IEDI na Imprensa - A macroeconomia dos desencontros
Valor Econômico
Luiz Gonzaga Belluzzo
A crise da economia brasileira trouxe à baila o debate sobre o papel do investimento público na formação bruta de capital fixo e sua importância para o desenvolvimento da economia.
Desde o imediato pós-guerra, o exame da trajetória da nossa economia confirma que o investimento público é crucial para a obtenção de taxas de crescimento elevadas. Os dados de Rodrigo Orair (ver gráfico) demonstram claramente o protagonismo do investimento público no longo ciclo de expansão entre 1950 e 1979.
Não por acaso, as taxas de crescimento do período suplantam significativamente aquelas obtidas em outras etapas da trajetória da economia.
Como mostra Angus Maddison, o Brasil ocupava, então, a liderança no torneio mundial do crescimento amparado em um processo de industrialização que avançou para dotar o país de uma estrutura produtiva diversificada e moderna.
Descontada a década perdida dos anos 80, submetida às agruras da crise da dívida externa, o desenvolvimento posterior foi modesto. O primeiro ciclo, o dos anos 90, moveu-se no território do baixo dinamismo e da regressão da estrutura industrial. Esvaiu-se no colapso cambial de 1999. O segundo ciclo apoiado no projeto de inclusão social e expansão do mercado interno foi sustentado pelos preços das commodities e fragilizado pela valorização cambial. Sobreviveu à crise global de 2008, mas foi extinguindo suas forças nos anos que antecederam a crise de 2015.
Desde então, com mais intensidade durante o período eleitoral de 2014, o debate brasileiro trilhou os caminhos das simplificações binárias. Inspirados no filme "Querida, encolhi as crianças", não são poucos os que recomendam "encolher o Estado".
A experiência internacional, sobretudo a dos países asiáticos, parece demonstrar a existência de interações virtuosas entre investimento em infraestrutura, expansão industrial, graduação tecnológica e crescimento. Esses países executaram programas de "export led growth" com câmbio competitivo, fortes incentivos e duras exigências de desempenho impostas pelo Estado ao setor privado.
A conjugação de esforços entre o setor público e o setor privado organizado sob forma de grandes empresas permitiu durante muitas décadas a manutenção de taxas agregadas de investimento e de crescimento econômico extremamente elevadas. O economista Ajit Singh, em seus trabalhos sobre o desenvolvimento da Ásia, não hesitou em escolher, como fator crucial do sucesso do "catching up", a capacidade revelada pelas economias asiáticas de transformar continuamente os ganhos de produtividade decorrentes do avanço tecnológico em investimentos, os investimentos em lucros e os lucros retidos em novos investimentos durante um longo período.
Na China, as elevadas taxas de poupança registradas nas contas nacionais resultam, sobretudo, dos lucros retidos pelas empresas e do crescimento da renda das famílias. As "poupanças" brotam do circuito virtuoso: expansão do crédito-investimento-aumento da produtividade e das exportações líquidas-elevação dos lucros e dos rendimentos.
No debate internacional a respeito das "novas estruturas do crescimento", o investimento público em infraestrutura econômica-social e em tecnologia tem um protagonismo relevante. Não por acaso, como demonstraram os estudos do IEDI sobre a Indústria 4.0, os governos dos EUA, da Europa e da Ásia se movimentam para recolocar suas economias na senda da Nova Revolução Industrial.
Os zelosos guardiões do absenteísmo estatal não deveriam ver nisto nenhum indício de retrocesso ou ameaça. O investimento em infraestrutura executado ou organizado pelo setor público, assim como o investimento em tecnologia, não concorrem com o investimento privado, mas, ao contrário, servem como indutores do gasto empresarial.
"The Enterpreneurial State: Debunking Public vs Private Myths", de Mariana Mazzucato, e "Subsidies to Chinese Industry: Capitalism, Business Strategy and Trade Policy", de Usha Haley e George Haley, tratam das relações entre as empresas e as políticas governamentais. Recorrem a uma exaustiva investigação empírica, sem apelar para o blá-blá-blá ideológico, não raro hipócrita, da falsa oposição entre Estado e mercado no capitalismo contemporâneo.
Os estudos cuidaram de sublinhar as relações peculiares entre os Estados nacionais, os sistemas empresariais, os programas de inovação tecnológica e a "inserção internacional". Procuraram chamar a atenção para a centralidade da "organização capitalista" em que prevalecem nexos, digamos, "cooperativos" nas relações entre empresas e burocracias civis, militares e de segurança encarregadas de fomentar e administrar o sistema de avanço tecnológico (P&D).
A ação do Estado não só garantiu o abastecimento do capital paciente e capaz de encarar o risco da inovação, como também ajudou a coordenar as relações entre a grande empresa integradora e seus fornecedores.
No caso chinês, é crucial a presença dos bancos públicos no provimento de crédito para permitir a apropriação da tecnologia, mediante a utilização das empresas estatais para a formação de joint ventures com o capital estrangeiro e promover a "administração estratégica" do comércio exterior. Essa arquitetura institucional não apenas assegurou excepcionais taxas de investimento e acumulação de capital, como também ensejou programas de "graduação" tecnológica.
A ação estatal cuidou, ademais, dos investimentos em infraestrutura e utilizou as empresas públicas como plataformas destinadas a apoiar a constituição de grandes conglomerados industriais preparados para a batalha da concorrência global. Não é difícil perceber: as estratégias chinesas de expansão acelerada, o impulso exportador, a rápida incorporação do progresso técnico e uma forte coordenação do Estado foram inspirados no sucesso anterior de seus vizinhos, sócios e competidores.
Voltando ao Brasil: a integração às cadeias globais vai certamente exigir políticas distintas daquelas executadas nos anos do nacional-desenvolvimentismo. A ênfase, agora, deve ser colocada na busca da construção de vantagens dinâmicas apoiadas em programas de inovação, sobretudo os articulados ao agronegócio, às novas fontes de energia, à infraestrutura e às grandes demandas sociais, como educação, saúde, mobilidade urbana, segurança.
Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, escreve mensalmente às terças-feiras. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists.