do Banco Central.
A participação do BNDES no sistema financeiro nacional sempre foi relativamente grande. Entre 2010 e 2016, a instituição respondeu em média por 20,5% de todos os empréstimos bancários. Esse nível, no entanto, variou ao longo do tempo. Entre o final de 2004 e meados de 2008, caiu de 21,9% para 15,7% pelo fato de grande parte do crescimento do mercado nesse período ter se destinado às famílias, segmento que o BNDES não atua.
Durante a crise de 2008, o BNDES ajudou a sustentar o financiamento dos projetos de investimento em curso, compensando o encolhimento defensivo dos bancos comerciais e do mercado internacional. Em consequência, sua participação no crédito total aumentou de 15,6% em meados de 2008 para 20,8% em 2010. Nesse período, o volume de crédito do BNDES se tornou o principal fator de expansão do mercado. O saldo de suas operações saltou de 5,3% para 9,4% do PIB.
Até 2016, o BNDES continuou atuando de forma compensatória, reduzindo o impacto negativo do ciclo privado. O abaixo apresenta as taxas de crescimento dos empréstimos corporativos para os segmentos direcionado e livre. Observa-se que, entre 2008 e 2015, a aceleração das operações do BNDES - que responde pela quase totalidade dessa modalidade – se contrapôs sistematicamente à volatilidade das operações com recursos livres.
Essa atuação foi possível graças à manutenção, até 2015, de programas anticíclicos do governo federal. Esses empréstimos seguiam as mesmas taxas praticadas pelo FAT - a TJLP – que se mantiveram inferiores às taxas da SELIC durante todo esse período. Além disso, algumas dessas iniciativas, como o Programa de Sustentação do Investimento (PSI) contavam ainda com subsídio explícito do Tesouro Nacional. A atratividade desses programas de crédito do BNDES gerou uma demanda por fundos muito superior à capacidade de suprimento do FAT.
Diante desse fato, o governo, para sustentar sua política, decidiu continuar realizando mais empréstimos diretos ao banco de desenvolvimento, que montaram a mais de R$ 400 bilhões através da emissão de títulos públicos. Isto levou a um aumento exponencial na participação direta do Tesouro Nacional na estrutura de fontes do BNDES. Passou de um nível pouco relevante (7%) em 2007 para a posição de liderança desde 2010. Atingiu o máximo de 58% em 2014 e, desde então vem recuando para 49% em setembro de 2017. O Tesouro respondeu por 70% de todo o aumento dos créditos do BNDES no período. Como essa captação era feita através do lançamento de títulos públicos a custos de mercado, a diferença entre as taxas de captação do governo e a taxa TJLP praticada pelo BNDES foi automaticamente absorvida pela União.
Essa estratégia não era, no entanto, a única opção disponível para o governo à época. Alternativamente, o BNDES poderia ter tomado esses recursos – ou uma grande parte deles - diretamente junto ao mercado, lançando títulos de sua própria emissão, em lugar do Tesouro Nacional. O sucesso desse caminho requereria, no entanto, mudanças de natureza regulatória e na política monetária que garantissem atratividade e liquidez aos papéis do banco de desenvolvimento. Em compensação: aumentaria o déficit primário no montante da diferença entre a TJLP e a taxa SELIC; teria um custo de captação superior ao do Tesouro Nacional; e aumentaria a concorrência com os títulos da dívida pública no mercado de capitais.
A desmontagem dos programas anticíclicos financiados com recursos da União foi iniciada em 2015, motivada pelo ajuste fiscal. Em consequência, os níveis de aprovação e de desembolso do BNDES desabaram e não se recuperaram mais. Em 2016, a oferta de créditos do BNDES foi ainda mais restringida, pela redução de seus coeficientes máximos de participação em projetos e por uma política deliberada de retenções. O resultado foi uma queda nos valores das aprovações e das liberações do BNDES. Os totais no 3ª trimestre de 2017 correspondiam, respectivamente, a 20% e 25% dos montantes alcançados no último trimestre de 2014. Como resultado, o desembolso total do banco de desenvolvimento se limitou a R$ 88,3 bilhões em 2016, pouco menos da metade dos quase R$ 188 bilhões atingidos em 2014.
O Mercado de Crédito de Longo Prazo: as Debêntures e o BNDES
A principal alternativa doméstica ao crédito de longo prazo do BNDES é a emissão de debêntures pelas empresas. Esse tipo de crédito também se expandiu rapidamente a partir de 2004. O saldo dessas operações passou de 2,2% do PIB em 2004 para 12,6% em 2016. Esses percentuais, no entanto, superestimam a real dimensão desse mercado.
As empresas de leasing foram as principais emissoras nesse período. Desde 2006, elas respondem em conjunto por cerca de dois terços do estoque dessas operações. Trata-se de uma característica única do mercado brasileiro e decorre do uso massivo que os bancos fazem desse instrumento como um mecanismo de arbitragem regulatória e fiscal. As instituições financeiras estão impedidas legalmente de emitir esse tipo de títulos que, por isso, gozam, frente aos instrumentos de captação bancários, de vantagens tributárias e da isenção de depósitos compulsório junto ao Banco Central.
Com a emissão de debêntures pelas empresas de arrendamento mercantil pertencentes ao mesmo conglomerado, os bancos conseguem driblar esse impedimento regulatório. Adquirem todas as debêntures emitidas sua leasing e recebem de volta os recursos pagos como empréstimo através do mercado interbancário, isento de impostos. O título comprado é, em seguida, vendido temporariamente a um cliente com cláusula de recompra (operação compromissada), o que o transforma, na prática em um instrumento de captação bancária semelhante a um Certificado de Depósito Bancário (CDB). As debêntures das leasings respondiam entre 2010 e 2016 pelo segundo lugar na captação dos bancos, só superadas pelos Certificados de Depósitos Bancários (CDB).
Essas pseudo-captações não configuram, portanto, uma dívida corporativa. Seu propósito é gerar para os bancos comerciais um título com menores custos para servirem de instrumento de captação junto a seus clientes. Por esse motivo, esses dados devem ser excluídos do dimensionamento do crédito corporativo.
Além das leasings, há um amplo conjunto de empresas não financeiras que regularmente lançam debêntures no mercado. Entre 2007 e 2016, o estoque de títulos dessas emissoras passou de 2% para 4,2% do PIB, incluindo-se os papéis incentivados ou não. Essas operações, como em todo o mundo, são estruturadas e distribuídas por bancos. Entretanto, a particularidade do mercado brasileiro é que aqui os maiores adquirentes desses papéis são as próprias instituições estruturadoras. No exterior, uma parcela mais relevante das colocações é feita junto a investidores institucionais (seguradoras, fundos de pensão, fundos de investimento) e Pessoas Físicas.
Na prática, os bancos brasileiros recomendam a seus clientes corporativos de maior porte emitir debêntures como forma de reduzir o custo de operações de maior monta (acima de R$ 200 milhões), sempre que os limites de suas linhas de curto prazo se esgotam. Os recursos assim obtidos são utilizados para liquidar os saldos de empréstimos bancários de mais curto prazo, reabrindo os limites para a realização de novas operações de capital de giro. Os títulos adquiridos são, por sua vez, alocados dentro do conglomerado financeiro nas diversas carteiras de clientes sob sua administração e na própria tesouraria.
Para reduzir o custo e o tempo dessas emissões, os lançamentos são feitos através de um procedimento simplificado, a chamada Oferta Restrita ou do tipo “476”. Nesse caso, a operação só pode ser apresentada a um público de até 75 investidores, que precisam aportar valores mínimos elevados. Em compensação, esse tipo de Oferta não precisa de autorização prévia da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Em 2016, 97% do valor das debêntures emitidas no ano foram distribuídas na forma de Ofertas Restritas.
Por esses motivos, a expansão do mercado de debêntures corporativas no Brasil não deve ser vista, a exemplo do que ocorre em outros centros financeiros internacionais, como um efetivo processo de desintermediação bancária. Trata-se, na prática, de uma maneira mais eficiente para alargar os prazos e reduzir os custos dos empréstimos bancários, usando as vantagens proporcionadas por títulos corporativos transacionados em mercados de capitais, em vez de contratos bancários.
Somando-se o saldo das operações do BNDES ao das debêntures emitidas pelas empresas ex-leasing chega-se a uma estimativa do tamanho e da evolução do crédito corporativo de longo prazo em moeda nacional. O saldo conjunto dessas operações era de 7,6% do PIB em 2003 e se manteve nessa dimensão até o início da crise financeira internacional de 2008. Desde então, cresceu até atingir 15,4% em 2015. Nos dois anos seguintes, houve forte retração para 12,5%, decorrente do desempenho do crédito do BNDES. O BNDES responde por 70% dos recursos destinados a essa finalidade, mas origina apenas 35% do valor dessas operações. O restante é feito pelo sistema bancário.
Os desafios do BNDES: os cinco fatores contracionistas
Para se pensar o futuro da atuação do BNDES é importante ter presente que no momento existem cinco fatores atuando concomitantemente no processo de contração do crédito do BNDES. O primeiro é de natureza conjuntural e está associado à profundidade do processo recessivo em curso na economia brasileira. Houve uma forte queda da taxa de investimento – 21,5% do PIB em 2013 para 15,5% em 2017 – e uma retração ainda mais intensa da produção doméstica de bens de capital.
Esse determinante não deve, no entanto, se sustentar no tempo. A economia brasileira vem dando sinais de que, a partir do segundo semestre de 2017, entrou em uma fase de recuperação lenta. Desse ponto de vista, é razoável se supor que a demanda de crédito de longo prazo no Brasil volte a crescer a partir de 2018 mais rapidamente que o PIB. Diante desse cenário, cabe uma pergunta: será que essa retomada do crescimento se traduzirá em uma maior demanda por recursos do BNDES? Em que condições essa demanda potencial se materializaria?
A resposta a essas indagações requer uma análise dos outros quatro fatores contracionistas que atuam sobre o crédito do BNDES:
a) a perspectiva de se manter um regime de taxas de juros e de inflação historicamente baixas (um dígito) por um período prolongado (três anos pelo menos);
b) o aumento da taxa de juros dos empréstimos do BNDES, com a introdução da TLP (Taxa de Longo Prazo) em lugar da TJLP;
c) a aceleração dos pagamentos referentes aos empréstimos realizados pelo Tesouro Nacional; e
d) os efeitos reputacionais negativos decorrentes da forte ação de mídia que associou a imagem do BNDES a empresas comprometidas com delitos de corrupção política e a efeitos concentradores de renda e de riqueza (“meia entrada”).
A competitividade dos empréstimos do BNDES esteve tradicionalmente apoiada numa combinação entre taxas de juros atrativas e prazos longos. Desse ponto de vista, a perspectiva de um período prolongado de taxas de juros relativamente baixas e a criação da TLP mudam o posicionamento de mercado da instituição em termos de preço. As vantagens associadas a prazos longos foram até o momento preservadas.
O BNDES sempre praticou uma taxa de juros básica, a TJLP, formada independentemente do mercado. Sua evolução não seguia a taxa de curto prazo fixada pelo banco central (taxa SELIC), nem acompanhava a estrutura a termo da taxa de juros, baseada nas taxas cobradas nos títulos de longo prazo do governo federal (NTN-B). De fato, entre 2002 e 2016, TJLP foi sempre inferior à SELIC e apenas em um curtíssimo período superou a taxa da NTN-B de 5 anos.
Ao longo de 2017, esse cenário de taxas de juros nominais muito elevadas sofreu uma forte e, até certo ponto, inesperada reversão. Ao longo de 2017, a taxa SELIC foi reduzida de 13% para 7% ao ano. A expectativa dominante no governo e no mercado financeiro ao final do mesmo ano era de que a inflação e a taxa SELIC serão mantidas em níveis historicamente baixos por um período prolongado. Essa perspectiva está presente nas projeções de longo prazo divulgadas em outubro de 2017 pelas principais instituições financeiras. Esse cenário mais benigno de inflação e de taxa de juros se constitui, por si só, um fator suficientemente relevante para obrigar o BNDES a se ajustar a um novo padrão de concorrência de mercado.
Com a inflação e a taxa básica de juros mantidas em níveis baixos, o diferencial entre a SELIC – que indexa a captação dos demais bancos - e a taxa historicamente praticada pelo BNDES (TJLP) tende a se tornar muito pequeno. De acordo com a tabela abaixo, até 2023 deverão se situar entre 50 e 90 pontos básicos. Esses valores são inferiores à margem (spread) que hoje é cobrada pelo banco de desenvolvimento, de cerca de 140 pontos básicos (bps), ou seja, uma margem de 1,4 % ao ano. O impacto do novo regime de taxas baixas de inflação e de juros sobre o BNDES, mantida a TJLP, se daria, no entanto, lentamente. Pelas projeções, a TJLP ainda manteria um diferencial a seu favor, apesar de muito inferior ao que apresentou no passado.
Entretanto, a substituição da TJLP pela TLP mudou essa perspectiva. A TLP (Criada pela Lei nº 13.483, de 21 de setembro de 2017) será um espelho da rentabilidade da NTN-B de cinco anos. Esse título público é indexado à inflação passada (IPCA) e paga, acima disso, uma taxa real de juros, fixada em leilão pelo mercado. Com isso, a taxa básica do BNDES foi reposicionada para um nível que, ao longo do tempo, será superior ao da TJLP e ao da SELIC. Ficará, portanto, acima do custo básico de captação dos bancos (SELIC/CDI) e será maior do que a taxa cobrada das empresas de bom risco e que, por exemplo, conseguem acessar o segmento das debêntures incentivadas. Além disso, a TLP tenderá a flutuar muito e a aumentar substancialmente em momentos de crise (comportamento pro-cíclico).
O FAT também será comprometido pela TLP como mecanismo de captação de recursos de longo prazo. O ganho esperado de rentabilidade do Fundo ocorrerá em detrimento de sua perda de função. Os recursos do FAT serão competitivos apenas nas operações com mais de 5 anos. Desse ponto de vista, parte relevante do seu fluxo e do seu estoque tenderão a ficar ociosos e serão automaticamente aplicados em títulos da dívida pública. Estarão, portanto, sendo utilizados, na prática, para financiarem o Orçamento da União.
A alternativa do BNDES para reduzir seu custo de captação seria substituir o FAT por uma captação direta em mercado, baseada em taxas mais competitiva, como a SELIC ou CDI. Para isso, os mecanismos de captação disponíveis precisarão ser revistos e ampliados, tais como a emissão de Letras Financeiras e de debêntures, por meio da BNDESPar, sua subsidiária integral. De qualquer modo, o fato de o BNDES não ser um banco de rede, torna essa tarefa mais difícil e custosa frente aos bancos comerciais.
Do ponto de vistas das empresas, a introdução da TLP fará com que o BNDES, por falta de recursos adequados, deixe de cumprir alguns dos papéis que tradicionalmente desempenha há mais de seis décadas. As taxas domésticas para financiamento de investimentos aumentarão relativamente pela maior pressão de demanda sobre mercado que ainda são pouco profundos, como mostramos anteriormente. O pleno atendimento da demanda das empresas dependerá, portanto, da existência de mercados bancários privados e de dívida corporativa capazes de absorver a demanda de fundos para investimento com recursos livres. Isso, no entanto, ainda não se verifica no Brasil e requer tempo para ser desenvolvido. Ao final de 2016, os bancos privados detinham apenas 14% dos empréstimos com mais de 5 anos. O mercado de debêntures corporativas, além do seu porte limitado, dificilmente consegue absorver operações com duração média superior a esse prazo.
Além disso, o BNDES deixará de atuar como um mecanismo de proteção dos produtores nacionais de máquinas e equipamentos que praticam elevados níveis de nacionalização. Não poderá também exercer o papel de “financiador de última instância” dos projetos de investimento, como ocorreu em 2008 e 2009. Perderá, assim, a capacidade de realizar atuações de fomento e ações anticíclicas.
Em paralelo, a política de aceleração dos pagamentos dos créditos do Tesouro Nacional comprometerá a liquidez própria da instituição nos próximos anos, principalmente em um cenário de retomada do investimento. Os créditos do Tesouro Nacional foram aplicados em empréstimos com prazos médios superiores a 7 anos, e os pagamentos extraordinários não levam isso em conta. Assim, a dimensão e a rapidez no atendimento às demandas anunciadas pelo governo poderão limitar a capacidade de o Banco atender à demanda corporativa de crédito de longo prazo ao longo do período de transição, especialmente se houver dificuldades para que as fontes privadas sejam mobilizadas nos montantes e nos prazos adequados.
Para que o mecanismo da TLP não tivesse esse impacto tão negativo, seria necessário que o mercado financeiro brasileiro já apresentasse características que são comuns aos países ricos e que dispõem de moeda internacionalmente conversível. Nos EUA, na Europa e no Japão, por exemplo, os mercados de longo prazo são muito concorrenciais e amplos. Com isso, as taxas pagas pela dívida pública são baixas e relativamente estáveis. Essas características permitem que os bancos públicos locais possam captar grandes volumes de recursos privados, pagando um spread de até 25 bps ao ano a mais do que seu Tesouro Nacional. Nenhuma dessas características está presente na nossa realidade. Ao mesmo tempo, não há nenhuma garantia de que, no futuro próximo, o Tesouro Nacional será capaz de impor ao mercado taxas de juros de Primeiro Mundo. Entretanto, o aprofundamento do mercado brasileiro será um processo inexorável em um cenário de baixas taxas de juros e de inflação. O problema está na violência do impacto de curto prazo gerado pela medida.
Nessa hipótese, o mais provável é que as empresas e os bancos se mobilizem para suprir essas necessidades adicionais de fundo de longo prazo com recursos externos. Com isso, retornaríamos em parte à situação anterior a 2004, com o aumento da dolarização dos balanços das empresas e, consequentemente, da instabilidade macroeconômica. Caso o governo viesse a oferecer garantia para o risco cambial estaria se introduzindo um fator de risco elevado nas contas fiscais.
Finalmente, o fator reputacional, pela sua dimensão política, é aquele que é mais difícil de ser incorporado a um cenário prospectivo. Seus impactos negativos afetam tanto as operações ativas – empréstimos – como as passivas – captação de recursos – do BNDES. A atuação exagerada e desinformada dos órgãos de controle pode simplesmente tornar inoperantes por muito tempo determinados mecanismos operacionais, até mesmo aqueles que foram menos afetados pelos fatores financeiros, tais como o apoio à exportação e a participação do Banco no mercado acionário (BNDESPar).
Os impactos negativos do fator reputacional se estendem a vários dos stakeholders do BNDES. O corpo técnico pode ter sua atuação limitada medida por riscos morais e financeiros que penalizem sua participação no processo decisório da instituição. Os financiadores potenciais do banco de desenvolvimento, no Brasil e no exterior, podem se retrair e, com isso, aumentar o custo de captação da instituição em momento de transição já bastante complexo. O problema reputacional também cria um ambiente negativo junto à opinião pública, inclusive junto aos empresários e aos membros do Congresso Nacional.
A reação ao último fator negativo dependerá basicamente do interesse do Poder Executivo em manter a instituição entre seus principais mecanismos de atuação. O BNDES, ao longo da história, mostrou flexibilidade e capacidade de responder às diferentes demandas de diferentes governantes, em busca de mudanças estruturais na economia. Foi assim nos anos 1970, com o programa de investimento do II PND; com a inserção internacional competitiva na década de 1980; com a privatização nos anos 1990; e com a expansão do crédito corporativo e a ação anticíclica nos 2000.
É difícil prever o que acorrerá na arena política a partir da eleição de 2018 e qual será o futuro da coalizão de interesses que deu sustentação à criação da TLP e à execração pública da instituição. Não há, no entanto, dúvida de que a interrupção do processo de desmontagem em curso e a reorientação do BNDES em novas bases e com novos focos dependerá necessariamente da atuação concertada do governo federal e da administração do BNDES por um longo período de tempo. O resultado de uma reorientação dessa natureza será, no entanto, mais bem-sucedido quanto mais cedo for iniciada.
O processo de desmontagem em curso impacta a estrutura operacional do BNDES de forma diferenciada. Alguns segmentos das operações ativas, com o apoio à exportação (AEX) e a participação no capital das empresas (BNDESPar) terão dificuldade para recuperarem fôlego no futuro próximo, devido ao forte choque a estão sujeitos pelo fator reputacional. Nas áreas restantes, os fatores de ordem financeira e de mercado tendem a se sobressair e consequentemente a capacidade de resposta da instituição tende a ser maior.
A atividade operacional mais importante para determinar a escala que o BNDES terá no futuro será a das operações de repasse. Em um cenário de taxas de juros baixas e com a presença da TLP, os bancos agentes terão, pela primeira vez, condições de substituir os recursos do BNDES por fontes de mercado nas operações indiretas, com algumas vantagens: absorção da remuneração do BNDES, redução de custo operacional e oferecimento de produtos financeiros com menores exigências legais e normativas (p.e. a obrigação de índices mínimos de nacionalização). Isto poderia ser efetivado rapidamente, uma vez que praticamente todo o processamento das operações indiretas já é feito no interior das instituições repassadoras.
O banco de desenvolvimento manterá, no entanto, vantagens nas operações com prazos superiores a 3 anos, pela possibilidade de, com o seu financiamento, eliminar o problema de descasamento de prazos no interior das instituições repassadoras. Quanto maior a duração dos empréstimos, mais os recursos do BNDES se mostrarão competitivos. Entretanto, o sucesso de iniciativas desse tipo dependerá essencialmente de os novos programas do BNDES conseguirem ser desenhados de forma a atender adequadamente às necessidades de repassadores e de clientes finais em um ambiente mais competitivo. Essa tendência à substituição pelos bancos dos recursos do BNDES pelos de captação própria se estenderá para além das operações de repasse e abarcará também parte das operações diretas de menor porte (acima de R$ 20 milhões), que hoje são formalmente originadas pelo BNDES, mas que, na prática, são estruturadas pelos bancos repassadores.
Os créditos a investimento de muito longo prazo (mais de 5 ou 7 anos), como infraestrutura e grandes projetos industriais, continuarão tendo o BNDES como fonte preferencial de recursos, por necessitarem de maiores prazos longo e de um hedge em moeda nacional. Não se incluem, no entanto, nesse conjunto os segmentos relacionados à produção de commodities internacionalizadas, já que as empresas desses segmentos têm condições de acessar facilmente o mercado internacional e de tomar dívida em moeda estrangeira.
Essa vantagem potencial dos recursos do BNDES terá, no entanto, para se efetivar que vir acompanhada de mecanismo de acesso mais simples, rápidos e transparentes. A metodologia tradicional de análise de projeto é muito intensiva em trabalho e requer um prazo longo de análise. Essa revisão do processo decisório voltando-o para o melhor atendimento da clientela, sem a perda do rigor na avaliação de risco, precisará envolver todos os diferentes níveis decisórios da instituição, do enquadramento à Diretoria.
A apoio à indústria de menor porte tenderá de uma forma geral a se mesclar com as atividades de repasse. Entretanto, a capacidade de o BNDES originar diretamente crédito pode dar lugar a novos programas de atendimento desse conjunto de empresas a partir de mecanismos massivos de análise de risco, como por exemplo o uso de metodologias do tipo credit score, associados ou não ao uso de fundos garantidores públicos. A grande dificuldade dessas iniciativas, no entanto, está na necessidade evitar comportamentos do tipo moral hazard de instituições intermediárias.
Finalmente, o passivo do BNDES terá que se adaptar a esse novo cenário. Diante do encarecimento relativo do FAT, o BNDES pode captar diretamente recursos livres junto aos bancos e ao público com base na Taxa Selic, para prazos mais curtos. Para isso, estão disponíveis instrumentos como Letras Financeiras ou Letras de Crédito Agrícola. O setor agrícola adquiriu uma relevância grande nos créditos do BNDES nos últimos anos. Um resumo da distribuição dos efeitos dos fatores de contração do crédito pelos diferentes segmentos operacionais do BNDES e da capacidade de resposta de cada um deles se encontra na tabela abaixo.
Sugestões de Medidas para o BNDES
Frente aos desafios enfrentados pelo BNDES, o IEDI selecionou algumas das sugestões realizadas pelo autor do estudo com o propósito de criar condições para que o BNDES continue atuando no mercado de crédito corporativo doméstico, no atendimento corrente do investimento, no fortalecimento da estrutura de capital das empresas e em ações de natureza anticíclicas.
Não se pretende com as iniciativas propostas evitar as mudanças estruturais em curso associadas ao novo regime de taxas de juros e de inflação baixas. O BNDES continuará precisando ajustar sua atuação à nova realidade de crédito do sistema bancário e do mercado de capitais: maior volume e maior duração da oferta voluntária de crédito corporativo de longo prazo.
Essa trajetória será benéfica para a economia brasileira sob qualquer ponto de vista e precisa ser, inclusive, no possível, encorajada pelo BNDES. As medidas sugeridas possibilitarão ao banco de desenvolvimento condições para promover um ajuste ordenado a essa nova realidade, mediante a criação de novos produtos financeiros, a revisão de seus mecanismos operacionais, garantindo que a instituição possa cumprir seu papel de financiar o investimento produtivo e promover o desenvolvimento nacional.
1) Medidas de Natureza Financeira
1.1) Liquidação do passivo do BNDES com o Tesouro mediante a transferência para a União de créditos que foram originados com os recursos repassados pelo governo federal. Com isso, o BNDES reduziria de imediato o tamanho do seu balanço (ativo e passivo) e de sua liquidez. Voltaria a ser uma instituição exclusivamente voltada a atividades de financiamento ao desenvolvimento que não teria mais envolvimento financeiro nem político com o Orçamento da União e com o Tesouro Nacional. A gestão da carteira que fosse transferida poderia continuar sendo feita pelo BNDES, que permaneceria como garantidor perante a União do risco dessas operações. Essa transferência poderia ser realizada através da criação de uma empresa federal de propósito específico, que carregaria esses créditos e débitos. Uma alternativa seria utilizar uma empresa estatal já existe para isso, no caso a EMGEA - Empresa Gestora de Ativos - do governo federal.
1.2) Isenção pelo BNDES do pagamento de Imposto de Renda e Contribuições Sobre o Lucro e desobrigação de transferir dividendos à União. Esses mecanismos extra-orçamentários são utilizados em outros países, como a Alemanha, para conferir vantagens marginais de custo a seus bancos de desenvolvimento, inclusive como meio de reduzir o impacto de ineficiências que são inerentes ao controle público dessas instituições.
1.3) Criação da Letra de Crédito de Infraestrutura ou a Letra Financeira Vinculada à Infraestrutura, que seria emitida com lastro em operações amparadas na Lei 12431 e nas condições estipuladas por essa Lei. Com isso, o BNDES teria condições de concorrer em igualdade com as grandes empresas na captação de recursos de longo prazo, sempre que estivesse financiando diretamente projetos amparados nessa legislação. O financiamento do BNDES terá sempre uma importância muito grande em investimentos na fase de projeto e nos projetos que requeiram prazos mais longos.
2) Medidas Operacionais Específicas
2.1) Redução do prazo de tramitação e das exigências relativas aos créditos para empresas de bom risco financeiro, inclusive a obrigatoriedade de análise de projeto.
2.2) Criação de um programa de garantias firmes para a parcela das ofertas de debêntures incentivadas que não fossem atendidas pelos bancos privados. Ao mesmo tempo, a instituição deveria atuar como um importante dealer do mercado, promovendo a liquidez desses títulos no mercado secundário.
2.3) Redução e agilização dos requerimentos das operações indiretas, tornando-as mais atrativas para os bancos agentes.