IEDI na Imprensa - Choque de realidade deve marcar o ano de 2021 para a indústria
Valor Econômico
Inflação, fim do auxílio emergencial e dívidas das empresas lançam dúvidas sobre ciclo de crescimento
Domingos Zaparolli
A produção industrial deverá crescer na casa de 4,4% em 2021, de acordo com as projeções da Confederação Nacional da Indústria (CNI). Caso o desempenho projetado se comprove, o resultado significará pouco mais que um alívio diante da retração das atividades em 2020, calculada pela CNI em 3,5%. O fim de ano trouxe indicadores positivos que justificam a expectativa de recuperação das atividades em 2021. “O vento está a favor, mas não é forte e pode mudar de direção a qualquer momento”, afirma Rafael Cagnin, economista-chefe do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI).
Ele acredita que o dinamismo verificado no fim de 2020 é anormal, foi gerado por fatores que não devem se manter ao longo do próximo ano. Um exemplo é o auxílio emergencial, que gerou uma renda – de R$ 600 entre abril e agosto e de R$ 300 entre setembro e dezembro – para 66,7 milhões de pessoas. “É um dinheiro que foi diretamente para o consumo de alimentos, bebidas e produtos de higiene e limpeza aos quais normalmente as pessoas mais carentes têm acesso restrito. Com o fim do auxilio, a demanda volta ao patamar anterior”, diz o economista.
Os recursos públicos também irrigaram com crédito acessível o caixa das empresas. A medida foi importante para a sobrevivência no período de dificuldades, mas agora as empresas estão endividadas e com pouco fôlego para investir em novos produtos e ganho de produtividade. “Teremos um choque de realidade no início de 2021”, prevê Cagnin. Para o economista do IEDI, o governo precisa criar um plano de ação para uma transição gradual e menos traumática. Uma medida seria um programa de renda básica para atender a população mais vulnerável como forma de amenizar a dificuldade de o país gerar empregos na quantidade e velocidade necessárias.
A sinalização de um cenário de recuperação para as empresas também é necessária. Neste sentido, há toda uma agenda de reformas em tramitação no Congresso Nacional capaz de gerar estímulos ao setor produtivo. O projeto BR do Mar, que estimula a cabotagem e reduz custos logísticos, e o novo marco regulatório do gás, que incentiva investimentos privados na infraestrutura de comercialização e distribuição do gás natural, são projetos com grande potencial de impulsionar os negócios.
A economista Juliana Borges de Lima Falcão, especialista em política industrial da CNI, diz que na última década o preço excessivo do gás natural gerou a descontinuidade de várias atividades fabris. Enquanto o preço médio do gás no Brasil em 2019 era de US$ 14 o milhão de BTU (a unidade internacional de medida do insumo), na Argentina e nos Estados Unidos o custo era US$ 4. “Se o combustível cair para US$ 7 por milhão de BTU, o potencial é de investimentos de US$ 31 bilhões anuais em 2030 em indústrias químicas e eletrointensivas”, afirma.
O sinal mais esperado pela indústria é o desfecho da reforma tributária, com uma redução na burocracia para o recolhimento de impostos e uma melhor distribuição da carga de tributos entre as atividades econômicas. A inflação e seu impacto no poder de consumo é outra preocupação entre os gestores das empresas. Em novembro, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) acumulava alta de 4,31% em 12 meses, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O Índice Geral de Preços–Mercado (IGP-M), que mede a variação no atacado, acumulou alta de 21,97% até novembro, de acordo com os cálculos da Fundação Getulio Vargas, indicando que a pressão inflacionária continuará impactando o poder de consumo nos próximos meses.
“A retomada forte da inflação é o pior que poderia acontecer neste momento”, diz Pablo Di Si, presidente da Volkswagen na América Latina. Para o executivo, o consumidor chega ao fim do ano otimista, mas o sentimento ainda é frágil. Um recrudescimento dos contágios por coronavírus e a perda de poder aquisitivo com a inflação podem frear a recuperação das vendas verificadas em novembro, quando foram emplacados no país 225 mil veículos, com uma alta de 4,6% em relação a outubro.
A Volks readequou seu planejamento para uma alta entre 10% e 15% na produção. A companhia esperava encerrar em 2020 um ciclo de investimentos de R$ 7 bilhões iniciado em 2017. Parte dos recursos foi adiada para 2021. “Na crise, a prioridade é a sobrevivência”, diz o executivo. Em março e abril, a produção da montadora foi praticamente interrompida. A companhia recorreu a empréstimos para recompor o capital de giro e pagar salários. Também lançou um plano de demissões voluntárias, com o objetivo de reduzir em 35% o quadro de funcionários. “O importante é que estaremos preparados para acelerar ou desacelerar os investimentos de acordo com as mudanças no mercado”, diz o executivo.
A estabilidade da inflação nos últimos anos foi fundamental para a redução das taxas de juros e a expansão do crédito na economia. A Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança (Abecip) informa que os empréstimos destinados à aquisição e construção de imóveis alcançaram R$ 92,67 bilhões até outubro, superando em 48,8% os valores do mesmo período de 2019. As vendas de imóveis novos cresceram 8,4% até setembro, de acordo com levantamento realizado pela Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC).
A Gerdau, uma das principais fornecedoras de aços longos do país, insumo importante para a construção, registrou no terceiro trimestre de 2020 um aumento de 35% em suas vendas globais em relação ao trimestre anterior. “A construção tem dado sinais de uma forte retomada e também há um aumento nas compras de materiais de construção por parte do chamado autoconstrutor”, diz Gustavo Werneck, CEO da companhia.
A indústria de alimentos é uma das poucas que não foram impactadas pela crise. O IBGE calcula uma expansão de 5,2% no setor nos 12 meses terminados em outubro. O frigorifico Marfrig obteve no terceiro trimestre uma receita líquida de R$ 4,8 bilhões, total 26,3% superior ao registrado no mesmo período do ano passado. Com uma receita de R$ 49,6 bilhões em 2019, foi o grupo que mais cresceu no ranking do setor: 63,2%.
Miguel Gularte, CEO da Marfrig, atribui o bom desempenho a uma reestruturação iniciada em 2018, que envolveu a aquisição da National Beef nos Estados Unidos e a requalificação de quatro de suas 13 unidades de processamento de carne na América Latina, habilitando todas para a atuação no mercado externo. As exportações passaram de 50% da receita anual da companhia para 70%. O câmbio favorável ao exportador e a demanda 40% maior da China também contribuíram para o resultado.
Outra estratégia da Marfrig foi a ampliação da industrialização de sua produção. Aquisições realizadas nos últimos dois anos dotaram a companhia de uma capacidade para produzir 2,4 bilhões de hambúrgueres por ano, tornando-a a maior produtora mundial. “Nada cresceu mais neste ano no mundo que o delivery de hambúrgueres”, diz Gularte. O distanciamento social imposto pela pandemia também gerou novos hábitos, como o crescimento do preparo de alimentos em casa. “Em tempos de crise, não se podem perder oportunidades. É importante estar preparado”, afirma o executivo.