IEDI na Imprensa - Crédito para consumo avança mais e pode alavancar PIB
O Globo
Ciclo de virada ainda não chegou às empresas, o que seria bom para investimentos
Anaïs Fernandes
As concessões de crédito às famílias mais ligadas ao consumo têm crescido a um ritmo mais forte do que as concessões mais relacionadas à contração de dívida, movimento que se fortaleceu neste início de ano e que, para alguns economistas, será fator importante de impulso ao Produto Interno Bruto (PIB) ao longo de 2024.
Em janeiro, o crédito livre à pessoa física associado ao consumo subiu o dobro daquele ligado a dívidas: 14,4%, contra 7,1%, ante igual período de 2023. O levantamento feito pelos economistas do PicPay considera como crédito do consumo linhas de aquisição de bens (veículos, por exemplo), cartão à vista, parcelado e arredamento, e como crédito de dívida, cheque especial, crédito pessoal não consignado, parcelado e rotativo.
“Não são coisas apartadas, a divisão tem intersecções. Mas é uma forma de olhar linhas mais condizentes com a lógica de consumo e outras ligadas a um endividamento caro”, diz Marco Caruso, economista-chefe do PicPay.
O Banco Central aumentou sua projeção de crescimento do saldo de crédito em 2024 de 8,8% para 9,4%, segundo o Relatório de Inflação (RI) trimestral de março, divulgado na semana passada. O crescimento do crédito livre para pessoas físicas passou de 9% para 10%, enquanto para as empresas subiu menos, de 7% para 7,5%.
Na ata da reunião de março, divulgada também na semana passada, o Comitê de Política Monetária (Copom) do BC destacou que o crédito, além da renda, tem se comportado de forma a atenuar a desaceleração da atividade no período recente e citou “o ciclo de crédito em fase de retomada” como um dos fatores que devem levar a um “consumo resiliente”.
Caruso lembra que, após uma queda inicial de ambas as categorias com a eclosão da pandemia, o crédito ligado ao consumo se recuperou já no segundo semestre de 2020 e explodiu até meados de 2021, conforme famílias aumentaram sua poupança e direcionaram o consumo de serviços para bens.
“O consumo largou na frente, mas o que começou a acontecer a partir de um certo momento, talvez no exagero do consumo e também com a pandemia se estendendo por tempo indeterminado, foi que a porção da dívida cresceu demais”, afirma Caruso.
A parte do crédito ligado a consumo recuava a partir da segunda metade de 2021, mas a evolução do crédito ligado a dívidas crescia, atingindo seu ápice no início de 2022. “Aquele ano foi quando tudo ficou claro. Sentimos isso, de pessoas tomando linhas caríssimas para pagar despesas do dia a dia”, diz Caruso.
Ao longo de 2022, ambas as categorias estavam em queda, “seja porque, do lado da demanda, as pessoas estavam muito endividadas, seja porque, do lado da oferta, os bancos colocaram um freio”, recorda o economista.
Desde meados de 2023, porém, enquanto a porção de crédito mais ligada à dívida seguiu em contração, a parte de consumo se estabilizou e, então, começou a subir, abrindo o que economistas chamam de uma “boca de jacaré” em relação ao outro indicador.
“É como se tivesse ocorrido uma arrumação na casa, tanto por parte das famílias quanto dos bancos, e, agora, vemos um começo de volta da confiança de se tomar e ofertar crédito. Parece uma condição melhor de contorno do consumo e do crédito das famílias”, diz Caruso.
Agora, as concessões de crédito totais estão cerca de 30% acima do pré-pandemia, segundo o PicPay, mas para consumo estão 89% além e, para dívida, 55% acima.
A constatação bate com o cenário macroeconômico geral, observa Caruso. “Temos cortes da Selic que já começam a aparecer nos juros para a pessoa física, é um primeiro alívio. E vemos a inadimplência melhorando”, afirma.
Caruso chama atenção também para o menor comprometimento da renda das famílias com dívidas, ainda que isso esteja se dando, por ora, mais pela redução do principal (montante inicial da dívida) do que pela queda dos juros em si.
“Vemos uma melhora da renda e da capacidade das pessoas de amortizarem suas dívidas, o que conversa bem com o que estamos observando no mercado de trabalho e na renda do trabalhador. O grosso da história ainda não é tanto pelos juros, que, agora, estão melhorando também”, diz Caruso.
Desafio será chegar ao ano eleitoral com alavancas gastas”
— Igor Barenboim
Além disso, os economistas do PicPay apontam como este ciclo de alívio na inadimplência tem sido mais rápido do que em outros momentos de aperto, como no fim de 2015. “Aquele foi um período bem mais complicado, o PIB caiu mais de 3%”, lembra Caruso.
Em 2023, o PIB subiu 2,9% e, para 2024, a expectativa é que avance 1,85%, segundo a mediana das estimativas do Focus, pesquisa do Banco Central com agentes do mercado. Mas instituições financeiras têm elevado suas projeções, em parte, exatamente por causa dos sinais vindos do crédito.
O Itaú Unibanco incorporou uma perspectiva mais positiva para concessões de crédito, especialmente à pessoa física e habitacional, na sua última revisão de PIB para 2024, de 1,8% para 2%.
Segundo o BTG Pactual, dados de crédito de janeiro sinalizam que a aceleração projetada acontecerá mais cedo do que o esperado. O BTG projeta alta de 2,3% para o PIB do Brasil em 2024.
“O crédito nunca salva o PIB do Brasil, porque ele é pró-cíclico, ou seja, ele anda quando o PIB já começou a andar. Mas é um reforço, um propulsor para a atividade. Se a pessoa ia consumir ‘x’ sem crédito, com crédito ela pode consumir ‘2x’”, explica Caruso.
A visão é bem melhor para este ano, por exemplo, no crédito ligado à aquisição de bens duráveis, como veículos, menciona Igor Cadilhac, economista do PicPay. “É difícil saber se o comportamento diante desse cenário macro melhor vai acabar melhorando a dívida, ou seja, até que ponto a pessoa vai, de fato, pagar”, pondera Cadilhac. “Mas, hoje, o cenário parece animador.”
Para fevereiro, pesquisa da Federação Brasileira de Bancos (Febraban) a partir de dados consolidados dos principais bancos do país, indica um crescimento de 0,5% no saldo total da carteira de crédito, ante janeiro, liderado pelo crédito às famílias.
A LCA Consultores projeta um crescimento do saldo de crédito livre à pessoa física de 11% em 2024, de acordo com o analista Michael Burt. “O que embasa essa projeção, além da queda da Selic, é justamente um momento único do mercado de crédito, com muitas pessoas bancarizadas, com acesso a conta corrente e outros produtos”, diz Burt.
Chama a atenção, segundo ele, que, apesar do ciclo recente de alta de juros, o nível de concessão às famílias continuou elevado em termos históricos. Para Burt, isso tem relação com o crescimento dos bancos digitais e o consequente acesso a novos produtos e vínculos bancários, como o cartão de crédito à vista. “A pessoa começa a operar com esse cartão e, depois, chega a outros produtos. Isso tem um impacto no consumo”, afirma.
Burt pondera que, apesar de estar cedendo, a inadimplência da pessoa física ainda é elevada e, se houver qualquer frustração no cenário macro, como uma atividade crescendo menos ou uma inflação mais persistente e uma flexibilização monetária menor, essa inadimplência pode voltar a subir.
Igor Barenboim, economista-chefe da Reach Capital, espera um crescimento ao redor de 2% do PIB em 2024, sendo que cerca de 1% seria por contribuição do crédito.
O problema, diz, é que esse momento de “virada do ciclo de crédito” à pessoa física não está se estendendo às empresas. Isso diminui, por exemplo, as possibilidades de avanço do PIB potencial do Brasil, segundo Barenboim. Também não ajuda os investimentos.
O crédito ofertado em condições adequadas e utilizado com responsabilidade é uma “poderosa alavanca do crescimento econômico”, pois permite aos agentes econômicos a realização no presente de seus projetos, destaca o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI) na sua carta mais recente.
“As condições creditícias do Brasil permaneceram pouco favoráveis a essa dinamização da atividade econômica ao longo da maior parte de 2023”, diz. “No final do ano, contudo, houve sinais incipientes de melhora, que podem ganhar robustez”, acrescenta.
Para o PIB de curto prazo, importa menos se o crédito que as famílias estão tomando é de boa ou má qualidade, diz Barenboim. “No fim, é gasto, vai financiar o consumo. Mas, a médio prazo, pode não ser algo incrível. E o desafio vai ser chegar ao ano eleitoral lá na frente com essas alavancas já meio gastas”, afirma.