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Carta Capital
A política fiscal tenta engolir o desenvolvimento, ao contrário do que ocorre no mundo avançado
Carlos Drummond
Lançado em janeiro por Lula, o Nova Indústria Brasil, programa que pretende conter a desindustrialização crônica e assegurar competitividade às empresa brasileiras, está alinhado às políticas econômicas dos países desenvolvidos, descritas em estudo recente do Fundo Monetário Internacional. A iniciativa já mostra avanços, apesar de apresentar problemas de execução, a exemplo das dificuldades excruciantes impostas pela política fiscal extremamente restritiva, apontam economistas.
O documento Expandindo Fronteiras: Políticas Fiscais para Inovação e Difusão Tecnológica, divulgado pelo FMI, circulou no meio acadêmico e foi tema de uma publicação do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial. O estudo é um reconhecimento de que a política industrial, que sempre foi importante, se fortalece no mundo em uma etapa em que os desafios para consolidação concorrencial e empresarial de médio prazo estão em aberto, no contexto da disputa China versus EUA, seguidos de Alemanha, Coreia e Japão.
“Estão todos fazendo política industrial porque buscam reposicionar-se numa nova rodada de acumulação de capital de configuração ainda indefinida. Fica claro que quem não faz política industrial está fora do jogo”, alerta o economista José Augusto Gaspar Ruas, professor da Facamp. O texto do FMI traz a ideia de que a política fiscal ganha importância. O primeiro aspecto a considerar, sublinha Ruas, é que a reforma tributária aprovada no Brasil é pró-indústria, ou seja, traz perspectivas de um cenário melhor por criar um contexto em que a carga tributária e a bitributação serão reduzidas nesse setor. Além disso, há alguns instrumentos na área fiscal, como a Lei do Bem, e outros mecanismos de subvenção que foram criados e funcionam, organizados pelo Estado brasileiro para promover a inovação.
“A questão é como articular a pesquisa básica com a produção de uma tecnologia que seja transferida e apropriada pelo setor produtivo nacional. Isso é o mais difícil e depende muitas vezes da presença de grandes empresas capazes de absorver essa tecnologia de modo proprietário. Os países desenvolvidos montam programas setoriais articulados com as suas grandes empresas. No Brasil, parece que se pretende fazer política de inovação sem ter grandes empresas”, dispara o professor da Facamp. O que acontece, acrescenta Ruas, é que se constrói uma companhia de base tecnológica, ela é comprada por uma firma estrangeira e essa tecnologia criada no País vira propriedade de alguém em um país desenvolvido. A consequência é uma baixa capacidade de difusão dessa tecnologia no nosso território.
A maldição criada sobre as grandes empresas, não só as estatais, é uma peculiaridade brasileira insuflada pela Lava Jato, aponta Ruas. A ideia das “campeãs nacionais” do BNDES foi malhada até o seu túmulo, mas, apesar dos seus equívocos, tinha muitos pontos corretos. O histórico dos países asiáticos, e mesmo o dos europeus, nos anos 1990, mostra que todos fizeram políticas deliberadas de consolidação de grupos locais, nacionais e regionais na Europa, com fusões entre eles, para constituirgrandes grupos com possibilidade de disputar os setores globalmente.
Sem essas empresas, não há como articular a produção com a apropriação em larga escala internacionalizada. Em consequência da Lava Jato, sublinha o economista, “hoje todos os documentos oficiais contêm a ressalva de que não se pode personalizar, que é indispensável fazer formulações para todas as empresas. A chance de isso dar certo é menor”. A nossa sorte, prossegue Ruas, é ainda termos grandes grupos nos setores de petróleo, energia e farmacêutico, que é parte do complexo econômico-industrial da saúde, um subproduto também das políticas anteriores. O FMI fala da importância não só da política industrial, mas também da pesquisa básica, e é preciso levar em conta que seu financiamento é quase totalmente público. Apenas o financiamento à pesquisa, entretanto, não resolve, é preciso articular isso com as empresas, observa o economista Saulo Abouchedid, professor da mesma faculdade.
A área da saúde ganha destaque no Nova Indústria Brasil e é um exemplo de realização das perspectivas trazidas por esse programa. O Estado vai conectar o seu poder de compra do SUS entre a empresa nacional e a estrangeira. A garantia de aquisição de determinado medicamento estimula a fabricante estrangeira detentora de tecnologia a transferir a mesma para uma empresa nacional que irá desenvolvê-la. As Parcerias de Desenvolvimento Produtivo, que já existiam, são um recurso de política industrial que visa transferir tecnologia e situa o desenvolvimento tecnológico em parcerias entre empresas.
O incentivo estatal às “campeãs nacionais”, malhado até o túmulo a partir da Lava Jato, tinha muitos acertos “Não é um desenvolvimento tecnológico solto. A saúde já tinha essas parcerias desde 2009, houve um período muito crítico depois de 2015, o governo Bolsonaro abandonou as políticas de desenvolvimento tecnológico na saúde. Isso voltou com todo ímpeto no atual governo, com a Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação”, ressalta Abouchedid.
A partir da contestação chinesa à liderança ocidental na crise de 2008, dos limites do modelo liberal, da falta de resiliência nas cadeias mostrada pela pandemia e pela guerra na Ucrânia, ficou mais clara a necessidade de recolocar a indústria no centro, diz o economista Antônio Carlos Diegues, professor do Instituto de Economia da Unicamp. Foi nesse contexto que a indústria e a política industrial voltaram com força. “Cria-se uma percepção de que a política industrial é um instrumento para a sobrevivência dos Estados no longo prazo, como sempre foi, é óbvio, mas agora isso fica mais explícito, na retórica, dadas as ameaças mencionada.”
O problema, ressalta o professor da Unicamp, é que países centrais e órgãos multilaterais estão embebidos numa ideia de que a política industrial, tecnológica, de inovação, é muito complexa, tem de ser muito benfeita, e utilizam a retomada dessas políticas nesses países como uma forma de negá-las em outros países. Há um preconceito de que essas políticas não são adequadas para os países emergentes, que não conseguem fazer direito, têm corrupção, ineficiência, aquele discurso convencional. E ajuda a explicar por que há tanta oposição à política industrial, em contraposição a uma política fiscal, que seria mais austera.
Nesse sentido, sublinha Diegues, a política fiscal tem de ser aderente, dentro de alguns limites, a uma política industrial e tecnológica de longo prazo, porque é uma das dimensões para financiar o investimento, que é instrumento da inovação e da transformação. Isso se faz com incentivo tributário, crédito financeiro, mas também tem um impacto das expectativas em geral. O país não pode ter uma situação fiscal descontrolada, ou percebida como tal, pois isso também impacta o investimento.
Uma segunda dimensão do impacto da política fiscal na política industrial e na inovação é o financiamento de programas de Estado, não de governo. É a ideia que os países avançados e a China realizam muito bem, de ter alguns programas que perpassam os governos. “Por exemplo, programas de financiamento à atualização produtiva e tecnológica e modernização das pequenas e médias empresas, que é o que temos agora no programa Brasil Mais Produtivo, turbinado com a nova política industrial. Só que os EUA têm isso há décadas”, diz o economista. Esse é um programa necessário e é preciso ter uma política fiscal compatível.
Diegues considera mais difícil ter legitimidade em outros setores, como Inteligência Artificial ou inovação verde, junto à população, porque os efeitos são de longo prazo, mas há menos restrições internacionais devido à janela de oportunidade pós-pandemia, que o País tem de aproveitar no sentido de estabelecer parcerias entre as empresas nacionais, multinacionais, laboratórios de pesquisas, SUS, e incentivar a transferência de tecnologia e construir capacitações.
“Temos as tecnologias para as áreas de energia eólica e solar, que funcionam muito bem. A tecnologia a gente não domina em solar, que é mais complicada. Desde 2003, com um programa de leilões direcionados no governo Lula, para incentivar essas tecnologias, criou-se um mercado relevante em eólica, e também em solar, que já tem um impacto bastante significativo na descarbonização”, observa Diegues. “Quanto aos automóveis, há a ideia do híbrido flex, que tem uma pegada de carbono menor, e foi bem desenhada, no Nova Indústria Brasil, toda a política de transição para os veículos elétricos, com mecanismos de incentivo para a nacionalização, para pesquisa e desenvolvimento, para investimento em determinadas áreas, crédito financeiro para investimento. Isso está dando resultado, é só olhar os investimentos no setor de automóveis para os próximos anos.”
O economista observa, ainda, a existência de problemas concretos que dificultam o avanço do programa: “Algumas coisas estão muito mais complicadas do que nos governos Lula anteriores. A primeira é o estigma sobre a política industrial como um todo e sobre as grandes empresas nacionais, execradas por conta da Lava Jato. A segunda é essa agenda fiscal atroz, a amarrar as iniciativas de investimento e de articulação desse gasto público, que poderia funcionar como demanda para iniciativas da política industrial nessas missões. Por mais que o governo empenhe maior energia hoje e tenha mais conhecimento, ele tem muito mais restrições do que tinha no passado para articular uma política industrial com inovação”.