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Cadeias Globais de Valor: Padrões, impactos e desafios, segundo o Banco Mundial
Na edição de 2020 do World Development Report, o Banco Mundial avalia que atualmente cerca de 50% do comércio internacional se dá por meio das cadeias globais de valor (CGV), o que, segundo o Banco, traz maiores contribuições para o desenvolvimento dos países em comparação com outros fluxos de comércio.
Em um período de 20 anos, um país que aumenta 1% de sua participação nas CGV seria capaz de elevar sua renda per capita em mais de 1%, segundo estimativas do Banco Mundial. Isso significa o dobro do efeito do comércio internacional fora das CGV.
O Banco considera ainda que nos últimos anos as CGV impulsionaram o crescimento global, melhoraram a qualidade dos empregos ofertados e promoveram redução da pobreza.
Os efeitos positivos, porém, são verificados sobretudo em países que conseguiram sofisticar progressivamente sua inserção nas CGV. O relatório identifica padrões de inserção definidas a partir de fatores como geografia, dotações de fatores produtivos, tamanho de mercado e qualidade das instituições. São quatro os padrões identificados: especializados em commodities; manufatura simples; manufatura avançada e serviços; e atividades inovativas.
De 1990 a 2015, dentre os países que conseguiram melhorar sua inserção, destacam-se República Tcheca (de manufatura simples para atividades inovadoras), Argentina e Indonésia (de commodities à manufatura simples), China, Índia, Tailândia, Turquia, Portugal (de manufatura simples à avançada e serviços), Áustria, Israel, Itália, Espanha (de manufaturas avançadas para inovadoras). Já o Brasil não apresentou progresso, permanecendo como exportador de manufaturas simples.
Um dos principais canais pelos quais as CGV se mostraram benéficas foi o avanço da produtividade. O crescimento do comércio por meio das cadeias elevou a produtividade dos países em desenvolvimento cuja inserção nos processos produtivos internacionais foi profunda, como China, Vietnã e Bangladesh, onde a pobreza diminuiu de forma notável.
Há sinais, contudo, de que a engrenagem favorável das CGV parou. O relatório mostra que, desde a crise financeira de 2008, a expansão das CGV manteve-se estável, devido à desaceleração do PIB mundial e ao acirramento de conflitos comerciais.
O Banco Mundial estima que, se as tensões comerciais piorarem, até 31 milhões de pessoas podem entrar na pobreza, isto é, passar a receber menos de US$ 5,5 por dia. Com isso, a renda global seria reduzida em cerca de US$ 1,4 trilhão.
Outro desafio consiste no surgimento e difusão das novas tecnologias 4.0. O Banco avalia, por exemplo, que o avanço da robotização nos países avançados pode comprometer o desempenho exportador dos países em desenvolvimento. A perda de exportações de bens para a OCDE devido à robotização poderia ficar entre 29,7% e 53,7% no caso do México, de 17% a 29,7% no caso da China e de 11,5% a 17% no caso do Brasil.
Apesar dos riscos, a visão do Banco Mundial é a de que as novas tecnologias 4.0 tendem a ter mais efeitos positivos do que negativos sobre renda e emprego mundiais, embora possam gerar desigualdades.
Novos processos produtivos podem reduzir o trabalho humano por unidade de produção, mas isso deve ser mais do que compensado pelos efeitos positivos das CGV nos outros setores, atraindo trabalhadores de tarefas menos produtivas para tarefas de maior valor adicionado. Nesse sentido, é provável que novas tecnologias de produção continuem impulsionando o comércio.
Assim, seja para reduzir os impactos adversos das novas tecnologias, seja para reativar as CGV, em desaceleração desde 2008, potencializando seus efeitos positivos, se faz necessário um conjunto de políticas públicas. O Banco defende ações que promovam a abertura comercial, ampliem sua conectividade com o restante do mundo e estimulem a cooperação entre os países.
Como as CGV também podem levar a uma distribuição desigual dos ganhos do comércio, o Banco Mundial recomenda que os países fortaleçam seus sistemas de proteção social e ambiental. Algumas ações neste sentido:
• Apoio à formação e capacitação e à oferta de informações às pequenas e médias empresas para que se conectem às CGV;
• Apoio a pequenos produtores agrícolas, com serviços de extensão agrícola, instrumentos de gerenciamento de risco etc.;
• Políticas no mercado de trabalho para apoiar grupos prejudicados pelas mudanças estruturais: facilitar a mobilidade da mão de obra e o primeiro emprego, reforçar sistema de seguro-salário (como o bem-sucedido modelo de “flexigurança” da Dinamarca);
• Medidas ambientais, como precificar a degradação ambiental, incentivar inovações de bens e processos de produção “verdes”, tributar emissão de carbono etc.
Introdução: para entender as Cadeias Globais de Valor (CGV)
O novo relatório do Banco Mundial sobre Desenvolvimento – World Development Report 2020 – tem como tema central o comércio em torno das cadeias globais de valor (CGV): Trading for Development in the Age of Global Value Chains.
Seu objetivo é avaliar a contribuição das CGV para o crescimento, o emprego, redução da pobreza e da desigualdade e estimar seu impacto sobre o meio ambiente. Também avalia o papel das políticas nacionais e identifica deficiências no sistema internacional de comércio que prejudicam o comércio e a paz.
Define-se CGV como a série de estágios de produção de um bem ou serviço à venda para consumidores, em que cada estágio adiciona valor e ao menos dois deles são realizados em pelo menos dois países diferentes. As cadeias dividem o processo de produção entre os países e as empresas de modo hiperespecializado, ou seja, as empresas em diferentes países se especializam em uma tarefa específica e não produzem todo o produto.
As relações entre as empresas tendem a ser duradouras, o que pode promover a difusão de tecnologia e o acesso a capital e insumos ao longo das cadeias. A hiperespecialização pode impulsionar a eficiência, sendo condicionada a fatores não somente econômicos, mas também políticos. Existem estruturas de CGV que se parecem com teias de aranha, com variadas partes e componentes convergindo para a montagem de um bem. Existem outras que são mais lineares, que criam valor em estágios sequenciais.
A hiperespecialização e as relações entre as empresas nas CGV tem como fatores determinantes a geografia (localização do território, acesso ao mar, relevo e hidrografia, etc.), as dotações iniciais (como abundância ou escassez de trabalho, capital e recursos naturais), tamanho do mercado (dependendo, por exemplo, do tamanho da população e de seu nível de renda, bem como de padrões de consumo) e instituições (Estado, direitos de propriedade, contratos etc.).
Tais fatores se relacionam com as CGV por meio de políticas de abertura comercial, conectividade e cooperação. Para o Banco Mundial, as CGV impactam as taxas de crescimento e de desemprego, a desigualdade, a pobreza e o meio-ambiente, mas tais impactos são mediados por políticas de proteção social e ambiental.
O Banco Mundial lembra que a produção sempre se organizou em cadeias que não se resumiam às fronteiras dos países, mas que a internacionalização se acelerou entre 1990 e 2007 por conta do progresso das tecnologias de transportes, informação e comunicações (TIC), bem como da redução das barreiras comerciais.
Assim, a partir dos anos 1990 cresceu exponencialmente o número de usuários de internet (chegando a mais de 40% da população mundial em 2017 e de telefones fixos e móveis – de modo que número deste último já supera o de pessoas no mundo. Os custos de transporte tiveram queda notável nos anos 1960 e 1970, apresentando em seguida tendência de estabilização. Em particular, os custos de armazenamento em computadores e de ligação telefônica praticamente zeraram.
Desde os anos 2000, os acordos preferenciais de comércio crescem rapidamente, atingindo cerca de 280 em 2016. A OMC (Organização Mundial do Comercio) vinha angariando novas adesões de países ano após ano, até chegar em torno de 160. As tarifas foram se reduzido tanto em países desenvolvidos como em países em desenvolvimento, sendo cerca de menos de 5% nos primeiros e pouco mais de 5% nos segundos.
Para medir a participação nas CGV, o relatório adota a soma de dois indicadores das cadeias, para trás e para frente. O indicador para trás refere-se ao valor adicionado importado nas exportações brutas de um país. E o indicador para frente refere-se ao valor exportado por um país incorporado nas exportações de outros países, sobre o total exportado pelo primeiro. Utiliza-se a base EORA, da Universidade de Sidney, que cobre 190 países entre 1990 e 2015.
Assim, tomando-se as informações o comércio dos países do mundo, em 1970 o índice de participação nas CGV era de cerca de 38%, crescendo continuamente até atingir mais de 50% em 2008 – mantendo-se próximo a este patamar desde então, mas com expressiva queda em 2015.
A partir da crise financeira mundial de 2008, o comércio e as CGV desaceleraram, por fatores tais como:
1. Houve queda do investimento e da produção globais, com desaceleração principalmente na Europa e na China;
2. China e EUA passaram a contar mais com a produção doméstica para abastecer as próprias economias, com menores coeficientes de importação em relação ao PIB;
3. As tecnologias da automação e digitais causaram redução na demanda por mão de obra;
4. Acirrou-se a competição geopolítica e o protecionismo – principalmente na China e EUA;
5. Consolidação da fragmentação da produção nas regiões e setores mais dinâmicos.
Padrões de CGV de países e setores
Todos os países participam das CGV, mas com padrões de inserção diferentes. Alguns, por exemplo, atuam principalmente nos mercados de matérias-primas (ferro ou cobre), outros em insumos intermediários (borracha, plástico, componentes) e há quem se especializa em serviços (como financeiros, de transporte). Mais além, alguns países importam matérias-primas para processá-las e reexportá-las, outros importam insumos para montar produto final e reexportar, enquanto há aqueles que produzem bens e serviços complexos que alimentam as demais cadeias.
Com base no perfil das exportações, nos indicadores de CGV e de inovação (percentual de receitas com propriedade intelectual sobre o PIB e gastos com P&D sobre o PIB), o Banco Mundial classificou os países em 4 grupos principais: commodities, manufatura simples, manufatura avançada e serviços, e atividades inovativas. Essa tipologia permite perceber concentrações de perfis em diferentes regiões do mundo.
Os países de alta renda per capita do Leste Asiático (notadamente, Japão), Europa (diversos, como Alemanha, Inglaterra, França) e América do Norte (EUA e Canadá) em geral pertencem ao grupo especialista em atividades inovadoras. Na periferia destas regiões, os países são, na maioria, do tipo manufatura avançada e serviços (incluindo Índia, China, Polônia, Turquia e México). Já no grupo da manufatura simples encontram-se países da periferia mundial espalhados em todos os continentes, como Brasil, Argentina, África do Sul, Indonésia.
Por fim, no grupo das commodities, estão países ricos e pobres também de todos os continentes – sejam “commodities intensivo” (que inclui aqueles cuja parcela do setor primário no valor adicionado doméstico supera 40%, como muitos exportadores de petróleo e diamante, como Noruega, Emirados Árabes, Venezuela e Congo) ou “commodities limitadas” (que inclui aqueles cuja parcela do setor primário no valor adicionado doméstico está entre 20% e 40%, como Rússia, Austrália, Chile, Egito).
Contrastando-se a classificação dos países entre 1990 e 2015, observa-se que algumas economias conseguiram melhorar sua inserção nas CGV (upgrading). A Republica Tcheca, por exemplo, deixou de ser exportadora de manufatura simples passando primeiro para a manufatura avançada e, logo, para as atividades inovadoras.
Argentina, Costa Rica, Tanzânia, Indonésia e diversos países africanos evoluíram de exportadores de commodities à manufatura simples. China, Índia, Tailândia, Turquia, Portugal, foram das manufaturas simples às avançadas e serviços. Áustria, Israel, Itália, Espanha foram das manufaturas avançadas para as atividades inovadoras. Já o Brasil não apresentou progresso, permanecendo como exportador de manufaturas simples.
Os países que mais contribuíram para a intensificação das CGV foram Alemanha, EUA, Japão, Itália e França – aumentando fortemente a participação de importados em suas produções, enquanto a China atuou como polo ao mesmo tempo exportador e importador. Alemanha, EUA, Japão e China lideram o comércio nas regiões mais dinâmicas das CGV, que são a origem da maior parte do valor adicionado estrangeiro das diferentes regiões mundiais.
Em cada padrão de inserção nas CGV dos países existem conjuntos diferentes de produtos e serviços relacionados. Algumas dessas cadeias são bem extensas e se organizaram há décadas; outras, não. No primeiro caso, por exemplo, encontram-se as indústrias básicas, que exigem muitos recursos (são intensivas em capital) e fazem uso pesado de produtos primários importados - como químicos, petróleo refinado, metais básicos, borracha e plásticos. Desde 1995, apresentam alto índice para trás, tendo ampliado as cadeias de suprimentos ao longo do tempo. Por sua vez, cadeias como as de couro ou de têxteis mantiveram-se estáveis em termos de fragmentação nos últimos 20 anos, afinal desde os anos 1970 e 1980 já tinham se internacionalizado.
Entre as commodities, sua crescente participação nas cadeias mundiais esteve mais relacionada à expansão de escala proporcionadas pelo aumento da demanda e dos preços até princípios da década de 2010, do que à maior fragmentação das cadeias. Vale notar que a organização das cadeias agrícolas ainda é, em boa medida, doméstica, com uma governança pouco apoiada em cadeias globais.
Por fim, segundo o Banco Mundial, “os serviços são uma parte invisível, mas vital, das CGV”. Os processos de terceirização da globalização produtiva e financeira envolveram centenas de serviços industriais. Esta internacionalização se deu não somente no back office como call centers de empresas para a Índia, por exemplo, mas também nos serviços mais intensivos em conhecimento e capital, como transporte, telecomunicações e finanças. Aliás, desde 1995, as cadeias de serviços em si se tornaram mais fragmentadas mundialmente, principalmente construção e transporte.
Os serviços respondem por mais de 50% do valor adicionado das exportações da França, Alemanha, Itália, Reino Unido e Estados Unidos. Índia, Quênia e Filipinas também têm expansão rápida dos setores de serviços de TIC e negócios nas suas exportações. Na China, mais de um terço do valor adicionado em suas exportações provêm de serviços. Nos setores manufaturados, em média a participação dos serviços no valor adicionado comercializado passou de 31% para 43% entre 1980 e 2009.
Como dito, os principais determinantes dos padrões de inserção dos países e firmas nas CGV, de acordo com o relatório, são geografia, dotações de fatores, tamanho de mercado e instituições. Naturalmente, localizar-se nas regiões mais dinâmicas do globo (como visto, Europa, América do Norte e Leste asiático), incentiva integração as cadeias regionais. “Vencer a geografia” requer diferentes graus de investimento em conectividade.
Tomando-se as dotações de fatores, verifica-se que, não raramente, países com mão-de-obra pouco qualificada e que atraem capital estrangeiro participam do comércio internacional com altos indicadores para trás das CGV, com fábricas maquiladoras/ montadoras de produtos manufaturados simples. Já aqueles abundantes em recursos naturais geralmente tem altos indicadores para frente.
Mas, segundo o Banco Mundial, o mecanismo através do qual as dotações de fatores mais afetam a especialização produtiva e comercial são seus preços. De acordo com a estimativa do relatório para 87 países, baixos salários acarretam participação em CGV nas atividades de transformação relacionadas à montagem, principalmente no setor do vestuário.
Na medida em que os salários se elevam ao longo do tempo, como aconteceu na China, medidas auxiliares devem ser tomadas para melhorar a qualificação da força de trabalho e a intensificação de conhecimento e capital (em um ambiente macroeconômico e de políticas industriais favoráveis ao desenvolvimento tecnológico), de forma que as empresas desses países passem a participar de atividades mais sofisticadas das CGV.
Mas há que se considerar também o quão importante se faz a especialização comercial para a economia do país, dependendo de seu tamanho. Economias pequenas dependem mais de insumos importados e em geral dos ganhos de exportação como impulso para o crescimento. Já economias grandes, com mercado doméstico interno, frequentemente encontram na indústria e serviços domésticos os motores propulsores da dinâmica da renda e emprego.
Por fim, quanto às instituições, destaca-se que a celebração de acordos comerciais preferenciais de comércio, com melhorias nos procedimentos aduaneiros e estabelecer regras sobre direitos de propriedade contribuem para melhorar a qualidade de inserção dos países nas CGV. Neste tocante, poder-se-ia também mencionar a importância das relações de trabalho, do papel do Estado e suas políticas, das relações de poder interna e externas como determinantes da especialização comercial de cada país.
Impactos das CGV
Na visão do Banco Mundial, os mecanismos pelos quais as CGV promovem o desenvolvimento se desenvolvem a partir das suas “características definidoras”: hiperespecialização e as relações duradouras entre empresas. Isso porque promovem a difusão de tecnologia com eficiência, ao mesmo tempo que garantem acesso a capital e insumos que elevam a produtividade e a renda – gerando maior crescimento econômico do que propiciado pelo comercio fora das CGV.
De modo geral, os países integrados em CGV que mais cresceram nos 20 anos seguintes foram aqueles que deixaram de ser apenas exportadores de commodities e passaram para os grupos de maior sofisticação produtiva, a exemplo da exportação de produtos manufaturados simples – casos de China, Vietnã e Bangladesh etc.
De acordo com as estimativas apresentadas no relatório do Banco Mundial, o crescimento do PIB per capita acumulado em 20 anos foi de 57% nos países de manufaturados simples, sendo 48% para tipo de inserção em manufaturas avançadas e serviços e 32% em atividades inovadoras.
Ao alavancar renda e emprego, as CGV também reduziram a pobreza. Notadamente nos países em desenvolvimento, aprofundar a inserção em CGV promove mudança estrutural para atividades mais produtivas na indústria de transformação e nos serviços.
Mas para sustentar o crescimento e a redução da pobreza é necessário aprofundar a complexidade da inserção nas CGV para produtos manufaturados e serviços mais avançados, de preferência para atividades inovadoras – como vem investindo a China. Entretanto, tal evolução tende a enfrentar desafios em termos de qualificações, a capacidade técnica da força de trabalho, além de investimento em capital e tecnologia.
O crescimento do comércio também teve relação estreita com inovações tecnológicas que geraram novos produtos e mercados. Segundo estimou o Banco Mundial, 65% do comércio em 2017 se deu em categorias de bens e serviços que não existiam em 1992. A automação, principalmente nos países em desenvolvimento, provocou elevação das importações de peças e componentes – o que deveria vir acompanhado de uma dinâmica macroeconômica capaz de superar as dificuldades no balanço de pagamentos relacionados à restrição de divisas.
A automação reduziu a demanda por mão-de-obra e elevou a produtividade e a escala de produção, que por sua vez aumentou a demanda por importação de insumos, gerando outras oportunidades de emprego e renda. Essa é uma tendência geral nas CGV, segundo o Banco Mundial: os ganhos de produtividade e renda nas CGV são acompanhados de mais e melhores empregos, a despeito da produção se tornar mais capital-intensiva.
Assim, apesar das máquinas reduzirem trabalho humano por unidade de produção, são mais do que compensados pelos efeitos positivos das CGV nos outros setores, atraindo trabalhadores de tarefas menos produtivas para tarefas de maior valor adicionado. Nesse sentido, é provável que novas tecnologias de produção continuem impulsionando o comércio. Contudo, podem gerar desigualdades.
Por exemplo, a robotização tem causado desemprego e reduzido a participação da mão-de-obra na renda, mesmo com aumento da demanda de trabalho por pessoal qualificado. Isso pode se intensificar bastante no futuro com a revolução 4.0, de modo que até mais da metade do valor das exportações de países em desenvolvimento para países de alta renda pode ser substituído por robôs.
O mapa abaixo mostra as parcelas das exportações para países de alta renda sobre o total das exportações da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) ponderadas pelas parcelas de empregos nos setores dos bens exportados que são potencialmente substituíveis por robôs. O impacto estimado para o Brasil é de 11,5% a 17%.
Apesar do ciclo virtuoso de desenvolvimento, o engajamento em CGV tem gerado ganhos desiguais, piorando a distribuição de renda doméstica e internacional, entre cidades e regiões de cada território, entre grandes empresas e as menores, entre mão de obra qualificada e não qualificada, entre homens e mulheres no que se refere a oportunidades na carreira profissional, entre lucro e salários.
Neste último caso, o relatório do Banco Mundial aponta que entre 1995 e 2011, nos países de renda alta a parcela dos salários no PIB caiu de 57% para 55%, e de 52% para 42% para 41% nos países de renda média-baixa. Essa queda se deve principalmente à demanda mundial e às CGV.
Em geral, as grandes empresas multinacionais consolidaram margens e lucros cada vez maiores ao terceirizar partes e componentes para países em desenvolvimento – enquanto as margens dos produtores domésticos destes países apontaram redução, como aconteceu nas CGV de vestuário entre empresas dos Estados Unidos e da Índia. Por isso que outro desafio relevante nas CGV é aprimorar o sistema tributário internacional, principalmente em termos de transferência de lucros e sedes tributárias.
Finalmente, outro impacto negativo das CGV são o prejuízo ao meio-ambiente, por exemplo com o aumento das emissões de dióxido de carbono (CO2) no transporte, com o incremento do excesso de resíduos (sobretudo eletrônicos e plásticos) na forma das embalagens dos produtos, com maior exploração dos recursos naturais etc.
Por outro lado, os fluxos de conhecimento entre empresas das CGV podem disseminar técnicas de produção mais ecológicas, bem como a grande escala de empresas líderes pode acelerar inovações com preocupações ambientais, pressionando por melhores padrões de produção e de consumo mundialmente.
Políticas públicas para melhorar a contribuição do comercio em CGV para o desenvolvimento
Para cada um dos fundamentos mais importantes das CGV - dotações de fatores, geografia, tamanho do mercado e instituições -, o Banco Mundial ressalta a importância das políticas públicas para a ampliação e sofisticação da participação das empresas e países nas CGV, entre as quais:
Dotações de fatores:
• Atrair IDE, o que, entre outros fatores, exige ambiente de negócios favorável. Exemplo: Costa Rica, Malásia e Marrocos.
• Financiamento: melhorar acesso a bancos e ao investimento em capital.
• Qualificação e custos coerentes da mão de obra (o que requer evitar desalinhamento cambial). Exemplo: Bangladesh, Malásia.
Tamanho de mercado:
• Acesso a insumos, com redução de tarifas. Exemplo: Peru
• Harmonizar normatizações
• Acordos comerciais, com reformas das políticas sobre serviços (telecomunicações, finanças, transportes e outros serviços para empresas). Exemplos: Bangladesh, Honduras, Lesoto, Madagascar, Maurício e República Dominicana.
Geografia:
• Promover Infraestrutura, melhorando logística, alfândegas e fronteiras, promover a concorrência nos serviços de transportes e logística, e melhorar a estrutura portuária.
• Investir em conectividade via tecnologias da informação e comunicação.
Institucionais:
• Aspectos legais: proteger os direitos de propriedade intelectual, garantir execução dos contratos, fortalecer capacidade nacional de certificação
• Governança: estabilidade política e acordos de integração profunda.
Outras políticas mencionadas:
• Conectar pequenas e médias empresas nacionais com outras de mesmo porte nas CGV, principalmente via apoio à formação e capacitação e oferta de informações às principais empresas sobre oportunidades de fornecimento. Exemplos: Chile e a Guiné na mineração, Moçambique e Quênia na agricultura, República Tcheca nos setores eletrônico e automotivo.
• Apoiar pequenos produtores agrícolas, por exemplo, com serviços de extensão agrícola, acesso a instrumentos de gerenciamento de risco (como seguros) e coordenação de ações para aumentar escala organizando produtores.
• Políticas para o mercado de trabalho para apoiar trabalhadores prejudicados por mudanças estruturais; assegurar o cumprimento da regulamentação trabalhista. Exemplos: facilitar a mobilidade da mão de obra e o primeiro emprego, sistema de seguro-salário (como o bem-sucedido modelo de “flexigurança” da Dinamarca, que restringe pouco a contratação e a demissão, mas apoia trabalhadores com subsídios de desemprego e programas ativos para o mercado de trabalho).
• Medidas ambientais. Exemplos: precificar a degradação ambiental, incentivar inovações de bens e processos de produção “verdes”, reduzir distorções criadas pelos subsídios à energia e à produção que prejudicam o meio-ambiente, tributar o carbono.
O Banco Mundial em seu relatório justifica a necessidade de cooperação internacional, haja vista as turbulências atuais. Menciona que, como existe um “vínculo indissociável” entre o investimento estrangeiro e as CGV, a cooperação contribui para um ambiente propício para o investimento, com regras seguras.
Mas, “se o conflito comercial se agravar e causar uma queda na confiança dos investidores, os efeitos sobre o crescimento mundial e a pobreza poderão ser significativos — mais de 30 milhões de pessoas poderão ser empurradas para a pobreza (medida como níveis de renda inferiores a US$ 5,50 por dia), e a renda mundial poderá cair em até US$ 1,4 trilhão”.
Por isso, defende aprofundar a cooperação comercial tradicional e também estendê-la para políticas de tributação, regulamentação e infraestrutura. No caso da cooperação tradicional, o Banco Mundial prega a liberalização em termos bem amplos, principalmente no comércio de gêneros agrícolas e de serviços, que são em geral mais protegidos.
Já no caso das novas práticas de cooperação internacional, o primeiro desafio é melhorar a tributação do capital, tão complexa no cenário de CGV onde as empresas são globais, ampliam ativos intangíveis e transações internas às companhias, mas externas aos países. Por isso propõem-se a harmonização da declaração financeira e uma abordagem conjunta para realizar tributação baseada no destino – o que dificultaria transferência de lucros. É preciso garantir, ainda, segurança digital, concorrência justa e investimento em infraestrutura.