Carta IEDI
As contas externas do Brasil em 2021 e os efeitos da guerra da Ucrânia
Apesar dos progressos obtidos, a economia brasileira encerrou 2021 ainda sob efeito da pandemia de Covid-19, não apenas do ponto de vista do seu nível de atividade, mas também em suas relações com o restante do mundo. Esta Carta IEDI analisa as contas externas do país no ano passado, sinalizando os avanços e observando a parcialidade em que ocorreram.
Nossas transações correntes registraram déficit em 2021 no valor de US$ 28.110 milhões, implicando um avanço de 14,8% frente a 2020. Ainda assim, o resultado do ano passado foi bem menor que os patamares registrados no biênio anterior à crise provocada pela pandemia do Covid-19.
Já a entrada de recursos externos na conta capital e financeira, que financia o déficit de transações correntes (DTC), também não retornou aos valores pré-crise. Atingiu US$ 32.392 milhões em 2021, isto é, mais de 3 vezes superior ao valor de 2020, mas distante dos US$ 63.988 milhões em 2019. O IDE, que é a modalidade mais estável de capital externo, foi mais do que suficiente para financiar o DTC em 2021.
O déficit nas transações correntes foi reflexo da recuperação das economias global e brasileira após os choques da Covid-19. O crescimento de +66,8% do nosso superávit comercial de bens e serviços (US$ 19.027 milhões) não foi suficiente para compensar o maior déficit nas rendas primárias (remessas de juros, lucros e dividendos), que chegou a US$ 54.471 milhões (+31,9% ante 2020). Disso resultou o reforço do DTC.
O ingresso líquido de IDE aumentou +23%, atingindo US$ 46.441 milhões. Esse resultado, contudo, pode ser considerado decepcionante. Isso porque, além de não ter retornado aos patamares de 2019, ficou abaixo do desempenho do IDE global. O crescimento dos fluxos mundiais de IDE chegou a +77% em 2021 e mesmo o IDE direcionado apenas para os países em desenvolvimento registrou um avanço mais forte que no caso do Brasil: +30%.
A recuperação dos investimentos de portfólio estrangeiro (IPE) foi muito bem mais expressiva, somando US$ 20.858 milhões, a maior cifra desde 2014. A maior contribuição para a retomada destes investimentos veio das aplicações de não-residentes em títulos soberanos de renda fixa no país estimulada pelo aumento da taxa de juros doméstica.
A modalidade “Outros Investimentos no país” registrou, igualmente, uma forte recuperação, passando de uma saída de capitais de US$ 20.826 milhões em 2020 para uma captação líquida de recursos de US$ 36.061 milhões associada ao forte crescimento dos “créditos comerciais e adiantamentos” em linha com retomada do comércio exterior e à captação líquida de empréstimos bancários estimulada pelas taxas de juros historicamente baixas nas economias avançadas.
Traçar perspectivas para o desempenho do setor externo brasileiro em 2022 se mostra uma difícil tarefa no contexto internacional atual. As projeções das instituições multilaterais para o crescimento da economia global em jan/22 oscilavam entre +4,1% para o Banco Mundial, +4,4% para o FMI e +4,5% para a OCDE (em dez/21). Com a eclosão da guerra, esses cenários se tornaram excessivamente otimistas.
Não há dúvidas de que o conflito abalará fortemente a recuperação da economia global da pandemia do Covid-19, podendo inclusive levar a um double-dip, ou seja, a uma nova recessão em 2022. Em mar/22, a OCDE esperava queda de 1,0 ponto percentual do crescimento do PIB mundial em 2022 e alta adicional da inflação de 2,5 p.p. em função da guerra (em dez/21 previa +4,2%).
Como nos episódios anteriores de choque externo, o principal canal de contágio sobre as economias de mercado emergente (EMEs) como a brasileira é o canal financeiro, ou seja, a deterioração das condições financeiras internacionais devido ao aumento da aversão aos riscos dos investidores globais e o resultante movimento de fuga para a qualidade, que resulta na alta dos spreads e do custo da captação externa.
Entretanto, no caso do choque atual, ao menos nestes primeiros momentos, esse canal se manifestou em menor intensidade do que na crise financeira global de 2008 (CFG) e na crise do Covid-19. Além disso, a diferenciação entre as EMEs foi maior devido ao impacto desse choque sobre outro canal de contágio, os preços das commodities.
A guerra provocou uma alta nas cotações das commodities que beneficia as EMEDs exportadoras desses bens, como o Brasil, as quais foram relativamente poupadas do contágio financeiro até o momento. Além do menor aumento dos spreads dos títulos soberanos, alguns investidores globais anunciaram metas de aumentar a exposição em ativos dessas economias, incluindo a brasileira.
No caso do Brasil, além de seu peso na produção e exportação global de commodities e de seu distanciamento geográfico do epicentro dos conflitos armados, a elevada taxa de juros doméstica (Selic) vis-à-vis outros países constitui um atrativo adicional para os investidores globais compensarem as perdas com suas aplicações em ativos financeiros russos.
Todavia, esse impacto inicial relativamente favorável pode não ser duradouro. A intensificação e/ou prolongação do conflito pode reforçar o canal financeiro, levando a uma liquidação indiferenciada dos ativos emitidos pelas EMEs e uma saída generalizada dos investimentos de portfólio, como observado no ápice da crise do Covid-19 em mar/20 e na CFG de 2008.
Uma forte desaceleração ou uma recessão da economia global em 2022 resultará numa perda de ritmo muito mais expressiva do comércio global do que o previsto pelo FMI no cenário de jan/22 (de +9,3% em 2021 para +6% em 2022), o que terá efeitos negativos sobre o volume das exportações brasileiras, afetando, principalmente, as vendas externas de manufaturados.
O ponto de interrogação é se a alta dos preços das commodities será suficiente para mais do que compensar o eventual menor volume exportado de manufaturados, resultando num aumento ou atenuando a queda do valor total de nossas exportações em 2022.
Introdução
Esta Carta IEDI analisa, na primeira seção, os resultados das contas externas brasileiras em 2021, destacando o impacto da precária recuperação da economia mundial após a crise da Covid-19. As perspectivas para 2022 são apresentadas na segunda seção.
O desempenho das contas externas do Brasil
O déficit nas transações correntes (DTC) da economia brasileira somou US$ 28.110 milhões em 2021. Embora 14,8% superior à cifra de 2020 (US$ 24.492 milhões), o resultado do ano passado ainda foi bem menor que os patamares registrados no biênio anterior à crise provocada pela pandemia de Covid-19 (US$ 51.457 milhões em 2018 e US$ 65.030 milhões em 2019).
A entrada de recursos externos na conta capital e financeira também não retornou aos valores pré-crise (US$ 51.899 milhões em 2018 e US$ 63.988 milhões em 2019), mas atingiu US$ 32.392 milhões, mais de 3 vezes superior ao valor de 2020 (US$ 8.332 milhões). Essa entrada superou o DTC em US$ 4.282 milhões, abrindo espaço para a retomada das compras de moeda estrangeira no mercado de câmbio pelo Banco Central do Brasil (BCB) após dois anos de redução. Contudo, o BCB atuou no sentido contrário, vendendo liquidamente cerca de US$ 12 bilhões no mercado de câmbio à vista.
As reservas cambiais, todavia, aumentaram de US$ 356 bilhões em 2020 para US$ 362 bilhões em 2021 graças ao aumento da posição em Direitos Especiais de Saque (DES) em US$ 15,4 bilhões decorrente da alocação recorde de DES pelo Fundo Monetário Internacional em agosto de 2021 – uma das iniciativas da comunidade internacional para atenuar o impacto da crise da Covid-19 sobre as economias de mercado emergente e em desenvolvimento (EMEDs).
Já o indicador DTC em % PIB manteve-se praticamente estável: 1,70% em 2020 e 1,75% em 2021. Como o indicador Investimento Direto Externo (IDE) em % do PIB avançou de 2,62% para 2,89% no mesmo período, a Necessidade de Financiamento Externo (NFE) – isto é, a diferença entre os dois indicadores – subiu de 0,92% em 2020 para 1,30% em 2021.
Isto quer dizer que em 2021 o DTC foi financiado com ainda mais folga que no ano anterior pelo IDE, modalidade mais estável de capital externo, que, em valores nominais, somou US$ 46,4 bilhões, ou seja, cifra US$ 18,3 bilhões superior ao DTC.
A seguir, detalha-se o desempenho das transações correntes e da conta financeira em 2021.
Transações Correntes
A recuperação das economias global e brasileira do efeito-contágio da crise da Covid-19 teve repercussões sobre os principais componentes das transações correntes: a balança comercial de bens e serviços e as rendas primárias (remessas de juros, lucros e dividendos).
O efeito líquido foi o aumento do DTC porque o crescimento do superávit comercial de bens e serviços para US$ 19.027 milhões não foi suficiente para compensar o maior déficit nas rendas primárias, que atingiu US$ 54.471 milhões (respectivamente, +66,8% e +31,9% superiores às cifras de 2020).
Dois movimentos explicam o desempenho da balança comercial de bens e serviços.
O primeiro foi o aumento de 11,8% do superávit no comércio de bens frente ao ano anterior, atingindo US$ 36.181 milhões. Ao contrário de 2020 – quando o aumento desse superávit decorreu da maior retração das importações em relação às exportações – em 2021, tanto as vendas como as compras externas registraram alta. Contudo, o impacto final na balança comercial não foi tão significativo, porque a retomada das importações (+38,9%) foi mais intensa do que das exportações (+34,7%).
No caso das vendas externas de bens, os principais determinantes do crescimento foram, em primeiro lugar, a depreciação real da moeda doméstica de 25,9% em 2020 (segundo o índice de câmbio real efetiva (IPCA) calculado pelo Banco Central do Brasil), que se refletiu nos contratos de exportação em 2021. Além disso, o volume do comércio global avançou 9,3%, segundo estimativa do Fundo Monetário Internacional, após a queda de 8,2% em 2020.
Estes fatores favoreceram as exportações da indústria de transformação, que aumentaram 26,3%. Contudo, as exportações brasileiras de bens primários cresceram num ritmo bem superior, de 43,5%, em função de um terceiro determinante: a alta dos preços das commodities tanto não-energéticas como energéticas – respectivamente 26,7% e 67,3%, segundo o World Economic Outlook Update do FMI, divulgado em jan/22.
No caso da pauta brasileira, as principais contribuições foram da soja e do minério de ferro - neste caso, as cotações aumentaram até meados do ano devido às restrições à produção de aço na China no segundo semestre (World Bank, 2022). A alta do preço do petróleo também favoreceu as vendas externas, mas impulsionou igualmente as importações de derivados. O efeito líquido, todavia, foi positivo sobre a balança comercial.
No caso das nossas compras externas, o principal determinante foi a retomada do crescimento econômico doméstico (+4,6% para o PIB em 2021, após uma retração de 3,9% em 2020). Assim, a alta elasticidade-renda das importações brasileiras mais do que neutralizou o impacto negativo da depreciação cambial.
O segundo movimento foi a redução em 18,3% do déficit da balança comercial de serviços, que recuou para US$ 17.114 milhões, a menor cifra desde 2008. O aumento de 37,6% do déficit em serviços de transporte, em linha com a maior corrente de comércio, foi bem inferior à queda do déficit em aluguel de equipamentos (42,6% contra 19,5% em 2020) - que depende sobretudo da produção da Petrobras.
O terceiro item mais importante dessa subconta de serviços é “viagens internacionais”, cujo déficit se manteve no mesmo patamar de 2020, o menor desde 2006. As novas ondas da pandemia em 2021 resultaram na retomada ou intensificação das medidas de confinamento e distanciamento social, o que evitou a recuperação do turismo de brasileiros no exterior. Assim, esse efeito-contágio positivo da pandemia sobre as contas externas brasileiras atuou pelo segundo ano consecutivo.
Já o efeito-contágio positivo sobre a “renda primária” não perdurou em 2021. Pelo contrário, o déficit nessa subconta aumentou 31,9%, atingindo US$ 50.471 milhões – valor ainda menor que o registrado em 2019.
Esse resultado decorreu, em primeiro lugar, do aumento das rendas de investimento direto (+18,6%), que respondem por mais de 60% da renda primária, já que remessas de lucros, juros e dividendos são pró-cíclicas, ou seja, variam na mesma direção que a atividade econômica doméstica.
Em segundo lugar, as remessas de juros e dividendos associadas ao investimento de carteira registraram uma alta ainda mais expressiva (73,2%), associada à retomada dos investimentos de portfólio estrangeiro no país. O único item que atuou na direção contrária foi a renda de outros investimentos (pagamento de juros), que recuou 17,4%.
Conta Financeira
Após o forte efeito-contágio da crise da Covid-19, que foi muito mais intenso do que na crise financeira global de 2008 (CFG) (Carta IEDI n. 1128), a conta financeira registrou captação líquida de recursos de US$ 32.671 milhões em 2021, mais de 2,5 vezes superior à cifra registrada em 2020, mas ainda menor que o resultado pré-pandemia (US$ 64.357 milhões). Contribuíram para esse resultado as três modalidades de capitais estrangeiros.
O ingresso líquido de investimento direto no país (ou seja, o IDE) – que respondeu por 45% do ingresso líquido de capitais estrangeiros – aumentou 23%, atingindo US$ 46.441 milhões. Esse resultado pode ser, contudo, considerado decepcionante.
Isso porque, além de inferior ao valor de 2019 (US$ 69.174 milhões), o crescimento dos fluxos globais de IDE foi bem mais forte (+77%) do que o nosso desempenho, em função, sobretudo, dos fluxos direcionados para os países desenvolvidos (+199%). Entretanto, mesmo o IDE direcionado para os países em desenvolvimento registrou alta (30%) que a nossa, segundo o Global Investment Trend Monitor de jan/22, divulgado pela UNCTAD.
Ou seja, o patamar mais depreciado do Real e a retomada do crescimento doméstico não foram suficientes para tornar o Brasil relativamente mais atrativo que seus congêneres em 2021.
Já a recuperação dos investimentos em carteira no país (ou seja, os investimentos de portfólio estrangeiro - IPE) foi muito mais expressiva. Após um saldo negativo de US$ 1.880 milhões em 2020, o IPE saltou para US$ 20.858 milhões, a maior cifra desde 2014. As diferentes modalidades tiveram um desempenho assimétrico, mas em todos os casos muito volátil diante do contexto internacional ainda altamente incerto.
A maior contribuição para a retomada do IPE veio das aplicações de não-residentes em títulos soberanos de renda fixa no país (76% do total), que aumentaram mais de 4 vezes frente ao ano anterior, atingindo US$ 15.789 milhões, valor também recorde desde 2014.
Já os investimentos em ações no país somaram somente US$ 5.246 milhões e os títulos de renda fixa emitidos no exterior registraram captação negativa (ao contrário de 2020, quando houve ingresso líquido de recursos externos nessa modalidade).
Assim, o desempenho do IPE para o Brasil destoou do observado para o conjunto das economias de mercado emergente e em desenvolvimento (EMED). Nesse caso, a recuperação do IPE decorreu das emissões de títulos no exterior, enquanto os investimentos nos mercados de capitais domésticos, sobretudo de títulos soberanos, continuaram moderados (Carta IEDI n. 1128).
Essa divergência de desempenho está associada à forte alta da taxa de juros básica no Brasil e, consequentemente, ao diferencial entre os juros interno e externo, bem como à maior liquidez do mercado de títulos públicos domésticos.
A modalidade “Outros Investimentos no país” registrou, igualmente, uma forte recuperação, passando de uma saída de capitais de US$ 20.826 milhões em 2020 para uma captação líquida de recursos de US$ 36.061 milhões. Os principais determinantes desse resultado foram o forte crescimento dos “créditos comerciais e adiantamentos” em linha com retomada do comércio exterior e a captação líquida de empréstimos bancários, estimulada pelas taxas de juros historicamente baixas nas economias avançadas.
Perspectivas para 2022
As projeções das instituições multilaterais para o crescimento da economia mundial de 2022, divulgadas em janeiro último, oscilavam entre 4,1% (World Bank, 2022) e 4,4% (IMF, 2022), com riscos de um desempenho efetivo ainda mais modesto. Ou seja, abaixo do resultado estimado de 2021.
A desaceleração prevista frente à expansão de 5,9% em 2021 e o viés de baixa refletem uma combinação de fatores, dentre os quais se destacam:
• medidas de distanciamento social decorrente da nova variante do Covid-19 (Omicron) ainda em vigor no início do corrente ano;
• aumento da volatilidade dos mercados financeiros associada à incerteza quanto à velocidade de normalização da política monetária nas economias avançadas, sobretudo nos Estados Unidos (que acelerou a desmontagem da política de afrouxamento quantitativo no final de 2021 e anunciou que elevará a taxa de juros básica num ritmo mais rápido em 2022 do que o anteriormente previsto);
• alta da inflação decorrente de disrupções nas cadeias globais de valor e aumento dos preços das commodities.
Com a eclosão da guerra na Ucrânia, devido a invasão russa em 24/02/2022, esses cenários se tornaram excessivamente otimistas. Não há dúvidas de que o conflito abalará fortemente a recuperação da economia global da pandemia do Covid-19, podendo inclusive levar a um double-dip, ou seja, a uma nova recessão em 2022.
As previsões do FMI no seu último cenário já apontavam para a perda de ritmo dos dois principais motores dessa recuperação: uma desaceleração de 5,6% para 4% nos Estados Unidos associada às condições monetárias menos acomodatícias, alta da inflação e menor estímulo fiscal; e de 8,1% para 4,8% na China decorrente do impacto da política de tolerância zero durante a pandemia na atividade produtiva e aos problemas no setor imobiliário.
Inclusive, o governo chinês anunciou no início de março uma revisão da sua meta de crescimento para 5,5% (assim, ainda acima da projeção do FMI), a menor em 30 anos, como mencionaram White e Hale, em seu artigo “China sets lower growth target in 30 years as Ukraine fallout looms”, na edição de 05/03/22 do Financial Times.
No documento “Economic and Social Impacts and Policy Implications of the War in Ukraine”, de mar/22, a OCDE estimou queda de -1,0 ponto percentual do crescimento do PIB mundial em 2022 e alta adicional da inflação de +2,5 p.p. em função da guerra (em dez/21 previa +4,2%).
Neste contexto, traçar as perspectivas para o desempenho do setor externo brasileiro em 2022 seria uma tarefa extremamente ambiciosa. A situação atual é de incerteza exacerbada em que mesmo modelos macroeconômicos altamente sofisticados – que se baseiam no comportamento passado das séries econômicas – se deparam com dificuldades de formular cenários.
Contudo, já é possível avaliar os canais iniciais de contágio da crise sobre as nossas contas externas e conjecturar sobre a evolução desses canais nos próximos meses.
Como nos episódios anteriores de choque externo, o principal canal de contágio sobre as economias de mercado emergente (EMEs) como a brasileira é o canal financeiro, ou seja, a deterioração das condições financeiras internacionais devido ao aumento da aversão aos riscos dos investidores globais e o resultante movimento de fuga para a qualidade (ou seja, para os títulos soberanos do tesouro americano e, em menor medida, de outras economias avançadas).
Esse movimento resulta numa correspondente venda de títulos emitidos pelas EMEs com consequente alta dos spreads e do custo da captação externa. No caso do choque atual, num primeiro momento, esse canal se manifestou, mas em menor intensidade do que na crise financeira global e na crise do Covid-19.
Além disso, a diferenciação entre as EMEs foi maior devido ao impacto desse choque sobre outro canal de contágio, os preços das commodities. A guerra provocou uma alta não somente das cotações das commodities energéticas e agrícolas – já que a Rússia e a Ucrânia são importantes exportadores de petróleo, gás natural e trigo –, mas também de algumas commodities metálicas, como o níquel (a Rússia é o terceiro maior exportador mundial).
No caso das commodities energéticas, a trajetória altista se acelerou com o anúncio pelos Estados Unidos e Inglaterra da interrupção das importações da Rússia dia 8 de março. Como esse canal beneficia as EMEDs exportadoras de commodities, estas foram relativamente poupadas do contágio financeiro na fase inicial da guerra. Além do menor aumento dos spreads dos títulos soberanos, alguns investidores globais anunciaram metas de aumentar a exposição em ativos dessas economias, incluindo a brasileira, conforme indicou o J.P. Morgan em “Emerging Markets Outlook and Strategy” de 03/03/22.
Contribuiu igualmente para essa realocação de portfólio a exclusão dos títulos soberanos e ações de empresas da Rússia dos índices de referência dedicados às EMEs (benchmark indexes) que guiam as decisões de investimento dos fundos de investimento passivos, hoje predominantes nos investimentos de portfólio para as EMEs (Duguid, “JP Morgan boots Russian debt from widely tracked bond indices”, Financial Times, 08/03/22).
No caso do Brasil, a elevada taxa de juros doméstica constitui um atrativo adicional para os investidores globais compensarem as perdas com suas aplicações em ativos financeiros russos.
Todavia, esse impacto inicial relativamente favorável sobre as contas externas brasileiras pode não ser duradouro. A intensificação e/ou prolongação do conflito pode reforçar o canal financeiro, levando a uma liquidação indiferenciada dos ativos emitidos pelas EMEs e uma saída generalizada dos investimentos de portfólio, como observado no ápice da crise da Covid-19 em março de 2020 e na crise financeira global de 2008.
Mesmo que os Estados Unidos e demais economias avançadas desacelerem ou interrompam o processo de normalização da política monetária, o raio de manobra atual é bem menor do que há dois anos. Por um lado, as taxas de juros nessas economias ainda se encontram no seu piso histórico e os balanços dos bancos centrais inflados com títulos públicos e privados devido à política de afrouxamento quantitativo em resposta ao choque do Covid-19.
Por outro lado, as pressões inflacionarias, que já estavam elevadas antes da guerra, se intensificarão devido à alta generalizada dos preços das commodities, colocando os bancos centrais num dilema de política entre manter o ritmo do processo de normalização para conter essas pressões ou afrouxar as condições monetárias para atenuar a queda do crescimento.
A possibilidade de usar da política fiscal para atingir esse último objetivo também é mais limitada no contexto atual diante do forte crescimento das dívidas públicas como consequência da crise pandêmica.
Uma forte desaceleração ou uma recessão da economia global em 2022 resultará numa perda de ritmo muito mais expressiva do comércio global do que o previsto pelo FMI no cenário de janeiro (de +9,3% em 2021 para +6% em 2022), o que teria efeitos negativos sobre o volume das nossas exportações, afetando, principalmente, as vendas externas de manufaturados.
O ponto de interrogação é se a alta dos preços das commodities será suficiente para mais do que compensar o menor volume exportado, resultando num aumento ou atenuando a queda do valor das exportações brasileiras em 2022.