Carta IEDI
Pandemia, comércio e cadeias globais
A OCDE analisou os impactos da pandemia de Covid-19 sobre o comércio mundial e as cadeias globais de suprimento em 2020 e 2021 no documento recentemente divulgado sob o título “O impacto da COVID-19 sobre as direções e a estrutura do comércio internacional”, ao qual esta Carta IEDI faz referência.
Os dados do estudo mostram que, apesar da heterogeneidade na profundidade e velocidade dos efeitos da pandemia sobre os diferentes países e setores, em geral, a maioria superou o colapso do primeiro semestre de 2020 e exibiu posterior retomada.
No comércio de bens, os setores mais negativamente afetados foram combustíveis, aeronaves, automóveis, maquinaria mecânica, aço, enquanto equipamentos de proteção individual, produtos farmacêuticos, alguns alimentos, eletrodomésticos e eletrônicos apontaram crescimento no ano passado. Em 2020, as exportações de serviços caíram -16,7% em valor e recuperam-se a um ritmo mais lento do que o comércio de mercadorias, cuja queda foi de -8,2%.
Bastante pressionadas no início de 2020, as cadeias de suprimento globais foram fundamentais para a retomada do comércio internacional, segundo a OCDE, em que se pese a célere e robusta recuperação chinesa. A OCDE aponta que indústrias com exportações mais especializadas geograficamente tiveram quedas mais acentuadas no primeiro semestre de 2020, mas também as retomadas mais rápidas no semestre seguinte.
Em particular, semicondutores (circuitos integrados eletrônicos e micro conjuntos) registraram rupturas expressivas nos momentos iniciais da recuperação, impondo gargalos já no final de 2020 em setores-chave, como o automobilístico. O aumento da demanda relacionada a "bens de consumo duráveis", como televisores, consoles, aparelhos e equipamentos de informática, também geraram pressão. Vale lembrar que 2019 foi um ano fraco nesse setor por causa das tensões entre EUA e China, devido à disputa pelo 5G, com a Huawei no centro da questão.
Mudanças na estrutura e direção do comércio ocorreram igualmente em função de rupturas significativas no setor de logística e transporte. Não havia containers suficientes disponíveis “no porto certo no momento certo”. Por isso, apesar da baixa demanda, alta capacidade ociosa na indústria de transporte marítimo e preços historicamente baixos do petróleo bruto, nos momentos mais críticos da pandemia ocorreram perturbações significativas no transporte internacional.
Em 2021, o problema ainda não foi equacionado e as taxas globais de frete marítimo atingiram recentemente os níveis mais altos desde 2009. Com o setor de aviação longe de estar totalmente normalizado, o frete aéreo permaneceu mais caro do que antes da pandemia.
A OCDE conclui que a heterogeneidade sem precedentes das mudanças nos fluxos comerciais de bens e serviços entre origens e destinos sugere alta incerteza e elevados custos de ajuste nas cadeias de suprimentos. Implica, portanto, a necessidade de incentivos para empresas e governos adotarem novas estratégias de mitigação de riscos ou aprimorarem as atualmente vigentes.
Panorama geral: diferenças no impacto da COVID-19 sobre o comércio internacional
Em setembro de 2021, a OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) publicou o policy paper n. 252 intitulado “O impacto da COVID-19 sobre as direções e a estrutura do comércio internacional”, em que demonstra as consequências da pandemia de Codi-19 para os fluxos mundiais de bens e serviços até maio de 2021.
Estima-se que houve queda de 3,5% no PIB real mundial e de 8,5% no volume de comércio de bens e serviços em 2020, sendo que o volume da produção da indústria mundial caiu 4,3% e o comércio mundial de mercadorias 5,3%.
Os fluxos das trocas internacionais enfrentaram pressões heterogêneas de demanda e oferta, protecionismo, alterações de custos decorrentes do fechamento temporário das fronteiras, restrições às viagens dos passageiros e rupturas na capacidade de transporte.
Assim, os impactos sobre o comércio mundial em 2020 foram diferentes entre regiões, países, produtos e períodos, revelando alguns gargalos inéditos nas cadeias de fornecimento.
Mas apesar do choque inicial, os volumes do comércio mundial em 2020, especialmente de bens, recuaram menos do que inicialmente esperado (chegou-se a projetar queda de 13%), sendo que algumas indústrias até apontaram ganhos.
Vale lembrar que, em termos gerais, o comércio internacional de mercadorias já vinha crescendo lentamente antes mesmo da pandemia, quando sofreu colapso temporário. Depois dos piores momentos da pandemia, a recuperação veio em forma de “V”.
A OCDE explica que, no segundo semestre de 2020, a retomada do comércio e da produção da indústria mundial foi veloz devido aos efeitos combinados de uma redução nos atrasos nas cadeias de abastecimento e logística e da liberação da demanda reprimida por bens duráveis, acumulada durante os lockdowns da primeira metade do ano.
Em termos comparativos, o declínio inicial e a subsequente recuperação no comércio internacional de mercadorias foi condicionado pela dispersão geográfica da pandemia, seu grau de severidade e pela qualidade das medidas de contenção do vírus.
Destaca-se, neste caso, a recuperação das exportações chinesas de manufatura, que já em julho de 2020 assinalavam taxas de crescimento interanuais positivas. Atingiram o pico histórico de 40% em fevereiro de 2021, com ajuda de uma base baixa de comparação, já que em fev/20 passava por importante surte de Covid-19. Em contraste, as exportações de bens do Japão só recuperaram em novembro de 2020 e as da Área do Euro e dos Estados Unidos ainda eram negativas em janeiro-fevereiro de 2021.
Nas regiões emergentes, o crescimento das exportações industriais em 2020 também seguiu perfis contrastantes. A Europa Oriental foi a única no grupo que elevou sua participação nas exportações mundiais, com crescimento anual positivo. A Ásia emergente (excluindo a China) conseguiu terminar o ano mantendo sua parcela nas exportações mundiais de bens, apesar do declínio acentuado no primeiro semestre.
Analisando-se o comércio mundial por tipos de bens, também se verificam fortes contrastes nas variações em valor significativamente relacionados aos desdobramentos da pandemia. Assim, o comércio de produtos farmacêuticos cresceu 12% em valor, enquanto “outros artigos têxteis confeccionados”, por incluir máscaras e outros artigos de equipamentos de proteção individual de base têxtil, cresceu 110% em 2020.
Também apontaram crescimento em 2020 categorias como óleos animais e vegetais (14%), sementes e frutos oleaginosos (14%), cereais (9%) e açúcar (8%), produtos químicos diversos (9%), pedras e metais preciosos (16%), máquinas e equipamentos elétricos e eletrônicos (+5%).
Por outro lado, as quedas em 2020 do comércio internacional mais acentuadas em valor foram combustíveis minerais, óleos e produtos do petróleo (-31%), veículos e peças de aeronaves (-34%), veículos e peças (-14%) e ferro e aço (-13%). Em particular, preços do petróleo foram bastante atingidos na pandemia.
Mas enquanto a queda em valor do comércio mundial de bens em 2020 foi de 8,2%, a de serviços chegou a 16,7%. Além disso, o intercâmbio mundial de serviços apresentou recuperação mais lenta, de acordo com os dados disponíveis, puxado principalmente pela retração em viagens e, em menor grau, transporte. Estas são as duas principais categorias de serviços comercializados internacionalmente e os que mais sofreram com as restrições da Covid-19 sobre fluxos internacionais de pessoas e de bens.
Altos e baixos das cadeias globais de suprimentos
Com a pandemia, produtos e serviços sofreram alterações expressivas nas forças de oferta e demanda, a ponto de muitas não terem sido acomodadas. Em um extremo, diversos setores enfrentaram a formação de inventários indesejados e capacidade ociosa, enquanto, no outro extremo, houve escassez.
Algumas avaliações iniciais sugeriram que a alta especialização em cadeias de suprimentos internacionais, gerando concentração geográfica do comércio, criaram gargalos e agravaram a crise econômica de 2020. Mas outras defenderam que, embora a concentração do comércio seja bastante alta para alguns produtos, a dispersão internacional das cadeias de fornecimentos também ajudou a enfrentar os choques.
Neste estudo, a OCDE demonstra que indústrias com exportações mais concentradas tiveram quedas mais acentuadas no primeiro semestre de 2020, mas também as recuperações mais rápidas no semestre seguinte. Este resultado foi certamente influenciado pelos diferentes momentos da dispersão geográfica da Covid-19, enquanto a China controlava a situação.
O importante papel da China, e de outros países asiáticos como fornecedores durante a pandemia da Covid-19 pode ser ilustrado pelo exemplo do setor de máquinas e equipamentos elétricos e eletrônicos, cujas exportações em valor cresceram 4,6% em 2020. Antes da pandemia, tal setor era um dos mais concentrados: quase 30% das exportações mundiais provinham da China e outros 40% do Leste Asiático e Pacífico (excluindo a China).
Nos primeiros três meses de 2020, fornecedores da Ásia Oriental e do Pacífico, mas também do Sul da Ásia, substituíram os da China e Europa nos primeiros três meses de 2020. Em abril e maio de 2020 houve declínio em todas as regiões fornecedoras, mas as exportações do Leste Asiático e Pacífico, e também da China, recuperaram-se mais cedo do que as de outras regiões. Já em junho, estas regiões registraram nível de exportações superior ao mesmo período do ano anterior. Ao final de 2020, os fornecedores de todas as regiões apontaram crescimento: Ásia Oriental e Pacífico (8,4%) e Ásia do Sul (8,1%), Europa (5,2%) e a China (2,6%).
Em particular, semicondutores (circuitos integrados eletrônicos e micro-conjuntos) registraram rupturas expressivas, com gargalos de demanda se materializando ao final de 2020 em setores-chave, como o automobilístico. O aumento da demanda em 2020 foi inicialmente relacionado aos "bens de consumo duráveis", como televisores, consoles, aparelhos e equipamentos de informática, além de estímulos de governos. Vale lembrar que 2019 foi um ano fraco nesse setor por causa das tensões entre EUA e China relacionados à disputa pelo 5G, com a Huawei no centro da questão.
Mas mesmo com as quedas das exportações mundiais de semicondutores entre abril e junho de 2020, no segundo semestre as taxas de crescimento eram positivas para vários países asiáticos (sendo acima de 20% para Taiwan, Filipinas, Malásia). Os desempenhos das exportações dependeram da carteira de produtos de cada país, pois existem chips de alta e baixa qualidade, tais como os chips de memória padrão ou aqueles usados em veículos motorizados, respectivamente.
De modo geral, o valor das exportações dos dez maiores fornecedores elevou-se 11,5% em 2020 em relação a 2019, com continuidade do rápido crescimento em 2021. Entre os principais exportadores, apenas Alemanha e Holanda tiveram taxas de crescimento negativas em 2020, mas já revertidas neste ano.
Por outro lado, como exemplo de indústria com expressivas perdas em 2020, tem-se veículos e peças, cujas exportações mundiais caíram 14% em valor. Houve queda na demanda de automóveis de passageiros em função das medidas de isolamento e restrição da mobilidade, afetando o comércio de peças e componentes de sua cadeia de valor.
No decorrer de 2020, as exportações de produtos finais de automóveis pelos países do G7 caíram a pique, enquanto as de peças ou componentes diminuíram menos rapidamente - mas também, na sequência, se recuperaram mais velozmente.
Estas mudanças na estrutura e direção do comércio ocorreram não apenas no contexto de surtos de demanda e restrições de abastecimento, mas também durante um período de rupturas significativas no setor de transporte internacional.
O modo de transporte utilizado para exportar os diferentes produtos depende, entre outras coisas, do prazo de entrega exigido, do tamanho, do valor e de preços específicos das rotas dos diferentes modos de transporte. Tais preços são determinados pela demanda, custos (incluindo combustível) e das restrições de capacidade.
Produtos para rotas longas, por exemplo, aquelas ligando a China e a Europa, ou o Brasil e os EUA, bem como produtos pesados e volumosos, tais como ferro e aço ou móveis, tendem a ser transportados por via marítima. Já os produtos de maior valor, baixo peso e tamanho, como eletrônicos ou equipamentos de alta precisão, são transportados tanto por via marítima como aérea.
Assim, a indústria marítima está no núcleo das cadeias globais de valor e por isso sua demanda despencou no primeiro semestre de 2020. No entanto, apesar de baixa demanda, capacidade ociosa na produção e preços historicamente baixos do petróleo bruto, as taxas globais de frete continuaram a aumentar, e recentemente atingiram os níveis mais altos desde 2009.
A partir de meados de 2020, com o reaquecimento do comércio global, principalmente em torno de bens de consumo produzidos na Ásia, a demanda pelo frete oceânico cresceu. Porém, não havia containers suficientes disponíveis “no porto certo no momento certo”, confluindo com gargalos de logísticas em terra em parte devido à Covid-19, de modo que as tensões no mercado aumentaram e, consequentemente, as tarifas de frete marítimo.
Por sua vez, a indústria global de carga aérea também assinalou queda acentuada no primeiro semestre de 2020 e, em seguida, recuperação dos volumes de frete internacional. De acordo com dados da IATA, as transportadoras sediadas na América do Norte e África retomaram negócios mais aceleradamente do que as da Ásia, Oriente Médio e Europa. Por fim, as companhias aéreas latino-americanas ainda estavam operando em níveis cerca de 30% abaixo do volume de carga de dois anos atrás quando o estudo foi realizado (maio 2021).
As tarifas de frete aéreo atingiram seu auge em meados de 2020, quando a maioria dos voos internacionais e domésticos de passageiros foi restringida, ao mesmo tempo que veio a súbita necessidade de transportar rapidamente equipamentos de proteção pessoal, produtos farmacêuticos e outros produtos essenciais. As companhias aéreas transformaram aviões de passageiros ociosos em cargueiros temporários, e assim continuou durante as restrições relativas à segunda onda da Covid-19 ao final de 2020.
Em que se pesem as especificidades das rotas e tipos de produtos transportados, a OCDE afirma que as taxas de carga aérea permanecem mais caras do que antes da pandemia, particularmente as das rotas entre Europa e a América do Norte. Destacadamente, houve diversos bloqueios nos hubs de carga aérea da América do Norte e da Europa em 2020 devido ao tráfego de passageiros abaixo da capacidade, custos mais altos de manuseio de carga transportada por aviões de passageiros e problemas de pessoal devido às medidas de mitigação Covid-19.
Assim, índices de tráfego aéreo bilateral, construídos utilizando dados de partida de voos programadas, mostram que ao final de 2020 as rotas transatlânticas ainda operavam usando apenas cerca de 40% da capacidade, enquanto as que envolviam a China já operavam em 60% da capacidade.
Tendências futuras
Apesar da incerteza sobre a perenidade dos ajustes impostos pela pandemia no comércio e nas cadeias de valor globais, sua rápida recuperação a partir do segundo semestre de 2020 e as expectativas de contenção da Covid-19 em 2021 sugerem que não devem ser significativos a longo prazo.
Por enquanto, os ajustes continuam necessários, já que a pandemia ainda não terminou e, logo, devem permanecer medidas que perturbam os fluxos de bens, serviços e pessoas, como restrições às viagens internacionais e ao comércio de certas mercadorias. Entretanto, não podem ser desprezados o risco de pandemias semelhantes no futuro.
Portanto, as empresas estão investindo em estratégias de mitigação de risco, como a automação para poupar mão-de-obra, a gestão conservadora de estoques, a diversificação ou reestruturação da produção e da cadeia de abastecimento voltada à nacional ou regionalização para reduzir exposição a rupturas internacionais na oferta ou na demanda e nos mercados de transporte.
Finalmente, como a renda, a poupança e as preferências dos consumidores também foram significativamente afetadas, não está claro como serão os desdobramentos no longo prazo da crise econômica que atingiu os países de forma bastante heterogênea. Assim, os governos tem uma tarefa desafiadora de avaliar o redimensionamento das estruturas produtivas e comerciais causado pela pandemia no médio e longo prazo, para estabelecer políticas de comércio e investimentos eficientes para os mercados e para a qualidade de vida da população.