IEDI na Imprensa - Em dez anos, empresas eliminam 1 milhão de vagas de chefia no país
O Globo
Tecnologia, inovações e falta de interesse dos jovens nos cargos reduzem postos de gerência
Cássia Almeida e Mayra Castro
O mercado de trabalho brasileiro tem menos chefes e diretores. Uma das principais mudanças estruturais no mundo do emprego nos últimos dez anos, entre 2013 a 2023, foi a redução das vagas de gestão nas empresas. O contingente dedicado a essas funções perdeu 1,026 milhão de profissionais no período enquanto a população ocupada geral cresceu 8,8 milhões, de acordo com estudo da economista Cristiane Soares, técnica do IBGE, com base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua.
Não há só uma explicação para o fenômeno detectado no estudo. Vários fatores se somaram para reduzir esse contingente no mercado de trabalho.
Economistas e especialistas de Recursos Humanos listam desde uma mudança na gestão das empresas com objetivo de enxugar as chefias intermediárias, num movimento mundial que vem desde o fim dos anos 1980, até a pandemia, que intensificou o uso da tecnologia tornando dispensáveis controles exercidos por esses empregados.
Há ainda nessa equação, o perfil de crescimento da economia brasileira nesse período, quando vivemos dois anos de recessão forte, com queda do Produto Interno Bruto (PIB) de mais de 3% por ano em 2015 e 2016, expansão próxima a 1% nos anos seguintes até chegar na recessão novamente, dessa vez causada pela pandemia. Esse aspecto conjuntural enfraqueceu a criação de postos mais qualificados nesses dez anos.
— Há também o avanço dos MEIs (microempreendedores individuais). Muitos profissionais que trabalhavam nessas funções nas empresas mudaram suas condições. Um gerente ou um executivo passou a ser um consultor — explica Cristiane.
A economista verificou que houve uma alta de 52% no número dos que trabalham por conta própria que têm CNPJ e contribuem para a Previdência Social, considerado uma aproximação do universo dos MEIs, de 2015 (quando é possível fazer a comparação) a 2023. E o salário deles é maior que a média: R$ 4.836 mensais contra R$ 2.946 dos trabalhadores ocupados.
Paulo Sardinha, presidente da Associação Brasileira de Recursos Humanos, cita as mudanças adotadas pelas empresas nas últimas décadas, que acabaram aceleradas pela pandemia. Além de modelos de gestão mais horizontais, o uso massivo da tecnologia intensificou o enxugamento das chefias, diz Sardinha:
— Muitas funções de controle, típicas de gestões intermediárias, foram substituídas pela tecnologia. As teorias de gestão definiram muito claramente cada processo, o que muitas vezes tomou o lugar do chefe. E a pandemia levou a uma polarização: não se podia abrir mão de executivos muito qualificados e da grande capacidade de operação. Sobrou quem ficava no meio do campo. Criou-se uma ligação mais direta entre a gestão mais alta e a operação da empresa, uma forma de reduzir custos e encurtar caminhos.
Ele diz que, cada vez mais, a gestão moderna vem trabalhando para encurtar distância entre o topo e a base. Onde havia dois, três níveis hierárquicos, há agora um ou dois. E as startups trazem um novo modelo de negócios, mais direto e por projeto, diz ele, outro fator a explicar essa mudança que os analistas consideram estrutural e que já se configurou numa tendência mesmo nas grandes empresas. Isso não deve mudar, mesmo com a melhora do mercado de trabalho após a pandemia.
— Startups são mais ágeis, com maior facilidade de inovar— diz Sardinha.
Crescimento baixo
A empresa de Gustavo Reis, sócio e diretor de negócios da AGPMED, de artigos hospitalares, vem caminhando cada vez mais para uma estrutura de liderança horizontal, com poucos chefes. Fundada há 30 anos pelo pai de Reis e atualmente gerida por ele e seus irmãos, a companhia sempre teve uma gestão compartilhada, de acordo com o sócio:
— Em termos de gestão, já acontecia isso desde sempre. E a gente foi implementando o que acreditávamos que funcionava. Sempre tratamos todo mundo lateralmente, com muito foco na execução. Hoje, temos 80 funcionários e, na posição de chefia, seis. É muita gente para poucos chefes.
Reis conta que há quatro anos a empresa contava com apenas 30 empregados e cinco chefes. Mesmo após quase triplicarem o número de colaboradores, houve a adição de apenas um cargo de liderança.
Nesse bloco de mudanças, há a geracional. No histórico do imaginário do mundo do trabalho no Brasil, o grande emprego era o público, depois numa multinacional. Atualmente, diz Sardinha, o empreendedorismo tem um peso mais forte entre os jovens do que fazer carreira demorada em grandes empresas, subindo na hierarquia. Ser chefe já não é tão atraente.
Aos 23 anos, Carlos Vinicius Pacheco é estudante de Arquitetura da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Enquanto faz um estágio, ele pensa que não almeja alcançar um cargo de chefia em sua profissão, num exemplo dessa mudança em relação ao trabalho que houve nas gerações mais novas:
— Quando eu falo que tenho essa posição de não querer ser chefe, falo muito mais no sentido de não ter um negócio que dependa de mim, do que necessariamente não estar numa posição de líder. Eu assumiria uma posição de liderança, mas sem ser a chave principal para manter a coisa funcionando.
Outro fator estrutural apontado pelos analistas é o padrão de crescimento brasileiro nos últimos anos. Maria Andréia Parente, economista do Ipea, lembra que a moderada expansão da economia nos últimos anos foi muito sustentada por serviços, principalmente os prestados às famílias, que são setores nos quais há empresas de menor porte e poucos cargos de gestão e liderança.
Na outra ponta, o contingente empregado na indústria, onde estão as grandes companhias, ficou estagnado em dez anos, com uma queda de 161 mil no setor, mantendo-se em torno de 13 milhões.
— E o agronegócio, que vem crescendo, não tem tradição de gerar muitos cargos de liderança. Além da mudança organizacional nas empresas, com um único coordenador podendo abranger várias equipes, com mais espaço para profissionais multidisciplinares — cita a especialista.
Maria Andreia destaca que no Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), que acompanha o emprego com carteira assinada, nos últimos 12 meses, os setores que mais abriram vagas foram alojamento e construção, cujas vagas não exigem muita qualificação.
Década perdida
Rafael Cagnin, economista-chefe do Instituto de Estudos de Desenvolvimento Industrial (IEDI), afirma que a agenda forte de digitalização, mudando os métodos de gerir pessoas e processos e a progressiva incorporação de tecnologia da informação (TI) e automação explicam essa redução no número de chefes e diretores no setor. A parcela de chefes na indústria caiu de 5,1% para 4% em dez anos:
— Isso é estrutural. As funções repetitivas e que exigiam menos qualificação foram as primeiras a serem eliminadas. Agora, isso está chegando aos postos de gerenciamento.
Além disso, a última década foi praticamente perdida para a indústria, principalmente a de transformação (que exclui a parte extrativa, como petróleo e minério de ferro).
—O último período de crescimento findou em 2013. Houve duas crises muito agudas, com a recessão da indústria de 2014 a 2016, e veio a pandemia. Houve algum crescimento, mas nada acima de 1%. Houve uma recuperação parcial, mas já começou a cair em 2019. Sem dinamismo industrial, a geração de emprego fica mais comprometida.
A indústria é mais formalizada, com maior parcela de trabalhadores com carteira assinada. Empresas mais formalizadas tendem a ser mais verticalizadas, com mais níveis hierárquicos e cargos de chefia, observa Cagnin:
— Dentro dos grandes setores, a indústria tem a maior taxa de formalização. Depois de uma década de adversidade, tem essa estratégia reativa de incorporar métodos de gerenciamento que incluem enxugar cargos de gestão, incorporando tecnologias para isso.
Sandro Sacchet, técnico do Ipea, lembra que houve um período de crise que emendou na pandemia, com aumento do número de trabalhadores por conta própria e atuando em plataformas digitais, com estagnação na contratação do serviço público.
— Temos de ter estudos mais aprofundados para saber em que medida houve formalização pelo MEI ou se empregados se tornaram MEI por demanda da empresa ou do próprio empregado. Isso pode ter mudado a classificação de chefes e gerentes.