Carta IEDI
Financiamento do investimento no Brasil e o papel do mercado de capitais
No presente momento, a questão do financiamento de longo prazo das empresas e especialmente de seus investimentos assume, mais do que nunca, importância estratégica para a economia brasileira. O modelo de financiamento de investimentos privados que tem prevalecido nos últimos anos, com participação predominante do BNDES, apresenta profundas dificuldades de seguir operando nas mesmas bases, dada a substituição da TJLP pela TLP e a antecipação da amortização dos recursos concedidos ao BNDES pelo Tesouro.
Nesse cenário, a criação de um novo modelo de financiamento do investimento privado, inclusive para investimentos em infraestrutura, é prioritária e urgente. Por essa razão, o IEDI vem divulgando uma série de estudos de pesquisadores da área com avaliações e sugestões para o desenvolvimento de novos canais de financiamento de médio e longo prazo e para a reformulação do papel do BNDES, que permanecerá um agente importante em nosso sistema de crédito. Faz parte desta empreitada o trabalho realizado pelo pesquisador do CEMEC/FIPE Carlos Rocca, disponibilizado na íntegra no site do IEDI e sintetizado nesta Carta IEDI.
Também compõem esta série de estudos os seguintes trabalhos: “O Crédito Corporativo de Longo Prazo em uma encruzilhada: onde estamos e para onde podemos ir?” (Carta IEDI n. 791 de 9/6/17) e “O BNDES em uma encruzilhada: como evitar sua desmontagem” (Carta IEDI n. 828 de 30/1/18) preparados pelo economista Ernani Teixeira; “Para um novo desenvolvimento, um novo BNDES” (Carta IEDI n. 834 de 5/3/18) realizado pelo consultor João Furtado e “A importância do BNDES no acesso ao crédito e na produtividade das empresas brasileiras” (Análise IEDI de 1/6/18) de autoria de Filipe Sousa e Gianmarco Ottaviano.
Segundo Rocca, é patente que o mercado de capitais no Brasil é relativamente pequeno para a dimensão e nível de desenvolvimento de nossa economia e apresenta deficiências como prazos muito curtos para a dívida corporativa, baixa liquidez e grande concentração em apenas poucas empresas grandes. Na origem disso encontram-se: a permanência por décadas de taxas de juros em patamares elevados, a atratividade dos títulos da dívida pública vis-à-vis os riscos e a rentabilidade de ações e de papéis privados e, a partir de 2010, a forte concorrência derivada do aumento da oferta de financiamentos do BNDES com taxas subsidiadas.
Nesse contexto, e como seria de se esperar, surgem de várias fontes e de analistas experimentados manifestações de preocupação com a redução do tamanho do BNDES e com a capacidade do mercado de capitais brasileiro responder tempestivamente e com eficácia às necessidades de financiamento de longo prazo.
Entretanto, segundo ainda o autor, com a manutenção de um ambiente de juros baixos, como agora, em que a taxa básica (Selic) se encontra em um dos seus menores patamares históricos (6,5% a.a.), existem razões para acreditar que o mercado de capitais apresenta potencial de crescimento suficiente para se transformar na principal fonte de recursos de financiamento de longo prazo na economia brasileira:
a. Os instrumentos e veículos do mercado de capitais participam com 70% da mobilização de poupança financeira da economia brasileira e apesar da forte queda das taxas de investimento, a participação do mercado de capitais no financiamento do investimento de empresas e famílias que era de apenas 10% em 2010/2014 se eleva a 11,7% em 2017, face à queda de juros e à redução dos desembolsos do BNDES;
b. Existe grande espaço para aumentar a participação de títulos de dívida corporativa na carteira consolidada de ativos financeiros líquidos da economia brasileira, participação essa que era de apenas 4,4% em 12/2017; uma simulação feita com a hipótese de elevação da taxa de investimentos para o nível médio de 2010/2013 (21,7% do PIB), participação do BNDES equivalente à observada em 2006/2007 (1,5% do PIB), entre outras hipóteses, indica a necessidade de aumentar em cerca de 67% o volume a ser captado no mercado de capitais para o financiamento dos investimentos; a participação dos títulos de dívida corporativa na carteira consolidada se elevaria de 4,4% para apenas 6,6%, o que certamente não representa maior dificuldade;
c. A rapidez com que investidores e empresas tem se ajustado à queda da taxa de juros e às mudanças da regulação, reforça a percepção de que as novas condições permitirão resgatar a funcionalidade do mercado de capitais; alguns exemplos são: a experiência bem sucedida das debêntures de infraestrutura; o aumento de participação das empresas fechadas no mercado de dívida (ICVM476/2009); o forte aumento de emissões primárias de ações e dívida em 2017 em reposta à queda da taxa de juros, atingindo o maior valor desde 2005; a rápida migração de investidores de fundos de renda fixa de curto prazo para fundos multicarteiras e fundos de renda variável em resposta à queda da taxa de juros de 2017;
d. As debentures de infraestrutura, com 79% das emissões com prazos superiores a 5 anos e 38% com prazos superiores a 10 anos mostram o potencial de alongamento de prazos das debêntures comuns.
Há, contudo, desafios a serem vencidos para recuperar a funcionalidade do mercado de capitais como principal fonte de recursos de longo da economia brasileira. Dentre os desafios já apontados por vários pesquisadores e entidades do mercado, deve-se destacar pelo menos dois:
• a necessidade de manter taxas de juros reais baixas e elevar a liquidez do mercado secundário de dívida corporativa;
• caracterizar uma atuação do BNDES em sinergia com o mercado de capitais.
Quanto a este segundo desafio, entre outras alternativas de atuação, algumas já adotadas e/ou anunciadas pelo BNDES, destacam-se a subscrição e apoio de emissão de debêntures como alternativa à concessão de financiamentos, compra de quotas de fundos de investimento em infraestrutura, atuação como “market maker” das debêntures de infraestrutura, a utilização de recursos captados no mercado doméstico como fonte de recursos para financiar suas operações além da possibilidade de securitização de recebíveis de sua carteira.
O autor enfatiza que mesmo na hipótese de um forte desenvolvimento de nosso mercado de capitais, o BNDES continuará desempenhando papel de grande importância especialmente no financiamento de infraestrutura, inovação tecnológica e pequenas e médias empresas em áreas de atuação e prazos nos quais o mercado não oferece soluções viáveis de financiamento.
Introdução
Esta Carta IEDI sintetiza o estudo realizado pelo pesquisador Carlos Rocca, do CEMEC/FIPE, cujo objetivo é realizar uma avaliação preliminar do potencial de crescimento do mercado de capitais brasileiro, especialmente no que se refere à sua participação no financiamento de investimentos e identificar algumas ações que podem incrementar sua funcionalidade. Trata-se de dimensionar o tamanho do desafio de aumentar o volume de recursos a serem fornecidos pelo mercado de capitais na posição de principal fonte de financiamento de longo prazo com a redução de participação do BNDES.
É importante registrar, desde já, que o maior desafio para explorar esse potencial é de natureza macroeconômica. Trata-se de criar as condições de sustentação de taxas reais de juros de longo prazo baixas, relativamente estáveis e próximas dos padrões internacionais. O ajuste fiscal de longo prazo, com a geração de superávits primários suficientes para estabilizar e depois reduzir a carga da dívida pública é a condição básica para isso. Na hipótese alternativa, em que esse ajuste não vier a ser feito, será impossível manter taxas de juros no patamar desejado, caracterizando um cenário altamente negativo para o mercado de capitais, para o investimento privado e para a própria retomada do crescimento da economia.
Nesse cenário em que se promove o ajuste fiscal, são mantidas taxas reais de juros baixas e se consolida um novo posicionamento do BNDES, a principal proposição deste trabalho é a de que existem razões para acreditar na possibilidade de explorar o potencial do mercado de capitais e transformá-lo na principal fonte de financiamento de longo prazo da economia brasileira. A importância do mercado de capitais para financiar o desenvolvimento é objeto de vários trabalhos de instituições internacionais, como é o caso do BIS e do Banco Mundial.
Na próxima seção, logo após esta introdução, são utilizadas algumas estimativas para verificar de que modo tem sido financiados os investimentos no Brasil, com especial destaque para a participação dos recursos do BNDES e do mercado de capitais. Na seção seguinte o objetivo é identificar algumas das razões pelas quais o mercado de capitais brasileiro tem participação pequena no financiamento das empresas, embora seus instrumentos e veículos mobilizem cerca de 70% da poupança financeira. Em seguida busca-se avaliar em que medida um cenário de taxas de juros baixas e uma atuação em sinergia com o BNDES podem destravar o potencial de crescimento do mercado de capitais brasileiro até que se torne a principal fonte de recursos de financiamento de longo prazo da economia brasileira. Na quarta parte, são identificadas algumas condições e limitações a serem superadas para que o mercado de capitais possa desempenhar esse papel, especialmente relacionadas com a sustentação de baixas taxas de juros, a liquidez do mercado secundário de dívida corporativa e em particular de debêntures, e a abertura de capital das empresas. Na parte final são relacionadas as principais conclusões.
O financiamento dos investimentos no Brasil
O aumento dos investimentos privados é o principal fator para promover uma reversão do forte ciclo recessivo e iniciar a retomada do crescimento, condição necessária para recuperar o emprego e viabilizar o próprio ajuste fiscal. A dramática situação das contas públicas nos três níveis do Governo compromete o investimento público. As exportações podem gerar algum efeito positivo, mas insuficiente para mudar o cenário. Cabe ao investimento privado o papel principal na retomada do crescimento.
Entretanto, a intensidade do processo recessivo gerou excesso de capacidade na maioria dos setores, sendo improvável uma retomada mais consistente de investimentos em curto prazo. Desse modo, o aumento dos investimentos em infraestrutura é o principal instrumento para dar início a uma retomada do crescimento econômico. Apesar da recessão dos últimos anos, continua existindo excesso de demanda de serviços de infraestrutura, como resultado de décadas de subinvestimento nesse setor. Enquanto especialistas indicam a necessidade de investir pelo menos 3% do PIB para cobrir simplesmente a depreciação do capital fixo e, portanto, preservar as condições operacionais da infraestrutura existente, o país tem investido em média apenas 2,25% do PIB nas últimas duas décadas. Para vencer a defasagem existente, estima-se que esse esforço de investimento deveria atingir pelo menos 4,5% do PIB durante muitos anos. Nessas condições, é imperioso aumentar fortemente o investimento em infraestrutura e criar condições para que a execução e o financiamento desses projetos possam ser feitos pelo setor privado.
Participação do mercado de capitais no financiamento investimento privado
A participação dos instrumentos e veículos (fundos de investimento, fundos de pensão, fundos de previdência aberta e companhias de seguros) do mercado de capitais atinge 70% da mobilização da poupança financeira, mas é relativamente pequena e parou de crescer nos últimos anos no financiamento das empresas e dos investimentos, não obstante a qualidade de sua regulação e da infraestrutura de seus mercados de ativos financeiros e derivativos.
Com a redução do investimento público, como resultado da crise fiscal, a participação da formação bruta de capital fixo de empresas e famílias atinge 90% do total em 2017. Dadas as projeções da Instituição Fiscal Independente de que as verbas para investimento vão permanecer pressionadas nos próximos anos, o financiamento do investimento privado constitui a questão central para a retomada do crescimento. Estima-se que a participação dos recursos captados no mercado de capitais mediante emissões primárias de ações e títulos de dívida de prazo mais longo é da ordem de 10,7%% nos últimos anos. A participação do BNDES, depois de atingir nível excepcional de 18% em 2009 como parte de uma política anticíclica para mitigar os efeitos da crise, mantem a média de 14,3% no período 2010/2014, para cair até o nível de 5,6% em 2017, como é evidenciado no gráfico abaixo.
Mercado de capitais brasileiro: potencial de crescimento no cenário atual
Nesta seção o objetivo é verificar de que modo no cenário atual, caracterizado por baixas taxas de juros e uma atuação do BNDES em sinergia com o mercado de capitais pode destravar o potencial de crescimento do mercado de capitais e transformá-lo na principal fonte de recursos de longo prazo na economia brasileira.
O impacto da taxa de juros
Existem evidencias que demonstram o impacto negativo das altas taxas de juros, sobre o tamanho e a funcionalidade do mercado de capitais. Do lado das empresas, o número e o volume de emissões de ações e títulos de dívida corporativa tem correlação negativa com a taxa de juros. Do lado dos investidores, a permanência de taxas de juros reais elevadas pagas por títulos públicos com risco soberano e elevada liquidez durante muitos anos levou à concentração de suas carteiras nesses papeis, em detrimento da participação dos instrumentos de mercado de capitais – ações e títulos de dívida corporativa.
Resposta do mercado à queda recente da taxa de juros
Uma análise preliminar dos movimentos de empresas e investidores em resposta à acentuada queda da taxa de juros ocorrida ao longo de 2017 revela a velocidade e o potencial de ajustamento de fontes de financiamento utilizadas pelas empresas e da composição das carteiras de ativos dos investidores.
No caso das debêntures o efeito da queda da taxa básica de juros é imediato, de vez que a maioria das emissões utiliza a taxa do CDI como indexador, fazendo com que seu custo financeiro se reduza em linha com a taxa SELIC. Ao mesmo o tempo as taxas médias dos financiamentos do BNDES se elevaram, com a forte redução das linhas subsidiadas e as taxas de financiamento de recursos livres não tem acompanhado a intensidade de queda da taxa básica. Com isso, as debêntures têm oferecido um custo de captação que a partir de meados de 2017 é inferior ao do BNDES, tendo ainda ampliado o diferencial favorável em relação aos recursos livres.
Recente trabalho do CEMEC (2017 - Retomada do Crescimento do Mercado de Capitais Brasileiro) analisou o desempenho da captação de recursos feitas no mercado de capitais, para medir o efeito da queda da taxa de juros ao longo de 2017 e da redução de oferta de recursos subsidiados do BNDES desde 2016. A conclusão é a de que a evolução dos principais indicadores de atividade do mercado de capitais em 2017 evidencia uma forte resposta positiva a esses dois fatores. O forte crescimento das emissões primárias de ações (IPO e follow-on) e de dívida corporativa fez com que o volume de recursos captados no mercado de capitais atingisse R$ 177,9 bilhões, o maior valor observado desde 2005, início do período sob exame, e 55% maior que o valor observado em 2016. O gráfico a seguir resume esses números.
É notável também a rapidez e intensidade da mudança das preferências dos investidores face à acentuada redução da remuneração dos fundos de renda fixa, indexada às taxas do CDI, em favor de fundos de multimercados e até de fundos de renda variável. À medida que a taxa básica de juros foi reduzida de 13,75%a.a. em janeiro para 6,50% a.a. em fins de março de 2018, observa-se uma forte reversão da preferência dos investidores em favor de fundos multicarteira e de fundos de renda variável em detrimento dos fundos de renda fixa. No primeiro trimestre de 2017, fundos de renda fixa concentravam 77% da captação liquida dos fundos de investimento. Daí por diante o cenário se inverte em todos os trimestres, de modo que o resultado acumulado nos últimos três trimestres de 2017 mostra uma captação liquida de fundos de renda fixa negativa, de –R$ 7,8 bilhões, contra um valor positivo de R$ 140,8 bilhões dos fundos multimercados e de ações.
A experiência com as debêntures de infraestrutura
O desempenho das debêntures de infraestrutura constitui uma indicação importante do potencial do mercado de capitais para o suprimento de recursos de financiamento de longo prazo.
Quando são computados todos os projetos de investimento em infraestrutura autorizados até 2018, a participação de debêntures incentivadas no seu financiamento atinge cerca de 17,2%. Note-se a ocorrência de grande variação desse porcentual entre projetos, de 8% a 100%, e também um aumento considerável nos projetos aprovados em 2017 e 2018, para 26% e 50% respectivamente.
A experiência com esses papéis revela alguns aspectos positivos, embora o valor total de emissões desde sua criação seja apenas de R$ 30 bilhões, em 128 emissões. Os prazos dessas debêntures são mais longos, com mais de 70% das emissões com prazos de mais de 5 anos, contra 55% das debêntures comuns1. O gráfico a seguir apresenta a distribuição das debêntures por prazos de vencimento, onde se verifica que 79% das emissões tem prazo de vencimento maior que 5 anos e 38% acima de 10 anos, com prazo médio de 9 anos.
Embora o benefício da isenção do imposto de renda tenha sido repassado apenas parcialmente aos investidores, esses papeis tiveram grande aceitação por investidores pessoas físicas, apesar de carregarem os riscos próprios de projetos de infraestrutura. Por outro lado, no momento de sua colocação no mercado, a expectativa de liquidez provavelmente não era diferente da baixa liquidez observada no mercado secundário das debêntures comuns. Além disso, esses papeis são indexados ao IPCA mais uma taxa real de juros, diferente da indexação às taxas do CDI, procedimento que predomina no mercado de renda fixa.
De fato, os dados disponíveis mostram a participação dominante de pessoas físicas na compra das debêntures de infraestrutura. Investidores pessoas físicas diretamente e via clubes de investimento respondem por 61,6% da colocação dessas debentures, participação essa que se elevaria para 70%, na medida em que fossem considerados também os 8,5% dos fundos de investimento em infraestrutura, cujas quotas incentivadas também devem ter sido colocadas junto a pessoas físicas. Por outro lado, a colocação dessas debêntures junto a um grande número de pessoas físicas tem sido um fator importante para a geração de índices de liquidez desses papéis, com turnover de 55,4% nos 12 meses terminados em março de 2018, contra 16,1% das debêntures comuns.
A demanda de investidores pessoas físicas por debentures de infraestrutura se reflete também sobre os prêmios de risco desses papeis. O “spread” médio sobre as NTN-B de prazo equivalente observado nas emissões de debêntures de infraestrutura feitas pela ICVM 400, às quais os investidores pessoas físicas comuns tem acesso é de apenas 0,37%a.a. contra 1,24%a.a. da ICVM 476, dirigidas aos investidores qualificados.
Não obstante as características dos investimentos em papeis de infraestrutura, com perspectiva de rentabilidade real de longo prazo, sejam em geral atraentes para investidores institucionais e especialmente para fundos de pensão, estes praticamente não investiram em debêntures incentivadas. No caso de fundos de pensão, que já são isentos do imposto de renda em suas aplicações, igual isenção em debêntures incentivadas não constitui incentivo adicional em relação à NTN B, sendo uma aplicação de maior risco e menor liquidez, com prêmios de risco considerados insuficientes. Outros fatores que contribuem para a baixa atratividade desses papéis para esses investidores incluem o pequeno volume de emissões, ausência de um “pipeline” de projetos e alto custo para avaliação de seu risco de crédito.
Empresas de capital fechado no mercado de dívida corporativa
Apesar da pequena participação de empresas de menor porte no mercado de capitais, é interessante notar o impacto da ICVM 476/2009, que autorizou sociedades anônimas de capital fechado a emitirem títulos de dívida e promoverem sua colocação no mercado para investidores qualificados. A evolução dessas emissões é notável, fazendo que a participação dessas empresas atingisse no período de 2009 a 2016 cerca de 68% do número de empresas emissoras de debêntures e 67% do seu valor. Ao mesmo tempo, ocorre uma clara tendência de queda no valor médio dessas emissões, indicando maior participação de empresas de menor porte.
Condições para explorar o potencial de crescimento do mercado de capitais e algumas limitações a serem superadas
Esses números podem ser usados para fornecer algumas indicações do potencial de crescimento do mercado de capitais no fornecimento de recursos para o financiamento de investimento e da possibilidade de o mercado de capitais tornar-se a principal fonte de recursos domésticos de longo prazo no cenário atual.
Usando algumas hipóteses e simulações, busca-se dimensionar o crescimento necessário dos recursos a serem fornecidos pelo mercado de capitais para o financiamento dos investimentos nesse cenário e verificar a magnitude de realocação da carteira consolidada de ativos financeiros líquidos, na hipótese de que esta viesse a ser a principal fonte de recursos.
É importante destacar desde já que mesmo sem contar com recursos do Tesouro, o BNDES certamente continuará ocupando posição de grande importância no financiamento de investimentos. Por um lado, além dos recursos de poupança compulsória do FAT e PIS-PASEP, o banco tem grande capacidade de captação de recursos no mercado doméstico e no internacional. Por outro lado, sua participação é indispensável especialmente naquelas situações em que o mercado revela dificuldades para financiar, o chamado “market gap”. Nas condições atuais, esse pode ser o caso, por exemplo, de seu apoio no financiamento do período de construção e dos prazos longos requeridos por projetos de infraestrutura, o financiamento de inovação e de pequenas e medias empresas. Deve-se registrar também a existência de projetos com retorno social superiores às taxas de retorno privado, mas que não cobrem o custo de capital, como é o caso por exemplo, dos projetos da área de saneamento. Nesses casos, o fornecimento de recursos com subsídios é social e economicamente defensável, mas os subsídios devem ser financiados por verbas do orçamento fiscal, com transparência, sem comprometimento do equilibro econômico e financeiro do BNDES.
Potencial de aumento da participação do mercado de capitais no financiamento dos investimentos
Uma indicação importante do potencial de crescimento do volume de recursos que podem ser obtidos no mercado de capitais para financiar investimentos resulta da pequena participação de títulos de dívida privada corporativa na carteira consolidada de ativos financeiros líquidos da economia brasileira, da ordem de apenas 4,4% em 2017, segundo o CEMEC/FIPE. Os investidores institucionais, cuja carteira atinge R$ 4,1 trilhões em 12/2017, destinam apenas 10,3% desses recursos para ações, 6,0 % para títulos de dívida corporativa dos quais 3,2% para debêntures e 2,8% para outros instrumentos de dívida.
Para obter pelo menos uma ordem de grandeza dos recursos adicionais a serem fornecidos pelo mercado de capitais para o financiamento dos investimentos de empresas e famílias, num cenário de aumento da taxa de investimento e redução da participação do BNDES, foi feita uma simulação com base em algumas hipóteses. A taxa de investimentos que em 2017 é de 15,6%, aumentaria a média observada entre 2010 e 2013, de 21,7% do PIB, nível que se acredita compatível com crescimento da ordem de 3% a 4% do PIB. O investimento público não retornaria aos 2,8% do PIB de 2010/2013, mas se elevaria do nível excepcionalmente baixo de 2017 (1,6% do PIB) em 2017 para 1,9% do PIB. A participação do BNDES se reduz 2,5% do PIB em 2010/2013 para 1,5% do PIB observados na média de 2006/2007. A participação de recursos próprios retomaria a participação observada em 2006/2007, de 8,6% do PIB, acima do porcentual de 2017 (6,4%). A participação das demais fontes de recursos, desembolsos do SBPE e do FGTS habitacional e emissão de dívida no mercado internacional manteriam a mesma participação no PIB de 2010/2013.
Com essas hipóteses, a participação do mercado de capitais aumentaria de 1,9% do PIB em 2017 para 3,1% do PIB, representando um aumento de 67% do valor das emissões de ações e dívida corporativa de longo prazo emitida em 2017. O aumento do valor total de emissões de ações e dívida de prazo médio e longo seria de R$ 81,1 bilhões, aumentando de R$ 121,5 bilhões de 2017 para R$ 202,6 bilhões. Mantida a mesma proporção de 81% de títulos de dívida observada em 2017, o aumento de valor de emissão desses títulos seria de R$ 65 bilhões. Admitindo a manutenção do mesmo prazo médio atual desses papeis, a manutenção desse valor em emissões em caráter permanente implicaria um aumento de cerca de R$ 230 bilhões do estoque desses títulos. A participação desses títulos aumentaria de 4,4% atuais para 6.6% da carteira consolidada de ativos líquidos da economia brasileira. Se todo esse aumento de títulos de dívida corporativa fosse alocado na carteira dos investidores institucionais, sua participação se elevaria em 5,6p.p., de 6% para 11,6% dessa carteira.
Com essas hipóteses, o aumento de participação do mercado de capitais no financiamento dos investimentos parece ser viável, levando em conta a necessidade de uma realocação relativamente pequena da carteira consolidada de ativos financeiros.
Algumas limitações do mercado de dívida corporativa para o financiamento de longo prazo
Entretanto, não é difícil identificar algumas limitações do mercado de capitais para cumprir o papel de liderança no fornecimento de recursos de longo prazo para o financiamento de investimentos.
A literatura recente tem examinado em detalhe as deficiências do mercado de capitais brasileiro e formulado várias propostas de ações visando sua superação. As questões tratadas neste trabalho permitem destacar pelo menos algumas limitações.
Competição da dívida pública
A realização do potencial referido neste trabalho poderá ser comprometida com o aumento da carga da dívida pública, se as medidas de ajuste fiscal forem insuficientes para conter seu aumento. A contenção da demanda de recursos para o financiamento do déficit público condiciona também permanência do cenário de baixas taxas de juros. Mesmo no cenário base adotado pela Instituição Fiscal Independente (IFI), a dívida pública continuaria crescendo em relação ao PIB até 2025. Uma análise da consistência macroeconômica provavelmente mostraria que mesmo contando com alguma complementação da poupança externa, é muito difícil desenhar um cenário favorável ao investimento privado e ao crescimento sem a recuperação da poupança do setor público.
Liquidez do mercado secundário de títulos de dívida corporativa
A liquidez do mercado secundário de dívida corporativa constitui condição necessária para compor sua atratividade e competitividade em relação aos títulos públicos, especialmente por parte de investidores institucionais e estrangeiros. A liquidez do mercado de debêntures comuns é muito baixa, comprometendo também a qualidade de formação de preços para muitos dos papéis listados, além de dificultar o alongamento dos prazos de vencimento.
Podem ser mencionadas pelo menos duas ações que poderiam contribuir para mudar esse cenário. A primeira, que já é objeto de algumas inciativas, é a padronização de escrituras. A segunda é a consolidação da atividade de formador de mercado (market maker) nesse mercado, que aliás já constava do projeto do Novo Mercado de Renda Fixa da ANBIMA. A adoção da TLP, e a nova política operacional do BNDES, que prevê em muitas situações a subscrição de debêntures como forma de financiamento de empresas e projetos, faz com que a liquidez desse mercado seja fator de importância estratégica para aquele banco. Trata-se de uma condição necessária para viabilizar o giro de sua carteira e potencializar a concessão de novos financiamentos. Desse modo parece razoável esperar uma participação ativa do BNDES visando a promoção de liquidez nesse mercado, em parceria com o setor privado.
Tributação
Não obstante seja desejável incentivar o alongamento de prazos, deve-se atentar para a harmonização da tributação entre ativos financeiros e investidores de modo e evitar distorções, como é o caso de isenções para LCA e LCI em relação a outros ativos de prazos semelhantes. Por outro lado, a isenção do imposto de renda para pessoas físicas no caso de debêntures de infraestrutura tem sido mais um fator para desestimular a entrada de fundos de pensão nesse mercado, dado que essas entidades têm isenção do imposto. A forte demanda desses papéis por parte pessoas físicas tem reduzido o spread em relação às NTN-B para níveis julgados insuficientes por essas entidades para cobrir os riscos adicionais.
Acesso de empresas ao mercado de capitais
Têm sido modestos os resultados de todos os esforços realizados até o momento para incentivar a abertura de capital das empresas de menor porte mediante sua entrada no mercado de acesso da B3. Além da dificuldade de ativar o mercado de acesso face à pequena base de investidores em ações, o posicionamento das empresas também revela alguns obstáculos. Pesquisas realizadas pelo CEMEC em parceria com a FIESP, sugerem que as duas principais dificuldades mencionadas por parte das empresas para abrir o capital residem nos custos para sua adequação aos padrões de governança e controle considerados elevados em relação à perspectiva de captação de recursos no mercado e a dificuldade de ceder o compartilhamento do controle.
Uma alternativa que pode se revelar mais promissora é a de criar condições mais favoráveis para a entrada dessas empresas no mercado de dívida corporativa, como passo inicial para abertura de capital mais adiante. Embora já representem um avanço importante em favor de sua entrada no mercado, os requisitos de transparência e governança são menos exigentes, não há compartilhamento de controle e os benefícios de redução de custo de capital de dívida são significativos quando comparados com o custo de crédito bancário. A resposta positiva das empresas fechadas à ICVM 476 reforça essa perspectiva.
Conclusões
A análise das condições de financiamento dos investimentos no Brasil e do potencial do mercado de capitais como principal fonte de recursos de longo prazo feita neste trabalho sugere as seguintes observações:
1. Existe evidência considerável demonstrando que condições macroeconômicas adversas, caracterizadas principalmente por elevadas taxas de juros, têm sido o principal fator de inibição do desenvolvimento do mercado de capitais brasileiro, pelo menos desde o Plano Real, em 1994; a ampliação da política de concessão de crédito com taxas subsidiadas pelo BNDES a partir de 2010 introduziu uma forte competição com as fontes de recursos do mercado de capitais, especialmente em relação às empresas de maior porte e mais qualificadas para captar recursos nesse mercado;
2. Um novo cenário mais favorável para o desenvolvimento do mercado de capitais surge agora com a redução da taxa real de juros para níveis mais próximos dos internacionais e a mudança de posicionamento do BNDES, em favor do mercado de capitais e com a adoção de taxas de financiamento referenciadas a taxas de mercado (TLP);
3. Na medida em que essas novas condições sejam mantidas, existem razões para acreditar que o mercado de capitais apresenta potencial de crescimento suficiente para se transformar na principal fonte de recursos de financiamento de longo prazo na economia brasileira, ao mesmo tempo em que o BNDES continuará desempenhando papel de grande importância especialmente no financiamento de infraestrutura, inovação tecnológica e pequenas medias empresas em áreas de atuação e prazos nos quais o mercado não oferece soluções viáveis de financiamento;
a. Os instrumentos e veículos do mercado de capitais participam com 70% da mobilização de poupança financeira da economia brasileira e apesar da forte queda das taxas de investimento, a participação do mercado de capitais no financiamento do investimento de empresas e famílias que era de apenas 10% em 2010/2014 se eleva a 11,7% em 2017, face à queda de juros e à redução dos desembolsos do BNDES;
b. Existe grande espaço para aumentar a participação de títulos de dívida corporativa na carteira consolidada de ativos financeiros líquidos da economia brasileira, participação essa que era de apenas 4,4%2 em 12/2017; uma simulação feita com a hipótese de elevação da taxa de investimentos para o nível médio de 2010/2013 (21,7% do PIB), participação do BNDES equivalente à observada em 2006/2007 (1,5% do PIB), entre outras hipóteses3, indica a necessidade de aumentar em cerca de 67% o volume a ser captado no mercado de capitais para o financiamento dos investimentos; a participação dos títulos de dívida corporativa na carteira consolidada se elevaria de 4,4% para apenas 6,6%, o que certamente não representa maior dificuldade;
c. A rapidez com que investidores e empresas tem se ajustado à queda da taxa de juros e às mudanças da regulação, reforça a percepção de que as novas condições permitirão resgatar a funcionalidade do mercado de capitais; alguns exemplos são: a experiência bem sucedida das debêntures de infraestrutura; o aumento de participação das empresas fechadas no mercado de dívida (ICVM476/2009); o forte aumento de emissões primárias de ações e dívida em 2017 em reposta à queda da taxa de juros, atingindo o maior valor desde 2005; a rápida migração de investidores de fundos de renda fixa de curto prazo para fundos multicarteiras e fundos de renda variável em resposta à queda da taxa de juros de 2017;
d. As debentures de infraestrutura, com 79% das emissões com prazos superiores a 5 anos e 38% com prazos superiores a 10 anos mostram o potencial de alongamento de prazos das debêntures comuns;
4. Além de outros desafios a serem vencidos para recuperar a funcionalidade do mercado de capitais como principal fonte de recursos de longo da economia brasileira já apontados por vários pesquisadores e entidades do mercado, deve-se destacar pelo menos duas:
a. a necessidade de manter taxas de juros reais baixas e elevar a liquidez do mercado secundário de dívida corporativa;
b. caracterizar uma atuação de BNDES em sinergia com o mercado de capitais; entre outras alternativas de atuação, algumas já adotadas e/ou anunciadas pelo BNDES, destacam-se a subscrição e apoio de emissão de debêntures como alternativa à concessão de financiamentos, compra de quotas de fundos de investimento em infraestrutura, atuação como “market maker” das debêntures de infraestrutura, a utilização de recursos captados no mercado doméstico como fonte de recursos para financiar suas operações além da possibilidade de securitização de recebíveis de sua carteira.
1 No caso do BNDES, foram localizados apenas dados do Banco Central em relação à distribuição da carteira (saldos) das operações diretas do BNDES, mas que não são diretamente comparáveis com emissões de debentures; de qualquer modo, o saldo de operações com mais de 5 anos equivale a 45,1% do saldo da carteira do BNDES em 2017.
2 Os investidores institucionais, cuja carteira consolidada era de R$ 4,1 trilhões 12/2017, equivalentes a 65% do PIB, investem apenas 6,0% desse valor em ações e títulos de dívida corporativa.
3 Participação de outras fontes em relação ao PIB mantem nível médio observado em 2010/2013: Investimento direto estrangeiro, desembolsos SBPE, desembolsos de FGTS habitacional e emissões de bonds e notes de empresas não financeiras; investimentos da administração publica caem de 2,8% do PIB em 2010/2013 para 1,9% na simulação (1,6% em 2017).