Carta IEDI
BNDES do futuro, um banco voltado para o desenvolvimento
O BNDES, ao lado de outras instituições, teve importância histórica indiscutível no processo de desenvolvimento econômico e social do Brasil. Entretanto, assumindo que o próprio desenvolvimento produz grandes transformações que eventualmente podem tornar redundantes e ociosas as instituições que o promoveram, é fundamental que o papel do banco seja constantemente discutido.
O desenvolvimento brasileiro ainda precisa de um banco público que o promova? Seria o atual BNDES este banco? Estas são algumas questões norteadoras do estudo realizado pelo economista João Furtado, intitulado “Para um novo desenvolvimento, um novo BNDES”, que está disponível em sua íntegra no site do IEDI. Esta Carta sintetiza as principais propostas para reformulação das ações do BNDES. O IEDI dá, assim, continuidade à reflexão sobre o futuro do BNDES, que já foi tema de publicações anteriores, como a Carta n. 828 - “O futuro da atuação do BNDES”.
A resposta à primeira das questões norteadoras do trabalho de Furtado é positiva, já que mercado e banco de desenvolvimento se complementam de modo a potencializar o avanço das atividades econômicas. A missão dos bancos de desenvolvimento e do BNDES consiste, precisamente, em utilizar avaliações diferentes das do mercado para promover investimentos que sejam geradores de benefícios para a sociedade como um todo, mas cujo retorno privado seja - momentaneamente ou temporariamente - insuficiente sob as condições de mercado existentes.
O mercado privado de crédito pode exigir dos projetos de investimento prazos de maturação e retornos mais rápidos, bem como intensidade de capital e risco inferiores do que um banco de desenvolvimento pode demandar. Sobretudo, os financiadores privados não têm nenhuma razão econômica para calcularem transbordamentos ou retornos sociais, mesmo quando publicam relatórios ambientais ou sociais.
Deste modo, a existência de um banco de desenvolvimento está longe de ser uma “jabuticaba” da economia brasileira. Existem no mundo mais de 500 bancos desse tipo e seu número voltou a aumentar depois da grave crise global de 2008. Contudo, nem a experiência histórica brasileira nem a experiência internacional são suficientes para justificar a existência dessa estrutura no Brasil. É preciso que a atuação do BNDES continue se mostrando como uma alavanca do desenvolvimento.
Deste ponto de vista, parcialmente procedem as críticas ao BNDES. A primeira delas é a que mais tem feito eco na imprensa e em diversas instâncias da sociedade: favorecimentos a grupos específicos, por razões estranhas ao fomento do desenvolvimento. Sem desmerecer sua importância, esta é uma questão de mais fácil solução, com o reforço da governança, incluindo conselhos independentes e conselheiros com mandatos definidos, impedimento de reconduções e regras de funcionamento que tornem públicas as atas das reuniões de diretoria e dos conselhos.
Mais importante, é um segundo nível de crítica que diz respeito à própria natureza das intervenções do BNDES. É preciso reconhecer que depois do II PND (1975-79) houve um enorme alargamento das funções do banco (coordenador de privatizações, financiador de exportações de bens e serviços e de fusões e aquisições no Brasil e no exterior, agente de política industrial e tecnológica e de políticas anticíclicas), motivado por demandas pontuais, da conjuntura ou dos arranjos políticos momentâneos. Ademais, a prevalência por um longo período de taxas de juros muito elevadas reduziu substancialmente o universo de projetos de investimento realizáveis sob as condições “de mercado”, sobrecarregando o papel do BNDES como viabilizador do setor produtivo.
Assim, as ações do BNDES foram ampliadas, sem, porém, que isso as tornasse mais estruturantes. De grande artífice e operador da industrialização brasileira e de suas bases de infraestrutura, o banco assumiu diversas ações com atuação pontual – ainda que relevante - em todas as dimensões onde necessidades urgentes foram identificadas pelos governos. O fundamental para o futuro do BNDES é que haja um resgate de sua ingente e insubstituível missão de promover o desenvolvimento brasileiro.
O maior desafio da agenda brasileira de desenvolvimento consiste no revigoramento da sua capacidade de crescimento, que exige, além da estabilidade do ambiente macroeconômico, a constituição, nas empresas, nos setores, nas cadeias produtivas e nas aglomerações setoriais (clusters, distritos industriais, arranjos produtivos localizados), de capacidades tecnológicas que produzam a atualização dos padrões de produção – alavancando a produtividade –, de comercialização e de competição. O financiamento em condições adequadas dos esforços de capacitação tecnológica das empresas (de todos os tamanhos) deve ser uma prioridade sobre todas as demais, norteando a atuação do BNDES. Assim, a missão da produtividade tornar-se-ia a missão principal do BNDES.
No passado recente, muitas tentativas nessa direção foram iniciadas e interrompidas antes que pudessem frutificar. Governos, mesmo quando reeleitos, possuem mandatos muito mais curtos do que o período de maturação dos investimentos em novas áreas tecnológicas e para gerarem as mudanças estruturais que são imprescindíveis para que o sistema industrial brasileiro conheça o revigoramento sem o qual não poderá sobreviver em um horizonte mais longo, especialmente face ao advento da Indústria 4.0. Como a maior parte dos objetivos do desenvolvimento transcende qualquer mandato presidencial ou legislativo, o BNDES deveria ser uma espécie de guardião das missões constitucionais em prol do desenvolvimento brasileiro.
No intento de contribuir para o debate da constituição do BNDES de que o desenvolvimento brasileiro precisa, algumas propostas são sintetizadas a seguir:
• Reformulação e ampliação de escopo da Finame, com menor concentração das operações junto a montadoras de caminhões, ônibus e assemelhados; reformulação do cadastro da FINAME para privilegiar os instrumentos de difusão de produtividade e oferecer, às empresas produtoras e usuárias condições para acelerarem a adoção e a migração para novas gerações; inclusão no acervo de itens financiáveis pela FINAME de serviços de todas as naturezas, com ênfase em serviços tecnológicos, design, consultorias de engenharia, de exportação, de capacitação em manufatura enxuta e em manufatura avançada, etc.
• Finame Produtividade, para aquisição subsidiada de produtos e serviços promotores de produtividade empresarial e das cadeias produtivas, concentradas em 3 eixos: a) cadeias com potencial de exportação (FINAME - EXPORTAÇÃO); b) setores produtores de "bens salário" para ajudar no combate à inflação (FINAME - CONSUMO); c) projetos de infraestrutura para remover gargalos com economia de investimento (FINAME - INFRAESTRUTURA). Esse programa poderia ter uma vertente Indústria 4.0.
• Criação de um fundo de investimento em empresas de base tecnológica e inovadoras, com o objetivo não de apoiar startups ou empresas emergentes de base tecnológica de uma maneira geral, mas realizar a um recorte preciso e relativamente bem delimitado desse universo: empresas detentoras de tecnologias que possam servir para a elevação substancial da produtividade do sistema econômico.
• Estabelecimento de um “programa de apoio à criação de produtos e serviços brasileiros de classe mundial” destinado a projetar produtos e serviços brasileiros promissores em trajetórias de conquista de fatias relevantes nos mercados mundiais, reconhecendo que a única forma de amortizar os investimentos crescentes (e por vezes gigantescos) em P&D e em P&P é por meio de um denominador (dimensão de mercado) que vai muito além do que um país representa.
• Criação de um “programa de apoio à internacionalização das empresas, com propósitos tecnológicos para alcançar novas posições na cadeia de valor”, dado que o contato com o mundo e a exposição a novas fontes de concorrência e a novas oportunidades de aquisição de competências e recursos são uma fonte importante de dinamismo e vitalidade para as empresas. O programa deveria limitar os apoios à aquisição de ativos de natureza tecnológica e assemelhados (design, por exemplo; ou marcas de reputação; ou ainda certificações que permitam ampliar os horizontes de mercado).
• Financiamento de entrepostos comerciais e incubadoras tecnológicas para pequenas e médias empresas brasileiras no exterior (Vale do Silício, China, Alemanha), voltado para a constituição de bases de incubação de empresas brasileiras com potencial tecnológico em espaços econômicos de elevado dinamismo tecnológico, onde as suas chances de transformarem as suas propostas em produtos ou serviços de classe mundial existem.
• Programa de internacionalização para aquisição de mercados, uma vez que poucas dezenas as empresas brasileiras industriais e de serviços contam com presença relevante em outros mercados com atividades para além da exportação. É preciso reconhecer que as tecnologias são, cada vez mais, de alcance mundial e que nenhuma empresa confinada a um espaço nacional será capaz de acompanhar os desenvolvimentos tecnológicos que se originam em uma multiplicidade de polos econômicos.
• Apoio à Economia de Baixo Carbono (EBC), reconhecendo que o Brasil poderá sofrer restrições em suas exportações em um cenário de redução impositiva de emissões de carbono.
• Desenvolvimento de tecnologias para conciliar agricultura familiar e serviços ambientais, de modo a evitar a desertificação rural, promovendo a translação das pesquisas científicas e tecnológicas de natureza mais acadêmica para tecnologias, técnicas e equipamentos e artefatos que permitam elevar de modo significativo a produtividade do trabalho e reduzir o caráter penoso das lides agrícolas e rurais de uma maneira geral.
• Apoio à transição energética, pois, em que pesem as medidas recentes em prol da energia eólica e solar, o Brasil continua distante de uma iniciativa vigorosa e consistente em direção às novas tecnologias que estão alimentando o salto das indústrias produtoras de equipamentos e do uso de energias renováveis tanto no meio industrial quanto nas famílias.
1. Introdução
O BNDES é uma das mais importantes e prestigiosas instituições brasileiras. Fundado por Getúlio Vargas em 1952, representou o alicerce institucional culminante do grande projeto de industrialização de Vargas. O projeto foi encetado, não sem ousadia, já nos anos 1930 e estruturado de modo muito mais vigoroso e consistente no governo iniciado em 1951 (e encerrado de modo intempestivo em agosto de 1954). Ao lado da CSN e da Petrobras, que foram os dois alicerces materiais da industrialização, o BNDE representou o grande instrumento apoiador, quando não o viabilizador, da geração de projetos - de infraestrutura e da indústria de transformação - que nos anos 1950 e nos dois decênios seguintes deram um extraordinário impulso ao aparelhamento do desenvolvimento brasileiro e à indústria de transformação. É indiscutível a importância histórica dessa instituição singular (no contexto brasileiro) que é Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, que ganhou o Social em sua sigla no início dos anos 1980, durante o governo de Figueiredo e sob o comando de Delfim Netto no Planejamento.
Papéis históricos de grande relevo justificam a perenidade das instituições? O próprio desenvolvimento não deve produzir as grandes transformações que tornam redundantes e ociosas as instituições que o promoveram? Quando a família auxilia a criança em seus primeiros passos não é para que ela possa, com autonomia crescente, caminhar e desenvolver-se? Não seria esse o ponto culminante do processo de desenvolvimento, quando as formas de atuação e as instituições de Estado, que tiveram que ser formadas para suplementar os papéis insuficientes da iniciativa privada, se mostram desnecessárias, justamente por terem sido capazes de gerar uma dinâmica econômica suficientemente lastreada nos indivíduos, nas empresas e nos capitais privados - quer dizer, em suas forças autônomas? Não teria sido assim e nesse momento alcançado o que foi estabelecido na Constituição - no seu primeiro artigo e no primeiro artigo do capítulo referente à ordem econômica e financeira, que outorgam à propriedade privada e à livre iniciativa a responsabilidade básica pelo funcionamento do sistema econômico? Para relembrar o que não deveria ser nunca esquecido: a Constituição propugna que a propriedade privada e a livre iniciativa são os esteios da ordem econômica (“fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa” - artigo 170), ressalvando, entretanto, que a propriedade tem uma função social e as empresas estatais podem desempenhar papéis suplementares, sempre que a livre iniciativa não seja capaz de produzir os resultados almejados.
Como em outras oportunidades, a Constituição aponta grandes objetivos, mas não explica exatamente como alcançá-los. Por exemplo, no inciso IV do primeiro artigo, a Carta afirma “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”, sem, no entanto, estabelecer como eles devem ser compatibilizados, uma tarefa distante do trivial. Logo a seguir, no inciso II do artigo terceiro, menciona “garantir o desenvolvimento nacional” (que não é definido) e no inciso seguinte “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (que também não são determinadas), sem que, no entanto, seja possível concluir se essa missão superior caberia à propriedade privada, à livre iniciativa ou ao papel suplementar do Estado. Em que pese a inconclusividade da Carta, o bom senso e a observação da realidade parecem indicar que a consecução dos objetivos superiores que ela aponta demandam ações estruturantes e de longo prazo, o que pode eventualmente demandar intervenções do Estado que perpassam diversos governos e não devem sofrer descontinuidades, sob o risco de que os esforços realizados sejam perdidos antes de sua maturação.
Seria tentador recorrer ao ambiente internacional e aos muitos diferentes países para encontrar em suas experiências as prescrições e respostas fáceis. Existem no mundo mais de 500 bancos de desenvolvimento, com as mais diferentes histórias, trajetórias, funções, modelos de governança e resultados. Mais do que isso, os bancos de desenvolvimento existem em países desenvolvidos e em desenvolvimento, e a sua demografia não tem apresentado uma tendência linear: o seu número vinha se reduzindo desde os anos 1980-90, mas a crise deflagrada em 2008 representou uma reversão e desde então novas instituições financeiras promotoras do desenvolvimento foram criadas - em regiões, em países e também agregando esforços de vários países. O exemplo mais notável é o chamado Banco dos BRICS, criado em 2014 (sediado na China e integrado pelo Brasil). Existem, pois, evidências no mundo em favor de bancos de desenvolvimento e elas envolvem países, regiões (subnacionais e supranacionais), setores (agricultura, tecnologia), segmentos empresariais (pequenas empresas). Também existem evidências que sustentariam a sua desimportância ou, pior, os efeitos nocivos de suas ações, seja pelo fracasso dos seus projetos, seja pelos seus custos para o orçamento público e a sociedade.
Por isso, nem a experiência histórica brasileira nem a experiência internacional são suficientes para justificar a existência de um banco de desenvolvimento, o que é mais verdadeiro ainda quando esse banco representa um custo importante para a sociedade brasileira e para os trabalhadores, no primeiro caso em razão da dimensão fiscal e no segundo em decorrência dos mecanismos de seu financiamento compulsório (FAT). Se a sociedade brasileira precisa decidir sobre a necessidade e a oportunidade de contar com um banco de desenvolvimento - seja o BNDES ou outro - a resposta não pode ser dada olhando para o passado, mas com uma visão de futuro.
2. Algumas críticas à atuação do BNDES
São frequentes as críticas aos bancos de desenvolvimento e ao BNDES em particular. No passado, a crítica principal era dirigida ao “hospital de empresas”, quando o banco foi chamado, por mais de um governo, a impedir a quebra de empresas que haviam entrado em concordata, por razões normais de negócios ou vítimas de administrações temerárias. Existem certamente casos em que o banco foi chamado a salvar empresas e arcou com prejuízos, mas há também casos importantes em que a intervenção do banco permitiu criar empresas brasileiras de alto nível, competitivas e lastreadas em administrações profissionais.
Existem dois níveis principais de críticas ao BNDES. O primeiro refere-se à sua condução em diferentes governos, que o utilizam, segundo os críticos, para finalidades ilegítimas, eventualmente para oferecer aos “amigos” créditos em condições vantajosas. As críticas dirigidas à utilização do BNDES para favorecimentos a grupos específicos, por razões estranhas ao fomento ao processo de desenvolvimento, podem ser resolvidas com o reforço da governança, incluindo conselhos independentes e conselheiros com mandatos definidos, impedimento de reconduções e regras de funcionamento que tornem públicas as atas das reuniões de diretoria e dos conselhos. O segundo nível é mais estrutural e diz respeito à própria natureza de suas intervenções, em substituição ao mercado - empresas e investidores, sendo este o tema principal abordado neste documento. Afinal, se existem críticas à governança do BNDES, existirão as mesmas críticas, com intensidade redobrada, a muitas outras instituições brasileiras, sejam públicas ou privadas, e nem por isso se defende a sua extinção. Por isso a reflexão e a discussão desse documento estão direcionadas à necessidade ou não de um banco público para fomentar o desenvolvimento brasileiro.
O uso de recursos de natureza pública para o financiamento de projetos privados é uma das principais críticas dirigidas ao BNDES. Ela procede? Esse uso encontra justificativa na natureza dos projetos financiados, que teriam, por hipótese, retorno social superior ao retorno privado em uma magnitude pelo menos equivalente ao subsídio implícito no financiamento? O conceito de externalidade positiva é útil para o entendimento do tema. Se um investidor privado tomar a sua decisão racionalmente (espera-se), ele deverá privilegiar, quando não ser guiado exclusivamente, pela perspectiva de retorno financeiro. Se assim fizer, esse investidor poderá, por exemplo, privilegiar investimentos que geram externalidades negativas para a sociedade (poluição, por exemplo) e deixam de gerar externalidades positivas (postos de trabalhos mais qualificados, por exemplo). Quando o poder público fornece recursos financeiros vantajosos para que o investidor privado decida a favor do projeto que possui menores custos ambientais (uso de recursos renováveis, por exemplo) e maior retorno social (aumento da competitividade da economia, por exemplo), terá assumido, por algum mecanismo, o custo financeiro de um benefício para toda a sociedade. Espera-se, por critérios mensuráveis, que o benefício seja superior ao custo.
Mas a missão - e o sucesso e fracasso - do banco de desenvolvimento tem, sobretudo, que confrontar os custos e os benefícios em dois horizontes temporais e em duas escalas de magnitude. O Brasil é invejado mundialmente por sua matriz energética, predominanemente de origem renovável, mesmo construída nos anos 1950, 1960 e 1970. Uma fração importante dessa matriz corresponde ao vetor de combustíveis líquidos de origem renovável, e a parte mais importante desses biocombustíveis nasceu nos anos 1970 e consolidou-se nos anos 1980, com investimentos em grande parte financiados pelo Estado, com importantes subsídios (em um período de inflação ascendente, as condições dos empréstimos eram pré-fixadas e não envolviam correção monetária). Este subsídio à formação de capital representou um custo importante para a sociedade brasileira? Sem dúvida, mas ele tem que ser comparado com os benefícios decorrentes da transformação da matriz energética brasileira, com a constituição de um setor - há muito tempo competitivo, que caminha com suas próprias competências - gerador de produção, criador de empregos, exportações, economia de importações, demanda de produtos e serviços tecnológicos, empregos crescentemente qualificados, descontando-se dessa lista de vantagens e benefícios alguns efeitos secundários negativos (por exemplo, os efeitos das queimadas que antecedem a colheita). Os investimentos pioneiros, quase sempre subsidiados (na formação de capital e no prêmio ao álcool carburante) permitiram que as empresas e o setor construíssem uma curva de aprendizado que reduziu em mais de 60% o custo inicial do produto.
A missão dos bancos de desenvolvimento e do BNDES consiste, precisamente, em utilizar avaliações diferentes das que realiza o mercado para promover investimentos que sejam geradores de benefícios para a sociedade, mas cujo retorno privado seja - momentaneamente ou temporariamente - insuficiente sob as condições de mercado existentes. Isso não significa que não exista alguma sobreposição entre ambas as avaliações. Mas o mercado poderá demandar um investimento com prazos de maturação e de retorno mais curtos, bem como intensidade de capital e risco inferiores. Sobretudo, o mercado e os investidores e financiadores privados não têm nenhuma razão econômica para calcularem transbordamentos ou retornos sociais, mesmo quando publicam relatórios ambientais ou sociais.
Na situação atual, a prevalência por um período muito longo de uma taxa de juros muito elevada reduz substancialmente o universo de projetos de investimento realizáveis sob as condições “de mercado”. Isso tornou o leque de projetos financiados pelo banco extremamente largo. Por vezes, como parece ter sido no programa anti-cíclico PSI, excessivo, com custos fiscais que estão longe de corresponder aos seus resultados para a sociedade. De fato, em uma avaliação realista e desapaixonada, será necessário reconhecer que o Brasil esgotou a sua capacidade de conceber e implementar política industrial junto com a substituição de importações, e ainda não conseguiu formar novas competências institucionais e políticas nessa matéria.
3. Fundamentos para a atuação do BNDES em prol do desenvolvimento brasileiro
O principal desafio para uma reflexão séria, desinteressada e desapaixonada sobre o eventual papel ou os eventuais papéis do BNDES no desenvolvimento brasileiro exige, preliminarmente, o afastamento de duas posições igualmente imobilizantes: a defesa incondicional do Banco Nacional de Desenvolvimento e a negação liminar da necessidade de sua existência. Se a primeira sacraliza o papel do BNDES na promoção do desenvolvimento, a segunda o relega a papéis menores e secundários, antes da sua marginalização ou da subordinação a lógicas reducionistas do desenvolvimento. As duas posições extremas e extremadas (e o maniqueísmo associado) não prestam um bom serviço ao debate e não ajudam a construir uma reflexão fundamentada e consistente, que possa produzir proposições e soluções superiores para o Brasil, sejam elas em favor de missões para o Banco ou para as eventuais alternativas.
Quando o BNDE foi criado, em 1952, a sua missão principal consistiu em disponibilizar os instrumentos financeiros para viabilizar que a indústria brasileira e sobretudo as suas infraestruturas associadas (inclusive as da urbanização acelerada) pudessem ser alçadas a um novo patamar. Enriquecido pela experiência do período da Segunda Guerra Mundial, e pelos estudos e proposições que foram produzidos pela Assessoria Econômica de Getúlio Vargas e pela Cooperação com os Estados Unidos, o Estado impulsionou a criação dessa Instituição que se tornou, ao longo dos decênios seguintes, vital, em um primeiro momento, e progressivamente onipresente no funcionamento da economia brasileira, duas características que ficarão mais claras ao longo dos próximos parágrafos.
No período inicial, além da mobilização de recursos financeiros adequados a projetos mais exigentes, o BNDE lançou mão de importantes inovações institucionais que permitiram que a sua atuação alcançasse elevados padrões de desempenho técnico e no caráter público do seu papel. O próprio conceito de projeto constituiu uma inovação institucional e ela norteou a atuação do BNDE, assegurando que os seus financiamentos pudessem ser acompanhados de modo efetivo ao longo de sua execução. Na sua origem, portanto, o BNDE representou uma dupla inovação: no seu objeto, que foi o financiamento de longo prazo, até então inexistente ou muito escasso; e na sua forma de atuação, com critérios técnicos superiores na avaliação dos projetos submetidos e no acompanhamento daqueles aprovados.
Ao longo do tempo, nestes mais de 30 anos posteriores aos grandes desafios da industrialização e da substituição de importações (anos 50, 60 e 70), o já BNDES (com o S agregado em 1982) foi assumindo novas áreas de atuação. Na representação gráfica em que o Banco sintetiza a multiplicidade das suas formas de atuação essas novas funções vão surgindo e alargando o escopo inicial, quase se isso ocorresse naturalmente:
Até o final da década de 1960, o BNDES permaneceu focado na área de infraestrutura. Atuando como arquiteto do desenvolvimento econômico, no início da década de 1970, o banco expandiu seu escopo de atuação de modo a incluir suporte à modernização e reorganização de um conjunto de empresas intensivas em trabalho e com potencial exportador, como calçados, têxteis e vestuário. Em meados dos anos 1970s, o BNDES passou a administrar os recursos oriundos do PIS-PASEP e, com uma base financeira ampliada e mais estável, foi agente central no suporte da política de substituição de importações em setores estratégicos intensivos em capital (e.g. bens de capital, metalurgia, petroquímica, papel e celulose), priorizados pelo II PND.
Em convergência às ideias predominantes (resumidamente, o “Consenso de Washington”), no final da década de 1980 o BNDES começou a planejar o processo de privatização em áreas como mineração, metalurgia, telecomunicações e energia. Já em 1991, o banco participou ativamente nas privatizações com suporte técnico, jurídico, administrativo e financeiro nos leilões de empresas públicas. Em paralelo, o escopo de atividades do banco também aumentou na direção de estabelecer linhas de crédito voltadas à exportação de bens e serviços nacionais. Nos anos 2000, durante o governo Lula, o BNDES recebeu missões adicionais, com destaque para seu papel na política industrial e tecnológica, incluindo a promoção de investimento direto voltado à exportação de bens e serviços de engenharia, suporte a fusões e aquisições no Brasil e no exterior, e suporte à P&D e inovação, e sua atuação como fonte de financiamento anti-cíclico durante (e após) a crise financeira internacional de 2008-2009.
A forma como foram sendo agregadas funções, atividades, papéis – de modo consistente ou ad hoc – ao longo de sucessivos períodos históricos e ciclos presidenciais, desde pelo menos o final do período do II PND (1975-79), representaram um enorme alargamento das funções do BNDES. Motivadas por demandas pontuais, da conjuntura ou dos arranjos políticos momentâneos, essas novas funções e atividades alargam a atuação, mas não a tornam mais estruturante. Em nenhuma dessas novas áreas fez o BNDES qualquer diferença, muito menos que seja comparável àquela que teve em sua atuação nos primeiros 30 anos de existência. Quereria isso dizer que o papel do banco foi, neste período mais recente, pouco relevante? Por certo, não. Que o digam os beneficiários do Cartão BNDES ou as exportações de aeronaves, em dois extremos de uma atuação que abrange atores muito distintos (miríade de empresas e uma grande campeã nacional). Ou, na década das privatizações, a transferência do capital controlador para mãos privadas, que criou novas estruturas econômicas e padrões de desempenho empresarial muito distintos daqueles que vigoravam. Ou ainda, mais recentemente, o papel contra-cíclico após a crise deflagrada em 2008. Mas nenhuma dessas ações, por proeminentes ou atrativas que se afigurem momentaneamente, alcança a importância decisiva que o BNDE teve, para o Brasil e para o desenvolvimento brasileiro, nos seus primeiros 30 anos de existência.
De grande artífice (e também excelente operador) da industrialização brasileira (e de suas bases de infraestrutura) o banco transformou-se em um diligente faz-tudo com atuação pontual - e pontualmente relevante - em todas as dimensões onde necessidades urgentes são identificadas pelos governos ou pelas áreas proeminentes dos governos. A mera criação de novas caixinhas, para que o BNDES possa executar uma nova função, está longe de promover o seu reencontro com a sua missão singular de promotor do desenvolvimento brasileiro. O inverso seria, muito provavelmente, mais verdadeiro: cada uma dessas novas funções afasta ainda mais o Banco da sua ingente e insubstituível missão, de promover o desenvolvimento brasileiro por meio do apoio vigoroso e qualificado à criação de novas capacidades econômicas, que possam produzir a contemporaneidade das estruturas produtivas e do sistema econômico brasileiros. Na missão constitucional, esse sistema deve estar baseado no trabalho e na livre iniciativa, que devem formar a base para a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana (como preconiza o artigo primeiro), bases de uma “sociedade livre, justa e solidária”, que possa “garantir o desenvolvimento nacional”, “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” e “promover o bem de todos”. Sem um sistema econômico vigoroso, dinâmico e competitivo vários desses atributos constitucionais serão irremediavelmente sacrificados.
Se a criação de novas funções (ou “caixinhas”) contribui apenas marginalmente para a missão maior do banco, mas com riscos sérios de desvirtuá-la, a mobilização de sua grande estrutura e de muitas de suas competências mais consolidadas (outras “caixinhas”) para o alcance de objetivos de momento também não contribui muito para os propósitos maiores. Essas funções podem ser o enfrentamento de uma severa restrição externa, a transferência de ativos, a criação de grandes empresas nacionais ou o enfrentamento de uma crise cíclica - pouco importa a relevância momentânea do novo objetivo, ele é só isso mesmo, um objetivo momentâneo, de uma fração de um governo. O currículo do BNDES poderá receber mais essa condecoração, mas ela não ajudou o desenvolvimento brasileiro e provavelmente protelou-o com mais uma ação diversionista. Pior, esse novo sucesso terá reforçado as expectativas de todos os agentes políticos relevantes de poderem utilizar o banco para os seus propósitos e para os objetivos setoriais e parciais de suas agendas.
A direção do Banco sempre poderá justificar as suas ações como sendo a resposta a diretrizes do governo, o que apenas parcialmente corresponde à realidade. A depender da direção que o banco possua em cada momento, poderá ter um grau de autonomia maior ou menor, mas sempre relativamente elevado com relação àquela que possuem outras áreas do governo. E o atendimento de demandas específicas de um determinado governo, de cada governo e de todos os sucessivos governos, não impediria o BNDES de exercer a sua verdadeira e única missão - o apoio enérgico e decisivo aos preceitos constitucionais, aos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, por meio da criação de novas oportunidades de transformação da base econômica e dos alicerces do desenvolvimento. Se não for essa a missão do Banco, e se as suas principais ações não forem nessa direção, com resultados efetivos demonstráveis, será difícil justificar a sua existência.
O enfrentamento da verdadeira missão envolve a resposta à questão portanto crucial: poderá o BNDES levar a contento a sua grande missão? Se a resposta a essa questão for negativa, talvez tenhamos que admitir que a sua razão de ser deixou de existir. Uma resposta afirmativa, diversamente, envolve a definição de políticas, programas e ações que possam ser implementadas a contento pelo BNDES (ou com o BNDES), e que não possam ser desempenhadas pelas iniciativas privadas ou por outras instituições públicas, de modo a alçarem a economia brasileira a um novo patamar.
Se nos anos de 1950 era a infraestrutura - base da industrialização e da urbanização - o desafio maior do desenvolvimento e do BNDE como instrumento financeiro de sua promoção, se nos decênios seguintes foi a indústria de transformação e o completamento da base industrial brasileira que mobilizou os recursos e as competências do banco para o alcance de sua trajetória bem-sucedida, quais seriam os grandes desafios deste segundo quartel do século 21?
4. Missão, compromissos e contrato de gestão com a sociedade brasileira
O BNDES é uma das mais poderosas instituições do Estado brasileiro. A ele foi concedida uma missão de alta relevância e recursos financeiros e humanos correspondentes. Por isso mesmo, o BNDES deveria evitar, sempre que possível, imiscuir-se nas questões (comezinhas) da conjuntura e do financiamento a tudo aquilo que os demais atores - privados e públicos - tratam com grau aceitável de proficiência.
A maior parte dos objetivos do desenvolvimento transcende qualquer mandato presidencial ou legislativo, mesmo no caso (que se tornou normal) de mandatos executivos que tendem a ser renovados e perfazem 8 anos. Por isso mesmo, existe uma contradição evidente entre a atuação do BNDES como instrumento da sociedade brasileira para a promoção do desenvolvimento nacional e as suas respostas aos governos que se sucedem a cada 4 ou a cada 8 anos. Em um certo sentido, o BNDES deveria ser uma espécie de guardião das missões constitucionais em prol do desenvolvimento brasileiro.
5. As encruzilhadas e os impasses da economia brasileira
O grande desafio da agenda brasileira de desenvolvimento consiste no revigoramento da sua capacidade de crescimento, que exige, além da sonhada estabilidade do ambiente macroeconômico, alicerces saudáveis em termos da estrutura produtiva, do sistema industrial, das cadeias produtivas, dos padrões de competição e, por fim, dos níveis de competitividade. Embora muitos economistas pretendam que a estabilidade macroeconômica é a condição necessária para a retomada do crescimento sustentável, essa promessa tem sido frustrada há quase um quarto de século, sem evidências de que possa ser cumprida. A redefinição das condições para o crescimento sustentável pode beneficiar-se de um ambiente macroeconômico mais estável, mas este está longe de assegurar o crescimento, muito menos padrões de competitividade saudáveis.
A realidade oferece evidências sistemáticas e eloquentes do grande atraso relativo do nosso sistema industrial. Este atraso não decorre meramente da ausência de crescimento, está mais ligado à ausência de mudanças na sua estrutura e nas suas fontes de dinamismo. O último surto de crescimento com mudanças estruturantes no sistema industrial ocorreu nos anos 1970, com desdobramentos na primeira metade dos anos 1980, e corresponde grosso modo à implantação de atividades típicas do padrão de produção que o mundo construiu ao longo da primeira metade do século 20 e difundiu no quarto de século seguinte. Insumos básicos (siderurgia, siderurgia de não-ferrosos, petroquímica, celulose) e bens de equipamento característicos do padrão metalmecânico foram os grandes alicerces dessa etapa da industrialização brasileira e desde então o fosso que nos separa do mundo aumentou, distanciando cada vez mais o sistema industrial brasileiro do padrão vigente nos países mais avançados (o núcleo dos países da OCDE) e nos retardatários com ambições industriais consistentes (representados pelos Tigres Asiáticos e agora transportados para outra escala e proeminência pela China).
Desde que se completou no Brasil, durante o período do II PND (1975-79), a implantação das estruturas setoriais que orientaram o sistema industrial do século 20 nos principais países, e o mundo acelerou o ritmo das mudanças em direção a um novo paradigma técnico-econômico, as iniciativas brasileiras nessa direção têm sido incipientes e descoordenadas. Sempre se poderá argumentar que a crise da economia brasileira (entre 1979 e 1982) produziu um tal turbilhão que nenhuma atenção poderia ser dada a qualquer outra dimensão que não a dívida externa, o déficit público e a inflação, temas que monopolizaram a atenção dos gestores das políticas econômicas pelo menos até 1994 e que serenaram, desde então, mesmo sem terem sido equacionados de modo definitivo. Mas também devemos reconhecer, a bem do realismo, que as ações estruturantes que diferentes organismos governamentais ensaiaram ao longo desses muitos anos desde o esgotamento da substituição de importações foram insuficientes ou deficientes, em qualquer caso incapazes de produzir resultados que possam justificar os esforços e lastrear novas ações.
Muitas tentativas, em vários campos, foram iniciadas e interrompidas antes que pudessem frutificar. Governos, mesmo quando reeleitos, possuem mandatos muito mais curtos do que o período de maturação dos investimentos em novas áreas tecnológicas e para gerarem as mudanças estruturais que são imprescindíveis para que o sistema industrial brasileiro conheça o revigoramento sem o qual não poderá sobreviver em um horizonte mais longo. Algumas empresas brasileiras podem orgulhar-se de terem conseguido ganhos relevantes de produtividade e de competitividade, ostentando resultados que enchem de justo orgulho os seus dirigentes, acionistas e colaboradores, para cujo bem-estar contribuem. Mas como não é de andorinhas isoladas que se faz verão, também não é de casos destacados - e isolados - que se faz um sistema industrial. Um sistema é, por definição, um conjunto complexo de relações recíprocas que permitem que cada empresa avance em seus padrões de produção e de competitividade puxando outras, delas recebendo, em retorno, idênticos estímulos. Afinal, ilhas de excelência, que o Brasil possui, não formam um sistema industrial e não são capazes de impulsionar a economia brasileira e o seu processo de desenvolvimento. Muitas dessas ilhas de excelência contaram, ao longo de suas trajetórias, com o apoio financeiro - maior ou menor - do BNDES aos seus investimentos, mas essas empresas possuem estruturas de financiamento muito mais favoráveis nos mercados privados do que as demais empresas brasileiras. Por mais que possamos identificar no vasto território industrial brasileiro casos extraordinários de empresas bem-sucedidas, temos que reconhecer que o sistema industrial brasileiro está em processo de enfraquecimento e vem perdendo algumas de suas principais qualidades, entre elas a forte integração entre os seus elementos constituintes.
Enquanto o Brasil completava as tarefas - importantes, sem dúvida - da segunda revolução industrial, o mundo iniciava a transição para a terceira, baseada não mais nas escalas e nos volumes de produção, mas cada vez mais na produção flexível, na automação de base microeletrônica, na superação do fordismo. O mergulho na crise nos anos 1980 contribuiu de maneira decisiva para que as tarefas de promover o desenvolvimento das indústrias recém-implantadas e a adesão progressiva ao novo padrão industrial emergente não pudessem realizar-se.
O grande desafio do BNDES não pode ser, portanto, o apoio ao núcleo superior da estrutura industrial brasileira e dos demais setores, pois esses possuem alternativas de financiamento relativamente saudáveis para a maior parte das suas atividades empresariais mais rotineiras, mesmo para investimentos de capital fixo de prazo mais longo. Haveria, sem dúvida, atividades e projetos dessas empresas que seriam merecedores de atenção especial e recursos financeiros de qualidade superior, como é o caso do financiamento das exportações de equipamentos, em que os produtores e exportadores brasileiros possuem evidentes desvantagens e enfrentam competidores apoiados por instituições e programas especialmente vigorosos. Mas é possível sustentar que a maioria das operações de financiamento que são direcionadas para a elite empresarial brasileira melhora o desempenho financeiro dessas empresas, mas não faz diferença relevante em termos da promoção do desenvolvimento. Os investimentos ocorreriam, na maior parte dos casos, com os recursos de outras fontes. Os recursos e as ações do BNDES devem ter outro destino, que é o de produzir a diferença no sistema industrial. E nessa função, nobre, o seu papel é possivelmente insubstituível, seja pela natureza das operações, seja pelos riscos envolvidos, seja - mais que tudo - pela necessidade de serem esses investimentos articulados em um desenho inteligente que só pode ser produzido no interior do Estado, em sintonia e colaboração estreita com os atores privados e os investidores.
Uma das fragilidades reconhecidas da indústria brasileira é a atrofia da sua função tecnológica, um fato amplamente reconhecido (cujas causas não cabe discutir ou analisar aqui). Desde pelo menos os anos 1980, quando os investimentos do II PND foram completados, a indústria brasileira acumula um atraso crescente. Mas diferentemente dos investimentos típicos do II PND, os investimentos dos ciclos industriais subsequentes não estão associados simplesmente à implantação de novas plantas, por modernas que sejam. Eles demandam, também, esforços tecnológicos sistemáticos e, em alguns casos, crescentes. O pacote de investimentos do II PND envolvia escalas de produção elevadas e tecnologias consolidadas, mas os desafios estavam restritos à aquisição, demandando esforços modestos para o uso e o aperfeiçoamento (que oferecia subsequentemente oportunidades meramente incrementais).
Desde o advento da terceira revolução industrial, iniciada com a introdução dos controladores programáveis no início dos anos 1970, a velocidade das mudanças cresceu e os processos produtivos e os mercados passaram a demandar esforços crescentes para acompanhar o deslocamento das fronteiras tecnológicas e dos padrões de competição. Foi neste ponto da evolução que a indústria brasileira “perdeu o pé”, e é para este processo de recuperação e transformação que a indústria e a economia brasileiras precisam ser preparadas.
O elemento fundamental desse processo é a constituição, nas empresas, nas indústrias (setores), nas cadeias produtivas e nas aglomerações setoriais (clusters, distritos industriais, arranjos produtivos localizados), de capacidades tecnológicas que produzam a atualização dos padrões de produção, de comercialização e de competição. O financiamento - em condições adequadas - dos esforços de capacitação tecnológica das empresas (de todos os tamanhos) deve ser uma prioridade sobre todas as demais. O desenho das linhas básicas dos programas correspondentes é apresentado adiante neste documento, mas aqui são apresentadas algumas fundamentações.
A capacitação e o desenvolvimento tecnológicos representam atividades nucleares de qualquer empresa acima de certo porte. No caso de setores com grande número de pequenas empresas, sobretudo quando aglomeradas, essa responsabilidade pode ser desempenhada por instituições externas, de natureza coletiva. Ainda assim, ela é vital no mundo contemporâneo e nenhuma empresa pode prosperar, talvez mesmo sobreviver, se não puder contar com o acesso a fontes de informação, conhecimento e desenvolvimento tecnológico, sejam elas internas ou externas. Na ausência desse ativo de caráter cumulativo, o provável é que as empresas regridam para padrões competitivos baseados em fatores espúrios e insustentáveis frente às trajetórias globais.
A constituição dessa capacidade no Brasil corresponde, nos dias de hoje, ao desafio da infraestrutura nos anos 1940-50. Naquela época, os investimentos industriais eram impedidos pela inexistência de infraestrutura - energia, sobretudo, mas transportes também. Foi a entrada em cena de recursos financeiros dedicados e de uma instituição vitalizada por um mandato claro que permitiu que o Brasil superasse essa paralisante restrição ao longo dos anos 1950-60, pavimentando o terreno para o avanço industrial e a urbanização. Na atualidade, a esmagadora maioria das empresas industriais brasileiras - incluindo algumas das grandes empresas - esgotou o seu potencial de desenvolvimento e de competitividade com o acervo de recursos produtivos disponíveis. Para avançarem, para conquistarem novos padrões de competitividade, para enfrentarem os desafios vindouros (como a indústria 4.0), elas precisam ter acesso a novos recursos produtivos, em bases regulares. A única forma de assegurá-los é por meio de competências tecnológicas.
Essas competências requerem a existência, nas empresas, de pelo menos um neurônio tecnológico, um indivíduo dotado das características técnicas necessárias para o diálogo com o mundo externo na linguagem que é a da tecnologia. O tecnólogo pode ser também o elemento central do desenvolvimento de competências na empresa, mas ele é sobretudo a antena que capta as mudanças no ambiente externo e as traduz para o mundo interno. Sempre que a empresa tem um tamanho suficiente para possuir um núcleo tecnológico mais robusto, essa deve ser a solução privilegiada. Aliás, um pequeno número de empresas brasileiras possui mais do que um núcleo tecnológico, possuem áreas tecnológicas densas e competentes. Mas se, ao contrário, a empresa não possui o tamanho mínimo necessário para dispor de um tecnólogo, o sistema público ou o associativo (setorial, local) deve encontrar engenharias institucionais e meios de provê-lo.
A iniciativa recente da CNI que criou os Institutos SENAI de Inovação poderia ser considerada um embrião na direção apontada. Os institutos representam a oportunidade para a indústria de oferecer para as empresas industriais centros de competências temáticas capazes de desenvolverem soluções para os desafios que elas identificam. Na sua maioria, mesmo os Institutos que já estão bem estruturados (em termos de instalações e equipes) desenvolvem projetos quase exclusivamente com empresas de maior porte e não alcançam as pequenas e médias empresas. Com instalações e equipamentos modernos, eles podem ser a base física para serviços tecnológicos, mas ainda carecem de equipes capazes de apresentar capilaridade e promover penetração dos vetores tecnológicos e da evolução técnica e produtiva na vasta demografia industrial brasileira. Para superar essa limitação são necessários outros investimentos, em equipes mais numerosas que devem contar com pesquisadores e desenvolvedores e também com profissionais que sejam capazes de levar as mensagens da tecnologia às empresas e atraí-las para a capacitação e o desenvolvimento de processos de aprimoramento industrial e aquisição de competências tecnológicas.
Um meio alternativo de oferecer maior capilaridade nas ações de natureza tecnológica é por meio de serviços de consultoria para a produtividade. Ao contrário de outras abordagens, que identificam a necessidade de eliminação pura e simples da “cauda” inferior das empresas brasileiras, é nosso entendimento que a grande maioria das empresas, mesmo as que estão distantes da fronteira de produtividade, são um ativo da economia brasileira e podem ser promovidas a uma condição superior - com políticas, programas e ações com esse propósito. Programas como o Brasil Mais Produtivo vão exatamente na direção proposta, mas carecem, ainda de escala adequada.
O escalonamento dessa iniciativa tão necessária pode envolver a mobilização de novos profissionais, de forma independente ou em associação com as instituições existentes, demandando uma escala muito superior e uma maior variedade de participantes (públicos e privados). Assim como a EMBRAPII credenciou instituições de pesquisa e desenvolvimento capazes de executarem projetos de interesse empresarial, o modelo proposto poderia credenciar instituições - públicas e privadas - capazes de oferecerem serviços de desenvolvimento produtivo. Evidentemente, dadas as dificuldades típicas das pequenas empresas, e as urgências em que estão mergulhadas, impedindo-as de se dedicarem a qualquer atividade de horizonte mais longo ou retorno mais demorado, o processo deveria conter um elevado grau de subsídio ou diferimento de pagamento. Se a solução do subsídio parece impraticável na situação orçamentária atual, a alternativa poderia ser o financiamento com prazos dilatados e carências adequadas aos diferentes casos. Nem sempre o instrumento financeiro é um bom substituto do fiscal, mas neste caso, face às restrições, talvez esse seja o caminho e talvez ele possa funcionar a contento. O que vale para serviços tecnológicos e para consultorias técnicas de produtividade vale, com igual razão, para programas de serviços de consultoria em design, em comercialização e em exportação.
Os esforços propostos até aqui produzirão resultados importantes e poderão ter grande impacto sistêmico na indústria e na economia brasileira, mas possuem um efeito adicional: eles são uma base importante que prepara o tecido industrial e a economia para a manufatura avançada ou a indústria 4.0. Embora os desafios desse novo modelo industrial e econômico sejam muito maiores, e envolvam novas tecnologias de natureza muito distinta, a difusão de conceitos, práticas e tecnologias de base microeletrônica e os conceitos associados à produção enxuta, ele é fundamental para cobrir lacunas existentes e pavimentar o terreno.
Existem muitas dificuldades para o desenvolvimento conceitual e a operacionalização de uma agenda desta natureza. Muitas dessas dificuldades são legítimas, outras são apenas compreensíveis. Afinal, depois de tantos anos exercendo um papel é difícil modificar o enquadramento mental dos indivíduos e das organizações para novos papéis, ainda mais quando eles tiveram, por tanto tempo, negada a sua relevância ou a sua exequibilidade (ou ambas).
6. Proposições
Neste item são apresentadas algumas das proposições, precedidas de uma caracterização dos grandes desafios.
É possível identificar em diversos elementos da realidade evidências a demonstrarem que a indústria brasileira se encontra ainda às voltas com desafios que dizem respeito à segunda revolução industrial. A situação atual de vários dos setores de base, criados ou alçados a novos patamares de desempenho durante o II PND (1975-79), é de recuo ou crise aberta. A grande siderurgia, o alumínio, a petroquímica, os grandes projetos de energia, que criaram produtos competitivos em escala internacional à época do Governo Geisel e (nos anos subsequentes em alguns casos), encontram-se hoje em estado de grandes dificuldades (plantas paralisadas, envelhecidas). Em muitos setores industriais, mas também nos serviços e no setor primário, ilhas de excelência convivem com um tecido empresarial envelhecido e incapaz de acumular os recursos e as competências para realizar os desafios que o ambiente internacional aponta como vitais para uma existência em bases sustentáveis, mesmo que seja abandonado o objetivo - a todos os títulos legítimo - de equiparação com os padrões de produção e de consumo vigentes nos países que o mundo inveja.
A consequência em termos de política econômica e industrial não é, como pretendem algumas correntes de economistas, a necessidade de eliminação das franjas (mais estreitas ou mais largas) de empresas menos ou muito menos eficientes do que a “fronteira” tecnológica e produtiva, mas a imperiosa missão de alçar essas capacidades empresariais a uma condição superior, em que sejam ao mesmo tempo aproveitadas as competências existentes e revigoradas com novos estímulos e aportes. A missão da produtividade deveria ser a missão principal do BNDES na promoção do desenvolvimento brasileiro. Produtividade por promoção, não por eliminação. Essa verdadeira “solução final”, que vem sendo defendida por alguns acadêmicos de instituições que não conhecem intimamente a estrutura industrial brasileira, eliminaria estruturas empresariais, recursos humanos, competências que foram desenvolvidas ao longo de muitos anos e que podem ser alçadas a uma posição superior se políticas adequadas forem implantadas. Produtividade, em qualquer caso, depende fortemente de capacitação humana e de ambientes produtivos, equipamentos e sistemas de produção adequados, mercados com dinamismo e potencial de crescimento, apoios públicos e privados convergentes para esse grande propósito – enfim, muito mais do que simplesmente escolaridade.
Para fazê-lo, existem dois grupos de atores-alvo, cada qual demandante de instrumentos apropriados. O primeiro é a massa de pequenas, médias e grandes empresas que possuem uma existência econômica envolta em um dinamismo que apesar de todos os esforços não viabiliza uma trajetória de crescimento, de modernização ou de expansão internacional. O segundo é formado pelas grandes empresas que possuem estruturas consolidadas, com diferentes funções empresariais desenvolvidas e consolidadas, mas apresentam uma ausência de competências tecnológicas singulares, sendo portanto incapazes de criarem diferenciação produtiva e competitiva.
Para as primeiras empresas é necessário criar instrumentos que sejam capazes de atualização industrial e produtiva. Os instrumentos disponíveis propiciam recursos financeiros sobretudo para aquisições de máquinas e equipamentos, mas, quando existem, são frágeis em assegurar a essas empresas o acesso a serviços tecnológicos e serviços empresariais avançados. Os instrumentos criados ao longo da industrialização brasileira destinavam-se a promover o investimento em aumentos de capacidade de produção, um fenômeno que tem sido raro na maioria dos segmentos industriais. Para que as empresas possam realizar investimentos significativos em aumentos de capacidade produtiva, precisam, antes, desenvolver os seus padrões de produção, os seus modelos comerciais, as suas modalidades de inserção competitiva nos mercados interno e externo em outras bases, que assegurem novos patamares de rentabilidade (na produção) e que estimulem, em decorrência, novos investimentos.
Este revigoramento da grande massa de empresas que compõem a vasta demografia industrial brasileira não é evidentemente uma exclusiva responsabilidade de uma só instituição de política pública, mas também não pode ser realizada com o alheamento de uma instituição do porte, da competência e da responsabilidade do BNDES. Sempre que instado a ações de base ampla, o BNDES argui que é um banco de atacado e não possui capilaridade de atuação mais voltada para os pequenos, pelo menos não de forma direta, mesmo sabendo o significado dessa renúncia em termos de restrições no acesso ao seu crédito e nas condições draconianas que são impostas às empresas que mais precisam de seus recursos.
Essa resposta pronta, repetida ad nauseum, não faz jus às qualidades e às competências de um corpo funcional de quase três milhares de pessoas, com elevada formação acadêmica e profissional, que possui ademais fortes incentivos à realização de estágios de estudos mais avançados (mestrados, doutorados) e de especialização instrumental (MBAs e cursos de curta duração), e uma carreira invejada nos setores público e privado, além de benefícios complementares e planos de aposentadoria inexistentes alhures. Dessa instituição especialíssima a sociedade brasileira espera um desempenho correspondente em termos de contribuição ao desenvolvimento brasileiro. E isso pede mais do que respostas prontas. Exige compromisso com a inteligência e a inovação, inclusive a sua própria inovação, das suas práticas, dos seus instrumentos, das metas e das ambições em termos de missão, visão e valores.
A resposta da instituição, se ela deseja superar o papel do “faz-tudo” afeito às demandas circunstanciais e aos benefícios das retribuições, não pode ser a resposta pronta, imobilista e conservadora que se traduz em um lacônico “foi sempre assim, assim será sempre”. A recusa liminar à reflexão sobre novos modos de consecução da missão fundadora é o começo do fim, a estrada confortável que conduz - mais tarde ou mais cedo - à decadência.
O segundo grupo de empresas forma um universo relativamente familiar para o BNDES, mas a sua atuação não tem colaborado de modo enérgico para promover o salto de competitividade para alçar essas empresas a uma inserção competitiva mais vigorosa, com projeção internacional relevante. Essas empresas possuem dimensões e competências que poderiam formar a base para a criação de singularidades competitivas, aliando as competências formadas e adquiridas em suas trajetórias anteriores a novas qualidades e habilidades desenvolvidas e adquiridas com o apoio de programas e instrumentos desenhados para essa finalidade.
Um eixo fundamental dessa ação deveria ser a multiplicação de vínculos promotores de diferenciação competitiva, seja por tecnologia propriamente dita, seja por ativos para-tecnológicos (certificações, selos de eficiência energética e desempenho ambiental, por exemplo). A miríade de programas e instrumentos existentes no Brasil e em suas múltiplas instituições já representa um cipoal de dificuldades para a sua compreensão, mais ainda para o seu uso adequado pelas empresas. O acesso das empresas a esses instrumentos poderia ser alavancado por um programa de aquisição de competências tecnológicas, seja no Brasil ou no exterior, por parte de empresas brasileiras. Esse programa financiaria o conjunto da estratégia tecnológica da empresa, incluindo a montagem de equipes de P&D, de laboratórios, de projetos de colaboração com ICTs no Brasil e no exterior, a aquisição de empresas de base tecnológica (no Brasil e no exterior), incentivando - com carências, prazos e taxas adequados - o salto tecnológico.
No item 8, a seguir, os programas derivados das proposições anunciadas são apresentados em linhas gerais, mas concretas.
7. Programas
Este item apresenta um delineamento básico de programas formulados a partir da análise e da argumentação precedente. Eles não esgotam os possíveis caminhos, mas servem como uma ilustração das possibilidades e um estímulo para a reflexão. Com o incentivo a pensar o seu papel para os alicerces do século 21 brasileiro, a inteligência e o espírito público de tantos bons profissionais do banco e de outras instituições públicas e privadas poderão produzir resultados muito superiores. É, portanto, como contribuição inicial que este elenco de proposições é apresentado.
A. Finame - reformulação e ampliação de escopo
O financiamento à aquisição de bens de capital, equipamentos e veículos de transporte é uma das atividades mais tradicionais da atuação do BNDES. É por meio dela que o banco estimula a venda e a produção desses produtos em território nacional, constituindo uma vantagem relevante para os seus fabricantes (com relação aos congêneres importados). Há muito o que fazer para integrar esse importante instrumento aos novos tempos. O cadastro dos equipamentos “finamizados” é velho e estático, incapaz de orientar a evolução da produção e das tecnologias, restringindo-se - praticamente - a uma resposta binária (alcança ou não alcança o índice de nacionalização).
Uma vez “finamizado”, o equipamento aí permanece, fazendo jus aos benefícios do apoio financeiro concedido a todo e qualquer equipamento, mais antigo (e arcaico) ou mais moderno (e produtivo), consuma muita energia ou promova economias substanciais, seja vital para a produtividade e a competitividade das pequenas empresas ou cumpra funções auxiliares menores.
É no mínimo muito perturbador que a instituição cuja missão é a promoção do desenvolvimento brasileiro traduza tão precariamente as suas preocupações com o desenvolvimento tecnológico e os incentivos à sua promoção naquele que é o mais antigo e o mais capilarizado dos seus programas. Conteúdo nacional deve ser uma preocupação, mas ela não pode ser a única preocupação e a promoção do um produto nacional não pode e não deve fazer-se em detrimento da produtividade e da competitividade.
Essas limitações podem ser superadas de modo gradual, com uma série de medidas que o banco e a rede de empresas e associações empresariais poderiam construir gradualmente. A título de sugestão, três medidas são aqui apresentadas.
1. O BNDES deveria deixar de ser o banco das montadoras de caminhões, ônibus e assemelhados, que concentram elevadas proporções dos financiamentos, mesmo em períodos normais (e elevadíssimas em períodos como o do programa dito de “sustentação do investimento”). O banco pode financiar programas de modernização da produção, seja para os produtores (“montadoras” e suas cadeias de fornecedores) ou para os seus clientes, mas associando as vantagens dos seus recursos a esforços vigorosos e consistentes para o aumento da competitividade, no mercado interno e nos mercados externos.
2. Reformulação do cadastro da FINAME para permitir a identificação de equipamentos e soluções tecnológicas que sejam capazes de promover a progressiva elevação dos patamares de produtividade da economia brasileira, sobretudo dos setores cuja competitividade está erodida pela evolução dos competidores internacionais. Essa reformulação deveria privilegiar os instrumentos de difusão de produtividade e oferecer, às empresas produtoras e usuárias (dos equipamentos), condições para acelerarem a adoção e a migração para novas gerações. Neste eixo orientador, equipamentos destinados a promover a produtividade, a competitividade e a inserção internacional das empresas médias e pequenas deveriam receber forte apoio.
3. A FINAME deveria incorporar ao seu acervo de itens financiáveis serviços de todas as naturezas, com ênfase em serviços tecnológicos, design, consultorias de engenharia, de exportação, de capacitação em manufatura enxuta e em manufatura avançada, para listar apenas os mais evidentes. Esta incorporação deveria ser preparada por uma consulta pública para identificar o leque de serviços e ofertantes potenciais, sejam eles públicos (SENAI, ICTs) ou privados (empresas e profissionais), bem como as modalidades de oferecimento. Empresas aderentes a programas de capacitação (tecnológica e outros, tal como definidos em “2”) poderiam fazer jus a vantagens dentro do programa FINAME. Sempre que uma empresa tiver contratado serviços tecnológicos ou promotores de sua competitividade, ela deveria receber um tratamento mais favorecido, da mesma forma que uma empresa contratante de financiamento para aquisição de máquinas ou equipamentos deveria contar com o benefício de financiamentos favorecidos na contratação de serviços tecnológicos associados.
É evidente que estes três elementos são apenas um primeiro esboço de algo que poderia e deveria ser desenvolvido pela inteligência do banco, em diálogo harmonioso e construtivo com as empresas, as associações empresariais e as demais instituições envolvidas. Mas o direcionamento está claramente apontado: a FINAME é um instrumento importante demais para ser tão pobremente utilizado como instrumento de política industrial, reduzido a um conteúdo local (e mesmo nesse papel, utilizado precariamente, como se sabe).
B. Finame Produtividade
Um programa FINAME especial para aquisição fortemente subsidiada de produtos e serviços promotores de produtividade empresarial e das cadeias produtivas, concentradas em 3 eixos: a) cadeias com potencial de exportação (FINAME - EXPORTAÇÃO); b) setores produtores de "bens salário" (para ajudar no combate à inflação) (FINAME - CONSUMO); c) projetos de infraestrutura (para remover gargalos com economia de investimento) (FINAME - INFRAESTRUTURA). Esse programa poderia ter uma vertente Indústria 4.0, mas começa muito antes (produção enxuta, difusão de formas básicas de automação - coisas da antiga microeletrônica).
Existem poucas razões que justifiquem, em uma economia crescentemente composta por serviços, que os serviços avançados - sobretudo quando são promotores de produtividade - sejam excluídos do financiamento e do fomento. É claro que existem serviços e serviços, mas os serviços avançados, promotores de produtividade e de competitividade, são alavancas do desenvolvimento econômico e do fortalecimento da base industrial.
• FINAME - PRODUTIVIDADE EXPORTAÇÃO
A projeção internacional da economia brasileira é uma de suas principais fragilidades históricas, reforçada por mais de 20 anos de atraso industrial (desde o encerramento dos projetos do II PND). A superação dessa deficiência é merecedora de um esforço de política pública.
Como certificar equipamentos médicos com selos dos principais mercados desenvolvidos? Como elevar a eficiência energética e assegurar os selos dos países importadores? Como alcançar as normas técnicas de tantos diferentes países?
É para dar respostas a estes desafios que a linha Produtividade-Exportação deve ser estruturada, com prazo mínimo de funcionamento de 10 anos.
• FINAME - PRODUTIVIDADE CONSUMO
A inflação explosiva com que o Brasil conviveu até 1994 foi debelada pelo Plano Real, mas a inflação brasileira está longe de estar inteiramente controlada. Os níveis inflacionários do Brasil ainda são elevados para os padrões internacionais, com efeitos não desprezíveis em várias dimensões da vida econômica e financeira.
O programa proposto neste subitem destina-se a promover o desenvolvimento de ações de produtividade direcionadas ao aumento da produtividade de bens e serviços componentes da cesta de consumo dos trabalhadores (“bens salário”) e, por essa via, contribuir para o controle da inflação pelo lado da oferta (e não pela redução da demanda). Produtos de consumo doméstico (alimentos), serviços urbanos (transporte), habitação (produtos destinados à construção civil) são exemplos de atividades ou setores que deveriam receber apoios dirigidos ao aumento de sua produtividade e, por consequência, à redução de seus preços.
• FINAME - PRODUTIVIDADE INFRAESTRUTURA
Projetos de infraestrutura representam investimentos de grandes proporções. Seus custos são elevados e as suas vidas úteis são longas. Por consequência, os seus prazos de amortização são dilatados, o que tem consequências muito sérias em um país onde historicamente as taxas de juros são elevadas. Essa é mais uma razão para que os investimentos em infraestrutura, ou melhor, a solução dos graves problemas de infraestrutura existentes no Brasil se faça com projetos de excepcional qualidade, abordagens inovadoras, tecnologias adequadas à realidade física e aos elementos econômicos.
C. Fundo de investimento em empresas de base tecnológica e inovadoras
O Brasil possui um conjunto amplo e diversificado de instrumentos para a promoção do desenvolvimento tecnológico. Esses instrumentos possuem importantes limitações, sobre as quais não cabe aqui realizar um detalhamento. Fiquemos nos resultados: o Brasil, com todos os investimentos realizados, não foi ainda capaz de transformar a base de empreendedores tecnológicos e inovadores em uma produção regular de empresas exitosas, seja no mercado brasileiro, seja, menos ainda, no ambiente internacional.
Programas como o PIPE, da FAPESP, ou o Criatec, do BNDES, que são possivelmente os mais reconhecidos, possuem vigor e coerência insuficientes para modificarem essa realidade. Nenhum dos dois programas foi capaz de produzir ou colaborar decisivamente para o sucesso internacional de qualquer empresa. No caso do PIPE, as limitações decorrem do próprio programa e da instituição que o sedia, que impede investimentos em quaisquer atividades que não sejam a pesquisa. No caso do Criatec, que realiza investimentos em empresas que já superaram o estágio inicial do projeto de P&D e possuem produção e vendas, a terceirização da operação para agentes privados representa uma evidente limitação, ao menos quando se considera o papel de promoção do desenvolvimento, e não meramente a função de investidor de risco.
Uma forma de superar as limitações existentes no mundo das empresas de base tecnológica e sobretudo a insuficiência de seus efeitos promotores do desenvolvimento do sistema industrial e da economia, é por meio da aceleração e da multiplicação dos investimentos, em uma estratégia de criação de novas fontes de produtividade, de progresso tecnológico e de motores de concorrência. Uma das mais severas restrições às empresas no Brasil, e sobretudo às empresas de crescimento rápido (como costumam ser ou como deveriam ser as empresas “de tecnologia”), é o acesso ao crédito. É bem verdade que o ambiente para empresas pequenas e formalizadas no Brasil é extremamente inóspito, mas uma vez superados os cipoais que dificultam os seus estágios iniciais (formação e início de atividades), o acesso ao crédito e as próprias condições desse crédito passam a representar uma barreira de difícil superação. E apesar de todos os discursos muito corretos em favor da pequena empresa e do empreendedorismo, essas empresas encontram muito poucas facilidades nas realidades das suas trajetórias.
Um programa nacional de desenvolvimento da base industrial, com vistas ao seu rejuvenescimento e à formação de novas fontes de dinamismo tecnológico para incorporação ao sistema industrial e à economia, deveria combinar as necessidades de retorno com o objetivo maior de uma forma mais ousada do que prudente. O objeto aqui não é o apoio às startups ou às empresas emergentes de base tecnológica de uma maneira geral, mas a um recorte preciso e relativamente bem delimitado desse universo: empresas detentoras de tecnologias que possam servir para a elevação substancial da produtividade do sistema econômico. Neste campo, a responsabilidade de correr riscos maiores - mas riscos responsáveis, com avaliação criteriosa - é exigida para que sejam criadas as condições de superação de uma ameaça real de dimensões muito superiores: o progressivo sucateamento do sistema industrial brasileiro e a eliminação de qualquer possibilidade de desenvolvimento. Dito de outro modo, o retorno potencial dos investimentos a serem feitos, incorrendo em algum risco, não deve ser medido exclusivamente pelo retorno financeiro para os investidores (o Banco ou os seus agentes operacionais), mas deve incluir também o potencial de retorno para a sociedade, para a economia brasileira e, indiretamente, para a carteira de empresas financiadas pelo BNDES e que serão beneficiadas pelo revigoramento da base tecnológica produzido por essas empresas.
A principal dificuldade declarada pelo Banco quando se defronta a este desafio diz respeito à sua limitada capacidade operacional para lidar com muitas empresas, de dimensões reduzidas. Nasceu no próprio BNDES, em ricos debates entre seus profissionais, a ideia de enfrentar com criatividade estas dificuldades: toda e qualquer empresa pequena, de base tecnológica, com um plano de desenvolvimento tecnológico e de negócios promissor, que pudesse enquadrar-se nas prioridades e nas condições estabelecidas faria jus a um aporte de capital por parte do BNDES por meio de um “bônus de subscrição” eventualmente conversível no caso de a empresa prosperar e demandar novos aportes. A cobrança única do BNDES seria a execução do plano de investimentos submetido e aprovado. O programa poderia ser iniciado com um piloto temático (por exemplo, soluções para a elevação da produtividade na agricultura) ou setorial (por exemplo, equipamentos para a elevação da produtividade em setores pulverizados (alimentos, calçados, cerâmica, madeira, metalurgia, plásticos), e do aprendizado produzido por este piloto de dimensões modestas o Banco e seus eventuais parceiros passariam de modo gradual para escalas superiores, com recortes mais abrangentes.
Um dos propósitos desse programa é a renovação da base empresarial brasileira, com empresas envolvidas desde o seu nascimento com novas tecnologias e com a condução de atividades de pesquisa e desenvolvimento, duas dimensões que representam uma reconhecida deficiência da indústria brasileira (e do conjunto da economia). Essas empresas, por mais promissoras que possam parecer a um observador externo, ainda mais quando admira novas tecnologias e inovações, são de extrema fragilidade: enquanto a maioria das empresas brasileiras, mesmo grandes empresas, possui robustez em muitas dimensões empresariais e uma frequente fragilidade tecnológica, as EBTs possuem algum vigor tecnológico e grandes deficiências em todas ou quase todas a demais dimensões empresariais. O sistema brasileiro de fomento à tecnologia, com seus mecanismos de apoio a empresas emergentes, financia quase exclusivamente o desenvolvimento tecnológico, raramente provendo recursos para o desenvolvimento e o acúmulo das demais competências e funções empresariais em bases regulares. E como o acesso ao crédito em geral é restrito e caro, elas raramente possuem recursos para financiarem essas outras dimensões do seu desenvolvimento. O que se produz, em muitos casos, é uma ilha tecnológica, sem ligações com o mercado e com os demais elementos do ecossistema. Por isso mesmo, essa insularidade com relação ao mundo da produção e dos mercados termina por produzir, mais cedo ou mais tarde, um atraso também nas dimensões tecnológicas, pois sem vínculos com usuários e com a renovação de demandas que eles fazem, o dinamismo tecnológico perde-se, ensimesmado nas rotinas da empresa.
O novo fundo de investimento em empresas de base tecnológica deveria prover recursos para que os seus projetos de desenvolvimento tecnológico nasçam vinculados a demandas reais ou potenciais com elevado grau de vinculação à realidade - à do presente e à das tendências emergentes, uma competência que se encontra muito distante das instituições brasileiras, mesmo aquelas que supostamente se dedicariam a essa missão. Para isso, devem coexistir nessas empresas profissionais “de mercado” (com experiências relevantes em produção e comercialização) ao lado dos profissionais com capacitações científicas e tecnológicas para a execução das atividades de P&D. Um programa de desenvolvimento dessas empresas deveria incluir itens como a participação em feiras e eventos relacionados com os mercados de atuação potencial, viagens internacionais para prospecção de clientes potenciais e para a identificação tempestiva de produtos e soluções concorrentes. Evidentemente, uma parceria do BNDES com a APEX seria valiosa para encurtar o aprendizado e robustecer as iniciativas existentes.
O programa proposto poderia estar dividido em duas etapas - uma para um período inicial de 12 a 24 meses, envolvendo recursos de até R$ 1 milhão, destinado a lotes pioneiros e aos escalonamentos iniciais de tecnologias já desenvolvidas, exigindo, como condição de aprovação, a existência de um plano de negócios com um grau elevado de ousadia. Afinal, a aceitação de algum risco, superior aos dos padrões habituais, só faz sentido se tiver como contrapartida negócios mais ousados do que a norma. A aplicação dos recursos consoante o plano aprovado seria condição suficiente para a aprovação do relatório de execução. O sucesso eventual da empresa e o interesse do BNDES em participar da segunda etapa permitiria a conversão, no futuro, do bônus de subscrição em uma fatia do capital da empresa (em torno de 25%). A segunda etapa envolveria um número menor de empresas, com aportes de R$ 1 a 2 milhões e prazos de execução dos projetos de 24 a 36 meses, envolvendo preferencialmente a presença de outros investidores. Em casos menos frequentes, em que essas empresas apresentassem potencial para crescimento acelerado imediatamente, é possível que a necessidade de recursos adicionais na fase dois se faça sentir, mas a proporção desses casos deve ser - infelizmente - reduzida.
Uma projeção para um programa de 10 anos, iniciando com apoio “fase 1” a 100 empresas e culminando com apoio anual a 1000 empresas (no décimo ano, em progressão aritmética), representaria um investimento total de até R$ 5,5 bilhões (em 11 anos). Supondo que a fase 2 do programa aprovasse 20% das empresas (eliminando 80%), ela envolveria um investimento de R$ 3,3 bilhões (em 12 anos, do terceiro ao décimo-quarto). Ao longo da sua vida o programa terá financiado 5500 empresas na primeira etapa e 1100 na segunda etapa. Somando as duas fases, o programa montaria a um investimento de R$ 8,8 bilhões, correspondentes a uma média anual de R$ 628 milhões (em 14 anos de execução). É possível que o montante da segunda etapa, possa crescer, por boas razões: sempre que uma empresa de base tecnológica é muito bem-sucedida, as suas demandas de recursos para financiamento do crescimento elevam-se de modo muito significativo.
Os retornos financeiros advindos da prosperidade das empresas apoiadas diretamente poderão representar um investimento rentável para o BNDES, mas o retorno principal buscado pelo programa é o rejuvenescimento da indústria e da economia por dois vetores complementares. O primeiro, das próprias empresas apoiadas, formadoras de novas bases tecnológicas, produtivas e comerciais, com novos modelos de negócios, capazes de revigorar os padrões de competição; e o segundo, das empresas modernizadas por ação dos produtos e serviços criados pelas empresas de base tecnológica. Este segundo efeito é enriquecedor da própria carteira de investimentos e de financiamentos do BNDES, produzindo dois efeitos complementares: redução de riscos e elevação da demanda.
D. Programa de apoio à criação de produtos e serviços brasileiros de classe mundial: cem produtos em dez anos
A timidez da projeção internacional do Brasil é evidente: existem muito poucos produtos brasileiros com identidade e marca que sejam comercializados nos principais mercados. Superar essa atrofia do sistema econômico brasileiro é imprescindível, se queremos atuar de modo aberto e competitivo, com os benefícios decorrentes dessa abertura para o mundo, o que quer dizer, para as suas tendências - de consumo, de produção, de tecnologia etc - e para os novos horizontes que vão sendo definidos nesse relacionamento complexo entre o mundo da produção, do consumo, nas instituições e das políticas.
O Programa de apoio à criação de produtos e serviços brasileiros de classe mundial destina-se a projetar produtos e serviços brasileiros promissores em trajetórias de conquista de fatias relevantes nos mercados mundiais, reconhecendo que a única forma de amortizar os investimentos crescentes (e por vezes gigantescos) em P&D e em P&P é por meio de um denominador (dimensão de mercado) que vai muito além do que um país representa, individualmente, mesmo que tenha as tão propaladas “dimensões continentais” do Brasil (quase 3% da população mundial; o “resto” é mais de 97%). A criação de marcas brasileiras associadas a produtos “de tecnologia”, ou seja, que são o resultado de desenvolvimentos tecnológicos e demandam esforços tecnológicos regulares para sustentarem as suas posições nos mercados é uma condição imprescindível para que as empresas e o sistema industrial brasileiro se mantenham atualizados em âmbito global.
É possível colaborar de modo ativo para que empresas brasileiras e empresas brasileiras de origem externa sejam capazes de construir produtos de identidade e marca para os principais mercados? A política industrial brasileira e as políticas brasileiras de uma maneira geral nunca se colocaram essa ambição, que já cumpriu papéis relevantes na política industrial de outros países, mas é preciso superar definitivamente uma etapa histórica - por importante que ela tenha sido - em que o papel da política industrial e das políticas de fomento consistia simplesmente na promoção da produção nacional.
Entre o apoio a empresas existentes e a criação de novas empresas existe um papel intermediário de promoção de produtos de empresas existentes com potencial para uma trajetória de expansão internacional. Preferencialmente, essa expansão internacional deverá estar associada à valorização de atributos contemporâneos e emergentes, criadores de vínculos com novos mercados e com os mercados em expansão baseada em novos valores. É o caso de produtos associados à biodiversidade, à sustentabilidade, com desempenho energético superior.
E. Programa de apoio à internacionalização das empresas, com propósitos tecnológicos para alcançar novas posições na cadeia de valor
A internacionalização da economia brasileira deu-se de forma diferente daquela que ocorreu em outros países. Por um lado, desde muito cedo o tecido industrial contou com uma forte presença de grandes empresas de origem externa; e, por outro lado, a forma quase exclusiva de presença de empresas brasileiras em outros países deu-se por meio de exportações. Enquanto o dinamismo do mercado interno era elevado, essa opção, se assim se pode considerá-la, era explicável, embora não ocorresse sem custos (como a falta de contato com tendências emergentes e a assimilação de elementos de outros ambientes competitivos). Mas desde os anos 1980, quando entrou em pane a “máquina de crescimento” brasileira, aos ônus pouco reconhecidos do paroquialismo somam-se as desvantagens da falta de dinamismo em termos do crescimento da produção. A internacionalização das empresas brasileiras, ativamente, em direção a novos mercados, é uma necessidade de primeira importância para que o sistema industrial brasileiro possa superar as suas deficiências e cobrir algumas de suas insuficiências. O contato com o mundo e a exposição a novas fontes de concorrência e a novas oportunidades de aquisição de competências e recursos são uma fonte importante de dinamismo e vitalidade para as empresas, como são aliás para as organizações e os indivíduos de uma maneira geral.
Um programa de apoio à internacionalização seletiva de empresas brasileiras, para aquisição de ativos que permitam ter acesso a novas plataformas tecnológicas e novas bases de exportação, pode ser construído com o apoio do Banco? É verdade que a ideia pode desagradar a muitas correntes, mas os seus críticos precisam refletir sobre o atraso da indústria brasileira e a necessidade de encontrar mecanismos para a sua urgente atualização. A internacionalização ativa na indústria brasileira pode representar uma fonte importante de revigoramento da base empresarial brasileira e um revigoramento do sistema industrial. Os elos externos, de base tecnológica, poderiam servir de periscópios para captura de informações que se transformem, com agilidade, em oportunidades industriais e comerciais, evitando também as surpresas das barreiras que vão surgindo nos diferentes mercados.
O programa deveria limitar os apoios à aquisição de ativos de natureza tecnológica e assemelhados (design, por exemplo; ou marcas de reputação; ou ainda certificações que permitam ampliar os horizontes de mercado). Em nenhum caso eles devem confundir-se com meras aquisições de empresas e a sua natureza é bem precisa: aquisição de ativos tecnológicos que permitam modernizar, robustecer e dinamizar a base empresarial brasileira e o seu portfólio de tecnologias e produtos. Ao fazer aquisições desta natureza, o programa está utilizando implicitamente a ideia de alavancagem, só que não se trata de uma alavancagem financeira, e sim uma alavancagem tecnológica com desdobramentos industriais, comerciais e financeiros.
F. Financiamento de entrepostos comerciais e incubadoras tecnológicas para pequenas e médias empresas brasileiras no exterior (Vale do Silício, China, Alemanha)
A ida ao exterior de empresas brasileiras foi tardia e segue limitada, e as razões para isso escapam ao escopo deste documento. Suficiente é reconhecer o fato e a necessidade urgente de superar as limitações que dele decorrem.
O programa para o Financiamento de entrepostos comerciais e incubadoras tecnológicas para pequenas e médias empresas brasileiras no exterior deveria estar voltado para a constituição de bases de incubação de empresas brasileiras com potencial tecnológico em espaços econômicos de elevado dinamismo tecnológico, onde as suas chances de transformarem as suas propostas em produtos ou serviços de classe mundial existem. Por difícil que seja reconhecer, é muito improvável que qualquer empresa brasileira de base tecnológica encontre, no espaço brasileiro, as condições para a conquista de posições competitivas singulares na economia mundial. A razão principal é que o Brasil tem sido um mercado relevante, às vezes por suas dimensões absolutas, outras vezes por surtos de dinamismo intensos (e cursos), mas essa consideração pelo lado da demanda contrasta com a letargia e o acanhamento das estruturas de oferta. Isso é frequentemente expresso em conversas no mundo empresarial com uma naturalidade que deveria assustar todos os que se preocupam com o futuro do Brasil. Afinal, um país, por rico que seja considerado em termos de sua base de recursos naturais, só pode ter uma demanda substancial se tiver também uma capacidade de produção de proporções correspondentes. A menos, claro, que se considere que a venda do patrimônio existente pode sustentar a demanda por importações, uma equação que conhecemos em dois surtos de crescimento com valorização cambial. Mas uma vez que esse estoque (como qualquer estoque) é finito, a equação permanece válida.
A razão principal para que seja imperioso internacionalizar as empresas brasileiras de base tecnológica em um estágio precoce de seu desenvolvimento decorre do atraso gigantesco e crescente do sistema industrial brasileiro com relação às fronteiras setoriais das principais regiões do mundo. Esse atraso, nem sempre reconhecido e por vezes creditado ao ambiente externo às empresas, é o resultado inevitável de muitos anos – 30, 35, 40 anos – de investimentos pífios e não regulares ou sistêmicos. Ilhas de excelência são isso mesmo – ilhas; e ilhas não produzem um sistema integrado, que ofereça oportunidades para o desenvolvimento de novas soluções em base ampla e de modo regular. Daí que a internacionalização precoce seja vital.
Para que o banco possa desempenhar essa função de alavancar a expansão global de empresas brasileiras de base tecnológica a posições de classe mundial, seria necessário que o BNDES implantasse núcleos de apoio em cada um dos três principais polos da economia mundial - América do Norte (Califórnia), China (Xangai) e Europa (Holanda ou Alemanha).
G. Programa de internacionalização para aquisição de mercados
A promoção da internacionalização de empresas brasileiras pode ser considerada uma função da política pública? Por mais difícil que seja, a resposta a esta questão tem que ser separada das situações recentes que ensejaram debates públicos muito acalorados e pouco esclarecedores. A economia brasileira possui uma ínfima projeção internacional e são raras as empresas com presença abrangente e qualificada em mercados externos. Isso vale para empresas do setor primário, do setor secundário e dos serviços, e envolve também empresas com posições dominantes e aparentemente competitivas no mercado brasileiro.
Os exemplos desta atrofia empresarial são abundantes. Dominante no mercado mundial de café desde que esse mercado existe, o Brasil não possui nenhuma marca de café. A grande empresa brasileira de mineração é uma exceção, mas não possui seguidores na sua área de atuação. Contam-se em poucas dezenas as empresas industriais brasileiras com presença relevante em outras bases industriais com atividades para além da exportação. O mesmo vale para os serviços e as experiências de internacionalização dos campeões nacionais nessas áreas produziu resultados pífios (como no setor bancário) ou fracassos iniciais (como na informática).
Existem duas áreas em que a aquisição de novos mercados no exterior pode ter resultados econômicos e sociais importantes, tanto em termos privados quanto em termos sociais e públicos. A primeira envolve empresas de base tecnológica ou empresas com ativos tecnológicos importantes, que poderiam alargar a sua base comercial se adquirissem ativos de produção e de comercialização de empresas em declínio por razões ligadas ao envelhecimento de suas linhas de produtos. Precisamos reconhecer que as tecnologias são, cada vez mais, de alcance mundial; e nenhuma empresa confinada a um espaço nacional será capaz de acompanhar os desenvolvimentos tecnológicos que se originam em uma multiplicidade de pólos econômicos. Adicionalmente, os esforços tecnológicos das empresas, mesmo quando são especializadas em nichos, precisam ser diluídos em volumes de produção e de vendas muito maiores do que aqueles que o espaço brasileiro (ou mesmo o espaço sulamericano) oferece. Finalmente, a base econômica brasileira, tanto para a produção quanto para o consumo, é insuficientemente desenvolvida para oferecer às empresas os estímulos que lhes permitem manter-se atualizadas e competitivas em termos tecnológicos.
No caso das empresas maiores, com estratégias produtivas e comerciais consolidadas (mas frequentemente sem correspondente solidez em suas dimensões tecnológicas), o caminho da internacionalização deveria priorizar a aquisição de segmentos de mercado complementares àqueles em que atuam tradicionalmente.
H. Economia de Baixo Carbono (EBC)
Os caminhos para o enfrentamento dos desafios do aquecimento global e dos eventos climáticos extremos são, até aqui, imponderáveis. Mas nenhuma análise mais séria deveria ignorar que o leque amplo de possíveis medidas poderá incluir severas restrições ao comércio dos produtos originários de países com pegadas de carbono elevadas. Por isso mesmo, um país como o Brasil, excêntrico em termos geográficos e fortemente dependente em seus fluxos de exportação de produtos com relações preço-peso muito reduzidas, poderá sofrer grandes restrições em seus fluxos de exportação (sem, contudo, poder impor medidas simétricas aos seus fluxos de importação). Para ficar em apenas dois exemplos: as exportações de proteína animal e de minério de ferro poderão ser fortemente reprimidas em um cenário de redução impositiva de emissões.
A transição para uma economia de baixo carbono e, sobretudo, para a redução substancial das pegadas de carbono dos produtos exportados deveria ser uma das prioridades do Brasil e do BNDES. Por isso, deveria o BNDES financiar um programa forte para a Economia de Baixo Carbono, a Bioeconomia e a criação das condições para contornarmos as barreiras comerciais que virão pelo lado do clima e do carbono.
I. Desenvolvimento de tecnologias para agricultura familiar e os serviços ambientais
O vasto território agrícola brasileiro é ocupado por um pequeno punhado de culturas: soja, milho, algodão, arroz e cana-de-açúcar respondem por 90% da área. São todas atividades de mecanização intensa, poupadoras de mão-de-obra, utilizadoras de equipamentos de alto rendimento (e custo elevado). Um grande número de culturas ocupa áreas muito menores e as suas tecnologias são intensivas em trabalho - frequentemente penoso, associado a doenças sócio-profissionais. Esse trabalho penoso e as dificuldades (ou a ausência de amenidades) da vida rural são fatores que contribuem para o esvaziamento do meio rural, com sérias implicações que em outros países já se mostraram fonte de problemas.
Para conciliar agricultura familiar com serviços ambientais e evitar a desertificação rural é necessário desenvolver novas tecnologias agrícolas por meio da translação das pesquisas científicas e tecnológicas de natureza mais acadêmica para tecnologias, técnicas e equipamentos e artefatos que permitam elevar de modo significativo a produtividade do trabalho e reduzir o caráter penoso das lides agrícolas e rurais de uma maneira geral.
Os sinais de mercado para estas ações são fracos e claramente insuficientes, conduzindo a um crescente estreitamento das opções agrícolas de grande número de propriedades e produtores.
J. Transição energética
O Brasil orgulha-se, a justo título, de sua matriz energética em que preponderam fontes renováveis. Essa marca foi construída ao longo de mais de meio século, com programas de eletricidade de origem hídrica e de combustíveis líquidos de origem vegetal. Em vários aspectos, e por razões muito mais econômicas do que ambientais, o Brasil construiu uma matriz energética bastante limpa antes que o mundo colocasse esse tema nas prioridades de muitos países e na agenda pública global.
Curiosamente, é quando o mundo caminha - com hesitações, mas de forma cada vez mais nítida - para a construção de matrizes mais renováveis que o Brasil parece retroceder para uma matriz mais fóssil. Em que pesem as iniciativas em prol da energia eólica e solar, o Brasil está muito distante de uma iniciativa vigorosa e consistente em direção às novas tecnologias que estão alimentando o salto das indústrias produtoras de equipamentos e do uso de energias renováveis tanto no meio industrial quanto nas famílias. Os esforços recentes que o BNDES realizou em favor da energia eólica em articulação coordenada com os leilões de energia produziram resultados relevantes, mas infelizmente foram travados. Quanto aos biocombustíveis avançados, uma solução que já esteve apoiada por doses de otimismo mais elevadas, o cenário mudou completamente e a maioria das iniciativas relevantes foi reduzida a experimentos de escala muito inferior, desviados para outras aplicações ou simplesmente sofreu paralizações. O carro elétrico e os veículos autônomos devem reforçar essa trajetória que coloca os biocombustíveis (sejam os tradicionais ou os de segunda geração) em um patamar inferior de importância, portanto com trajetórias tecnológicas mais modestas.
8. A remoção de duas restrições importantes da trajetória do BNDES
Existem duas restrições maiores ao modo tradicional de funcionamento do BNDES: a falta de capilaridade e a exigência de garantias. São dois obstáculos que o BNDES precisa enfrentar e superar se deseja ter um futuro e projetar-se com um futuro para o Brasil. Embora sejam de natureza muito diferente, ambas representam grandes entraves a um banco portador de futuro para o desenvolvimento brasileiro e, por essa via, para o revigoramento de sua existência.
Para nenhuma destas duas restrições propõe o documento soluções que não sejam as decorrentes do reconhecimento de que elas precisam ser removidas, com doses combinadas de boa-vontade, sagacidade e espírito público.
Capilaridade
A falta de capilaridade do BNDES é intrínseca ao seu modelo atual de funcionamento. Localizado no Rio de Janeiro, com pouca inserção regional, o Banco tem dificuldades em estar próximo de áreas industriais relevantes, sejam as tradicionais ou as novas e as emergentes, diretamente ou por meio de parceiros. Evidentemente, a mera terceirização de algumas atividades é um substituto muito limitado e pobre para uma necessidade sentida pelo Brasil com relação à ampliação do acesso ao crédito e, mais que tudo, ao crédito de boa qualidade que o BNDES poderia, a partir do seu funding privilegiado (até recentemente), propiciar a um vasto contingente de empresas.
A superação da limitação que o banco possui em termos de capilaridade e de atuação descentralizada exige uma mudança de grande profundidade no modelo de funcionamento e - mais difícil - nos modos de pensar e agir do banco, cuja posição privilegiada o levou por muito tempo a considerar-se capaz de definir uma agenda e os instrumentos exclusivos de sua implementação.
Novos tempos, novos desafios: superar a sua atuação limitada e tornar-se o banco do desenvolvimento brasileiro e de todos os segmentos, regiões e setores demandantes de novos caminhos para o desenvolvimento demanda uma postura aberta, reflexiva, capaz de auscultar as necessidades e prospectar - no vasto e complexo ambiente institucional e financeiro brasileiro - os parceiros com potencial para a remoção das restrições à atuação do BNDES.
Atores novos ou por muito tempo ignorados podem tornar-se colaboradores fundamentais na implementação de uma agenda de renovação do tecido empresarial e do sistema industrial brasileiro. No plano tecnológico, que este documento prioriza ao lado da internacionalização como eixo para o rejuvenescimento e o revigoramento empresarial, há a necessidade de apoiar projetos de cooperação entre, de um lado, empresas, grupos de empresas, setores inteiros e, de outro lado, instituições de pesquisa, sejam elas públicas ou privadas, independentemente de suas finalidades. Para isso, atores como agências de inovação, incubadoras, parques tecnológicos, fundos, fundações de amparo à pesquisa, institutos setoriais e regionais precisam ser considerados de um modo mais aberto. Por outro lado, a necessidade de revigoramento de um vasto contingente de empresas indica que os bancos comerciais precisam ser considerados parceiros nos esforços de promoção da produtividade e do desenvolvimento tecnológico.
Esta agenda propositiva para que as funções primordiais tenham destaque efetivo e sejam a mola propulsora da ação do BNDES deve ser detalhada pela inteligência do banco e dos segmentos relacionados.
Garantias
A exigência de garantias em empréstimos é a maior restrição que pode existir para o rejuvenescimento e o revigoramento do tecido empresarial brasileiro. As garantias são, efetivamente, um determinante férreo de um tecido empresarial sem renovação e aprisionado aos estoques de riqueza do passado.
A possível existência de trajetórias muito dinâmicas, traduzidas em taxas de crescimento elevadas, conduz - nas condições presentes - a um travamento da expansão das empresas com maior potencial de crescimento. Em períodos anteriores, quando os limites dos setores eram bem definidos e as trajetórias de crescimento eram bem conhecidas, o apoio financeiro podia lastrear as melhores empresas dos setores prioritários por alguma razão (por exemplo, potencial de contribuição para as exportações ou para a substituição de importações) e isso assegurava uma trajetória suficientemente dinâmica (mesmo que não fosse muito transformadora). Nas condições presentes, em que os setores estão em permanente transformação, por forças internas ou externas, são precisamente as empresas emergentes com maior potencial de crescimento aquelas que demandariam maior volume de recursos que, infelizmente, não lhes são proporcionados na medida e nas condições adequadas.
A força das garantias é ilusória, mas elas continuam apesar disso sendo exigidas de todas as empresas, mesmo daquelas que possuem um potencial de crescimento muito superior a esse lastro real. Por outro lado, é graças às garantias, e à sua suposta força, que um banco qualquer - e o BNDES em particular - pode fazer análises menos substantivas e menos consistentes do que teria que fazer se o contexto fosse outro. Dito de outro modo, o banco teria a ganhar, em suas análises técnicas, se pudesse dispensar de garantias os empréstimos das empresas com elevado potencial de crescimento.
9. Um novo arranjo organizacional para o BNDES
O BNDES alargou o seu escopo de atuação e diluiu de modo extremamente exagerado a sua grande missão de promotor do desenvolvimento brasileiro em um sem número de papéis menores. É necessário que o banco volte a ter focos claros e uma estrutura que traduza esses eixos de sua atuação.
Um arranjo que poderia ajudar no cumprimento das missões permanentes do BNDES e na sua ação mais ágil seria a superação do gigantismo do banco em três grandes áreas de atuação: infraestrutura, que foi a missão primeira do banco e onde há papéis a serem desempenhados de modo compartilhado com outros atores; exportações e internacionalização, um papel que o banco cumpre para algumas empresas brasileiras, no caso das exportações, mas ainda não assumiu de modo consistente no caso da projeção externa das empresas brasileiras; e tecnologia e inovação, onde talvez a reabsorção da Finep - Financiadora de Estudos e Projetos (nascida dentro do próprio banco e tornada autônoma em 1967) pudesse oferecer vantagens importantes para a aceleração do aprendizado do banco no tema tecnologia.
Uma forma de assegurar que cada uma das grandes áreas de atuação cumprisse o mandato estabelecido seria por meio do desdobramento do Conselho do BNDES em três conselhos vinculados aos propósitos da respectiva área, assegurando um acompanhamento efetivo das suas ações. A fixação de metas concretas em termos de resultados – e não meramente em termos de desembolsos poderia contribuir para que a instituição mobilizasse os seus recursos financeiros e humanos e criasse as articulações institucionais necessárias para o sucesso de sua missão.
Essa missão deveria ser resumida em ações vigorosas em prol da realização daquilo que é preconizado no artigo 1 e no artigo 172 da Constituição. O seu cumprimento exige o revigoramento do sistema produtivo, sem o qual nenhum dos seus objetivos será alcançado. Se o Banco Central é o “guardião da moeda”, o BNDES é ou deveria ser o promotor do sistema produtivo, assegurando que ele ofereça as bases sólidas e o dinamismo para o desenvolvimento brasileiro.
Evidentemente, o cumprimento de uma missão pública, geradora de externalidades para o progressivo reerguimento do sistema produtivo brasileiro e para a sua vigorosa inserção internacional em bases competitivas contemporâneas, exige uma solução compatível para o seu funding. Afinal, as suas operações promotoras de desenvolvimento são, por definição da missão, geradoras de externalidades não apropriáveis integralmente por investidores e empreendedores, demandando por isso formas de compensação adequadas, seja em razão dos créditos favorecidos, seja em razão de operações que deliberadamente deverão buscar projetos com riscos mais elevados, preteridos pelos capitais bancários e pelos fundos de investimento privados.