Carta IEDI
Política Industrial nos marcos da OMC
Já há algum tempo, as relações internacionais têm estado sob pressões crescentes de direções opostas. Por um lado, o enfrentamento de desafios contemporâneos, como a transição climática e a segurança sanitária mundial, demanda reforço do multilateralismo. Por outro, a concorrência entre os países pela liderança tecnológica e produtiva das transformações necessárias para responder a tais desafios gera tensões geopolíticas e enfraquecimento das relações multilaterais.
Desde a crise 2008-2009 que o comércio internacional de bens e serviços e os fluxos de investimento direto externo (IDE) vêm crescendo a um ritmo inferior ao PIB mundial, rompendo a trajetória anteriormente verificada. Antes mesmo da pandemia de Covid-19, com a escalada do conflito comercial entre EUA e China, em 2019, não parecia que este padrão seria revertido rapidamente. Tornaram-se frequentes, então, termos como “desglobalização”, “slowbalization”, “fragmentação” da economia mundial ou “decoupling”, entre outros.
O esvaziamento do sistema de resolução de controvérsias da OMC pelos EUA, a manutenção das tarifas sobre produtos chineses mesmo com a mudança do governo americano, a ruptura das cadeias de produção durante a pandemia, bem como a elevação de barreiras ao IDE (Carta IEDI n. 1004 e 1036), para não falar na guerra da Ucrânia, são agravantes adicionais.
Neste contexto, ações de estratégias industriais também estão provocando tensões, não apenas com países asiáticos, notadamente com a China (Carta IEDI n. 1088 e n. 1154), mas também entre EUA e União Europeia. Os europeus avaliam que o Inflation Reduction Act (IRA), principal peça da estratégia do governo Biden para a sustentabilidade, está em desacordo com as regras da OMC e, segundo o presidente francês, traz um risco de “fragmentação do Ocidente”.
Esta Carta IEDI discute a relação entre política industrial e regras da OMC, a partir do estudo “The international legal framework for industrial policy: World Trade Organization disciplines and rules”, de autoria de Jan Wouters e Julia Marssola, que integra o livro “EU Industrial Policy in the Multipolar Economy”, divulgado no final de 2022. Este tema, vale lembrar, já custou ao Brasil condenação pela OMC em 2017.
O estudo, embora de uma perspectiva europeia, examina regras e normas da OMC que impactam ações de política industrial. Em particular, os autores avaliam medidas de proteção contra importações, tais como barreiras tarifárias e não-tarifárias, e de promoção da exportação, mediante a concessão de subsídio. Também foram examinados requisitos de conteúdo local e subsídios ao comércio de serviços.
Segundo os autores, na prática, existem graus de liberdade para a adoção de estratégias industriais sem se opor aos marcos da OMC, embora reconheçam assimetrias em favor de países desenvolvimentos em algumas áreas. A seguir, uma síntese da análise.
• No que diz respeito às medidas tarifárias, os países que mantiveram tarifas consolidadas mais altas do que as tarifas que realmente aplicam, em geral países emergentes, preservam flexibilidade para usá-las como instrumento de política industrial.
• Em relação às medidas não tarifárias, como restrições quantitativas e procedimentos de licenciamento, os autores afirmam haver margem de manobra devido às muitas exceções e ao amplo conteúdo do Acordo sobre Procedimentos de Licenciamento de Importações.
• Acordos de Barreira Técnica ao Comércio (TBT) e de Barreira Sanitária e Fitossanitária (SPS), que buscam harmonização regulatória das barreiras técnicas e fitossanitárias ao comércio, também oferecem “válvulas de segurança” para que os governos imponham medidas mesmo na ausência de evidências científicas de risco à saúde humana, vegetal ou animal.
• As regras da OMC também não parecem restringir significativamente o espaço político dos membros em termos de mecanismos de defesa comercial. Contudo, na avalição dos autores, as regras de defesa comercial na OMC afetam os países-membros de maneira assimétrica.
• Assimetria também é observada no Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias (SCM), que não impacta da mesma forma todos países-membros da OMC, segundo os autores. Como os países em desenvolvimento carecerem de recursos para subsidiar suas indústrias, na prática, os subsídios permitidos pelas regras da OMC correspondem principalmente às prioridades políticas dos países desenvolvidos.
• Com relação às políticas de requisitos de conteúdo local, as regras e disciplinas da OMC deixam um espaço bastante pequeno para políticas. As exceções se aplicam apenas aos membros que não são signatários do Acordo sobre Compras Governamentais e para setores que não constam nas listas de compromissos dos membros sob o Acordo Geral sobre Comércio de Serviços.
• Já no que se refere aos subsídios ao comércio de serviços, as disciplinas da OMC são, na avaliação dos autores, claramente inadequadas. Embora o GATS possua um mandato para avançar nessa agenda, em 25 anos, nenhum progresso significativo foi alcançado. Para se defender de subsídios que distorcem a concorrência, os países-membros recorreram a formas alternativas ao sistema multilateral, tais como os Acordos Preferenciais de Comércio.
Os autores afirmam, ainda, não haver relação única entre o tipo de instrumento de política usado e seu efeito sobre o comércio. As experiências entre 2008 e 2020 sugerem que um quadro normativo para a política industrial em vez de permitir ou proibir instrumentos específicos, deveria levar em conta seus diferentes efeitos potenciais.
O estudo examinou igualmente, a função de monitoramento da OMC, particularmente por meio do mecanismo de Preocupação Comercial Específica (STC) dos comitês TBT e SPS. Esta plataforma permite que os membros verifiquem e monitorem as medidas de política uns dos outros, mas também sujeitam as suas próprias à revisão pelos pares. Porém, na ausência de uma aplicação prática desse mecanismo, os autores consideram que é difícil argumentar que restringe significativamente o espaço político dos membros para a política industrial.
Já as decisões do Órgão de Solução de Controvérsias (DSB), responsável pelo exame das disputas comerciais encaminhadas à OMC, podem igualmente expandir ou reduzir o espaço dos países -membros para a política industrial. Isso é alcançado pela decisão inter partes obrigatória do DSB e também pela jurisprudência criada por meio de suas decisões.
No entanto, mesmo quando as decisões do DSB reduzem o espaço político dos países, esses podem encontrar maneiras alternativas de implementar suas medidas. Esse é o caso da recente metodologia de ajuste de custos adotada pela UE, que leva em consideração os padrões sociais e ambientais observados pela indústria europeia.
Wouters e Marssola reconhecem não haver consenso entre os analistas sobre o impacto das regras da OMC sobre a capacidade dos governos de promover o desenvolvimento econômico por meio de política industrial. Há quem identifique impacto restritivo e há quem mostre haver espaço para estas iniciativas nacionais.
Em suas conclusões, os autores reconhecem assimetrias, mas parecem pertencer a este segundo grupo de analistas. Destacam que as regras da OMC não existem para cercear a autonomia dos seus membros na formulação e adoção de políticas, estabelecendo um âmbito para remediar conflitos comerciais. As disciplinas e normas da OMC fornecem, na interpretação dos autores, um espaço político mais “eficaz” de negociação, com maior clareza para as decisões de políticas comerciais e de investimento.
Introdução
A Carta IEDI de hoje sintetiza o artigo “The international legal framework for industrial policy: World Trade Organization disciplines and rules”, de autoria de Jan Wouters e Julia Marssola, que integra a obra EU Industrial Policy in the Multipolar Economy, editado em 2022 por Jean-Christophe Defraigne, Jan Wouters e outros pesquisadores.
Nesse artigo, os autores analisam, com foco especial na União Europeia (UE), em que medida o quadro normativo da Organização Mundial do Comércio (OMC) impacta a autonomia e o espaço para política industrial nos seus países membros.
Políticas industriais e leis internacionais de comércio interagem em vários aspectos, segundo os autores. As medidas comerciais são aplicadas em muitos domínios da política industrial, incluindo tarifas, restrições quantitativas, medidas comerciais corretivas, subsídios etc. Essas práticas são reguladas pela estrutura legal da OMC.
Como a instituição comercial multilateral mais importante do mundo, a OMC não somente estabelece os regulamentos e as regras para tais políticas, como também constitui um fórum global para discutir e analisar a política industrial.
A pandemia da Covid-19 e seus impactos nas cadeias de suprimentos globais desencadearam temores de que os formuladores de políticas pudessem abandonar o sistema internacional de comércio e recorrer a práticas protecionistas.
Desde então, na UE, a busca de autonomia da produção e de cadeias de abastecimento mais curtas, reduzindo a dependência em relação a outros países, tornou-se um objetivo prioritário. A Comissão Europeia tem se mostrado cada vez mais inclinada a encontrar novas ferramentas para implementar suas políticas e enfrentar as disfuncionalidades potenciais do sistema multilateral de comércio.
Política industrial e comércio mundial
De acordo com os autores, praticamente todos os países, incluindo nações economicamente desenvolvidas, usaram ou, em algum momento, usarão políticas industriais, mesmo se forem apresentadas (ou disfarçadas) sob outras denominações, como políticas de facilitação de exportações e de promoção de investimentos estrangeiros.
Desde a criação do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), em 1947, e posteriormente a instituição da OMC em 1995, os temas de industrialização têm sido relevantes para o sistema multilateral de comércio.
O sistema multilateral de comércio representa um regime internacional em que a soberania e a autonomia regulatória dos participantes são circunscritas pelos inúmeros termos e condições acordados entre os membros da OMC. Entretanto, não há consenso entre os analistas sobre o impacto das regras da OMC e das decisões de seu sistema de solução de controvérsias nas iniciativas domésticas de seus membros.
Enquanto alguns consideram que as regras da OMC restringem indevidamente a capacidade dos governos de promover o desenvolvimento econômico por meio de política industrial, outros argumentam que o quadro normativo e regulatório da OMC deixa amplo espaço para políticas e sua implementação, não impedindo os países de crescer e de se desenvolver tão rápido quanto antes da criação do sistema multilateral de comércio.
Em geral, argumentam os autores, o debate em torno dessas questões se acirra principalmente em períodos de crise, quando os países enfrentam uma necessidade crescente de intervir para estimular suas economias.
Analisando as informações coletadas pelo Global Trade Alert, instituição suíça que monitora as políticas governamentais que afetam o comércio mundial e classifica os principais instrumentos utilizados, por todos os países e não apenas pelos membros da OMC, em dois grupos: intervenções prejudiciais e intervenções liberalizantes, Wouters e Marssola destacam que não há correlação entre o tipo de instrumento usado para intervenção governamental e seu efeito sobre o comércio.
Como os principais instrumentos de política utilizados entre 2008 e 2020 possuem diferentes efeitos potenciais, um quadro normativo para a política industrial, em vez de permitir ou proibir instrumentos específicos, deveria levar em conta os diferentes efeitos potenciais das medidas adotadas.
Indagando se os membros da OMC podem proteger suas indústrias usando os instrumentos de políticas destacados nos gráficos acima sem violar seus compromissos com a OMC e até que ponto os países membros são constrangidos em relação às suas escolhas políticas ao fazê-lo, os autores apresentam, como será visto a seguir, um panorama geral do arcabouço normativo da OMC para as medidas de política industrial adotadas pelos seus membros.
As normas da OMC para a política industrial
O estudo de Wouters e Marssola examina as regras e normas da OMC sobre política industrial em relação a:
a. medidas de proteção contra importações, tais como barreiras tarifárias, barreiras não-tarifárias e medidas de defesa comercial, como antidumping; e
b. promoção da exportação com subsídios contingentes.
Medidas de proteção contra importações
Para proteger as empresas nacionais da concorrência das importações, os governos podem adotar vários tipos de medidas para restringir o acesso ao mercado doméstico. Essas medidas incluem as barreiras tarifárias, barreiras não tarifárias, medidas antidumping, antissubsídio e de salvaguardas.
As barreiras tarifárias incluem direitos aduaneiros sobre as importações, bem como outros direitos e encargos. Para cada um deles, aplicam-se regras diferentes. Os direitos aduaneiros ou tarifas de importação são estabelecidos de acordo com a tarifa aduaneira nacional de um país. A OMC, em particular o GATT 1994, não proíbe a imposição de tais medidas. Porém, o Artigo XXVIII bis inclui um mandato de negociação para os membros da OMC reduzirem os direitos aduaneiros.
Os resultados dessas negociações são chamados de concessões tarifárias ou obrigações tarifárias e são compromissos de não aumentar as tarifas acima do nível acordado. As concessões tarifárias, detalhadas na Lista de Concessões do membro, variam para cada país-membro e produto. Os membros devem conceder tratamento não menos favorável do que o previsto em sua Lista.
Os princípios básicos que regem as negociações tarifárias são a reciprocidade e a vantagem mútua e o tratamento de nação mais favorecida (NMF). O princípio da reciprocidade, entretanto, não se aplica integralmente às negociações tarifárias entre países desenvolvidos e em desenvolvimento.
As taxas máximas indicadas nas Tabelas dos Membros são conhecidas como taxas consolidadas enquanto as tarifas que os países-membros efetivamente cobram são conhecidas como taxas aplicadas. As tarifas aplicadas pela maioria dos membros da OMC são realmente mais baixas do que as taxas consolidadas, e este é particularmente o caso dos países em desenvolvimento.
De acordo com Wouters e Marssola, a diferença entre essas taxas confere flexibilidade aos países-membros para aumentar a tarifa aplicada sem descumprir seus compromissos. Além disso, mesmo não aplicando as tarifas máximas, os países evitam reduzi-las para preservar o espaço da política.
Na avaliação dos autores, ainda que as obrigações gerais – como os tratamentos nacional e NMF – se apliquem até mesmo à taxa consolidada, os membros da OMC têm considerável margem de manobra para proteger suas indústrias nascentes e desenvolver a capacidade doméstica por meio de tarifas.
Para proteger suas indústrias da concorrência das importações, os governos podem igualmente querer adotar várias outras medidas não-tarifárias, como restrições quantitativas (embargo, cotas de importação) e licenças de importação. Medidas que imponham restrições quantitativas são proibidas pela OMC, independentemente de impedirem ou não efetivamente o comércio, embora existam várias exceções a essa regra.
O Acordo da OMC sobre Procedimentos de Licenciamento de Importação estabelece as regras para as cotas de importação. Segundo o estudo, a mais importante dessas regras estabelece que os procedimentos devem ser neutros e aplicados de maneira justa e equitativa (Artigo 1.3). O Acordo também contém uma obrigação de transparência, exigindo que os membros notifiquem procedimentos de licenciamento de importação novos ou alterados.
Outro tipo de medida adotada pelos governos para proteger as empresas domésticas da concorrência estrangeiras são as barreiras técnicas ou fitossanitárias. Essas medidas são regulamentadas na OMC pelo Acordo de Barreiras Técnicas ao Comércio (TBT) e pelo Acordo Sanitário e Fitossanitário (SPS). Os autores destacam que as regras da OMC estabelecidas nesses acordos vão além das regras gerais aplicáveis às barreiras não tarifárias ao promover a harmonização regulatória por meio de normas internacionais.
O Acordo TBT aplica-se a normas de regulamentação técnica e procedimentos de avaliação de conformidade relativos a produtos, processos e métodos de produção. Exige que os países-membros concedam tratamento nacional e tratamento NMF a bens importados (Artigo 2.1) e não criem obstáculos desnecessários ao comércio internacional (Artigo 2.2), estabelecendo que os padrões internacionais devem ser a base para a imposição de barreiras (Artigo 2.4).
Segundo os autores, as barreiras técnicas ao comércio também podem ser um instrumento de política industrial empregado no âmbito do Acordo Sanitário e Fitossanitário (SPS), quando os países-membros desejam proteger sua indústria impondo barreiras técnicas relacionadas à proteção da vida ou saúde humana, animal ou vegetal de certos riscos específicos. De um modo geral, a aplicabilidade do Acordo TBT exclui a aplicabilidade do Acordo SPS a uma medida específica.
No que se refere às regras SPS e do espaço político disponível para os membros da OMC, o Artigo 2.1 reconhece explicitamente o direito soberano dos países-membros de adotar medidas sanitárias e fitossanitárias.
Ao mesmo tempo, o Acordo SPS sujeita os membros a uma série de obrigações. Isso inclui a obrigação de impor medidas apenas quando necessário e com base em evidências científicas suficientes (Artigo 2.2), bem como não adotar ou manter uma medida que discrimine indevidamente ou constitua uma restrição disfarçada ao comércio (Artigo 2.3). O Acordo também incentiva a harmonização das medidas sanitárias e fitossanitárias considerando padrões internacionais, mas deixa a escolha autônoma de opções para os países-membros (Artigo 3).
Apesar dessas regras, Wouters e Marssola destacam que o Artigo 5.7 prevê uma abordagem de precaução, permitindo que os governos imponham medidas SPS quando consideram que precisam agir prontamente para evitar danos a despeito das evidências científicas de risco serem insuficientes. Portanto, o artigo fornece uma “válvula de segurança temporária para os governos”, deixando um certo espaço político para os membros da OMC.
As medidas de política industrial à disposição dos países incluem igualmente a aplicação de medidas corretivas comerciais para combater práticas comerciais desleais, mais comumente por meio de medidas antidumping, antissubsídios e de salvaguardas.
Os pesquisadores salientam que a OMC não regulamenta a atuação de empresas que praticam dumping, mas estabelece um arcabouço normativo para orientar as reações dos países-membros ao dumping, aos subsídios ou ao aumento de importações.
O Artigo VI do GATT permite que os Membros tomem medidas para proteger suas indústrias domésticas dos efeitos nocivos do dumping. O Acordo sobre a Implementação do Artigo VI do GATT 1994, comumente chamado de “Acordo Antidumping”, estabelece os critérios para construir o valor normal quando o preço de exportação utilizado na transação não reflete o valor normal.
Em 2017, a UE adotou uma metodologia “não padronizada” para cálculo de margens de dumping “para capturar as distorções de mercado ligadas à intervenção estatal em países terceiros que mascaram a verdadeira extensão das práticas de dumping”. Nessa nova metodologia, ao calcular as referências de custo ou o valor normal calculado, a UE substitui, às vezes, os custos reais de insumos que foram corretamente registrados nas contas financeiras dos exportadores por valores diferentes e mais altos, o que resulta em margens de dumping mais altas.
Embora, essa nova metodologia tenha sido considerada pelo Órgão de Solução de Controvérsias (DSB) como inconsistente com as regras da OMC, a UE continuou, na prática, a utilizá-la, o que resultou em queixas de países como Arábia Saudita, México, Rússia, China, Cazaquistão, China, Bahrein, Argentina, Colômbia, Kuwait, Catar e Omã.
Na opinião dos autores, o quadro normativo da OMC para medidas antidumping não afeta o espaço político dos países membros de maneira uniforme. No caso da UE, por exemplo, parece não haver redução do espaço de política nesta área, dado que as regras permitem levar em consideração os custos presumivelmente mais altos da conformidade da indústria europeia com as normas sociais e ambientais. No entanto, este não é necessariamente o caso dos países em desenvolvimento membros da OMC, e em particular das maiores economias em desenvolvimento, que estão sujeitos a receber um número relativamente maior de medidas antidumping.
Segundo o estudo, a União Europeia tem sido historicamente um usuário significativo de medidas antidumping de defesa comercial. Até junho de 2020, por um lado, a UE impôs 335 medidas antidumping, ocupando o terceiro lugar geral entre os membros da OMC, das quais 101 medidas foram direcionadas à China. Por outro lado, a UE recebeu 94 medidas antidumping, ocupando a décima segunda posição geral, com 51 dessas medidas impostas pela Índia.
Os autores destacam que as regras para as medidas de defesa comercial na OMC afetam os países-membros de maneira assimétrica. Como pode ser observado na tabela abaixo, entre janeiro de 1995 e junho de 2020, a China sozinha foi alvo de mais de um quarto das medidas antidumping e mais de um terço das medidas compensatórias, enquanto a UE foi responsável por apenas 2,3% e 3,5%, respectivamente.
Além das medidas antidumping, os governos podem impor medidas antissubsídios sobre importações subsidiadas que causem danos à economia doméstica. Este procedimento é regulamentado no âmbito da OMC pelo Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias (Acordo SCM). Porém, de acordo com os autores, tal como acontece com o antidumping, as regras antissubsídios da OMC não parecem limitar o espaço político disponível dos países-membros.
Aproveitando esse espaço, a UE adotou uma série de iniciativas recentes para proteger as suas empresas de uma situação de concorrência desleal face a empresas estrangeiras que beneficiam de subsídios. Em particular, em maio de 2021, a Comissão Europeia apresentou uma Proposta de Regulamentação de subsídios estrangeiros que distorcem o mercado interno.
Este novo instrumento proposto é ambicioso e inovador, pois combina regras e práticas bem estabelecidas da OMC com princípios decorrentes das regras da UE sobre auxílios estatais, regulamentação de contratos públicos e legislação de controle de concentrações. Abrange três situações em que os subsídios estrangeiros podem distorcer o mercado interno: (a) subsidiar as operações de uma empresa que opera na UE; (b) subsidiar a aquisição de uma empresa da UE; e (3) subsidiar um licitante em uma licitação pública na UE.
Segundo Wouters e Marssola, a UE também faz uso do espaço político disponível, incluindo medidas corretivas comerciais abrangentes em seus acordos comerciais bilaterais. Os acordos comerciais com o Reino Unido (Brexit), Vietnã, Cingapura, Canadá e Coréia do Sul incluem disposições de defesa comercial bem desenvolvidas, algumas das quais são aplicáveis até mesmo aos subsídios concedidos ao comércio de serviços.
Medidas de salvaguardas podem igualmente ser adotadas pelos governos para proteger uma indústria doméstica específica de um aumento de importação que esteja causando ou possa causar prejuízo à indústria. Todavia, embora as medidas de salvaguarda sempre estiveram disponíveis mediante o Artigo XIX do GATT, raramente foram usadas.
O Acordo de Salvaguardas da OMC estabelece prazos (cláusulas de caducidade) para todas as ações de salvaguarda. Essas medidas que assumem a forma de restrições temporárias às importações para dar tempo à indústria nacional de se ajustar estruturalmente às novas realidades econômicas.
De qualquer forma, as medidas de salvaguardas continuam sendo um instrumento muito menos utilizado que as medidas antidumping e antissubsídios. Há apenas 191 medidas em vigor no âmbito da OMC. No período 1995-2020, a UE iniciou apenas seis casos de salvaguarda, com quatro deles resultando em medidas aplicadas.
Medidas de promoção da exportação e subsídios
Segundo o estudo, os subsídios estão entre os instrumentos de política industrial mais frequentemente utilizados pelos governos para fomentar as economias e promover exportação. Em particular, essa ferramenta é mais usada pelos países desenvolvidos, uma vez que as economias mais pobres muitas vezes carecem de recursos para fornecer subsídios extensivos às suas indústrias.
O Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias (SCM) da Organização Mundial do Comércio regula as disposições relativas aos subsídios e estabelece regras para medidas compensatórias para compensar os prejuízos causados pelas importações subsidiadas. O Acordo não se aplica, todavia, aos setores da agricultura e de serviços.
Esse Acordo define um subsídio como uma contribuição financeira de um governo ou órgão público que confere um benefício (Artigo 1.1). O Acordo SCM fornece uma lista de medidas consideradas como contribuição financeira, incluindo apoio financeiro direto, como doações e empréstimos, ou benefícios financeiros indiretos, como financiamento preferencial e políticas fiscais preferenciais.
Pelas regras da OMC, um subsídio pode ser específico, de acordo com três fatores de especificidade: empresarial, industrial e regional (Artigo 2.1(b)). Se um subsídio atender ao requisito de especificidade, ele será classificado em uma das três categorias: proibido, acionável ou não acionável.
Apenas dois tipos de subsídios são proibidos pela OMC: subsídios condicionados ao desempenho das exportações e os subsídios contingentes ao uso de bens domésticos em detrimento dos importados (Artigo 3.1).
Os subsídios restantes podem ser: i) não acionáveis, o que significa que não há nenhuma restrição ao seu uso; ou ii) acionável e, portanto, sujeito a medidas compensatórias.
Subsídios não acionáveis incluem subsídios não específicos, assistência a regiões desfavorecidas, assistência a atividades de pesquisa e assistência para promover a adaptação de instalações existentes a novos requisitos ambientais (Artigo 8).
Já os subsídios acionáveis são específicos e podem dar origem a medidas compensatórias e solução de controvérsias se causarem efeitos de distorção do comércio, conforme definido pelo Artigo 5 do Acordo SCM. Embora os subsídios para assistência específica a indústrias, empresas ou regiões sejam acionáveis, segundo os autores, relativamente poucos deles são objetos de contestação e levados à solução de controvérsias.
De acordo com o estudo, a maioria das disputas levantadas sob o Acordo SCM está relacionada a reclamações sobre ações de retaliação para lidar com subsídios, ou seja, medidas compensatórias impostas pelos membros. O processo não costuma ser usado para mitigar o uso de subsídios proibidos ou acionáveis e, quando esse é o caso, as reclamações geralmente envolvem políticas de conteúdo local ou medidas relacionadas a investimentos.
Na avaliação dos autores, embora o Acordo SCM não impacte os países-membros da mesma forma, sendo mais favorável aos países mais ricos, as regras de subsídios da OMC permitem espaço político para os membros, especialmente em termos de subsídios para serviços e agricultura, que não estão sujeitos ao Acordo SCM.
Normas específicas
Indo além das regras da OMC para as medidas utilizadas pelos países para promover a política industrial em termos de proteção de importações e promoção de exportações, o estudo examina duas medidas específicas, que, segundo os autores, são de particular importância para os atuais objetivos políticos da UE: requisitos de conteúdo local e subsídios para serviços.
Requisitos de conteúdo local
Os requisitos de conteúdo local fazem parte de um conjunto mais amplo de políticas usadas pelos governos para favorecer a indústria doméstica em detrimento da concorrência estrangeira. As políticas de conteúdo local exigem que as empresas usem bens manufaturados ou serviços fornecidos internamente e são usadas para atingir diferentes objetivos industriais, tecnológicos e de emprego.
A disposição mais importante que afeta as medidas de conteúdo local está contida no Artigo III do GATT 1947, que estabeleceu a obrigação de tratamento nacional, segundo a qual os produtos importados não devem ser discriminados em relação aos equivalentes nacionais. Na maioria das vezes, as medidas de conteúdo local violam este artigo porque, por sua própria natureza, condicionam um benefício ao uso de bens de origem nacional e, portanto, discriminam entre bens de acordo com sua origem territorial.
No arcabouço jurídico da OMC há várias disposições que impõem limitações às políticas de conteúdo local. Essas limitações constam principalmente nos Acordos sobre Medidas de Investimento Relacionadas ao Comércio (TRIMs) e sobre Compras Governamentais (GPA), bem como no Acordo SCM e no GATS.
O Acordo TRIMs, que na prática esclarece algumas políticas do GATT de 1994, foi concebido para prevenir os efeitos restritivos e distorcivos ao comércio das medidas de investimento e especificamente no que diz respeito aos requisitos de conteúdo local. O ponto central desse acordo é que ele visa evitar distorções comerciais e de investimento, interpretando como distorções a maioria dos requisitos de desempenho de empresas estrangeiras.
As políticas de conteúdo local também estão relacionadas às provisões de compras governamentais. As compras governamentais referem-se à aquisição de bens e serviços por instituições estatais com recursos públicos para atingir os objetivos políticos. Não estão sujeitas à obrigação de tratamento nacional estabelecida pelo Artigo III:8(a) do GATT 1994 e, como tal, a proibição de medidas de conteúdo local não se aplica.
As regras de compras governamentais são definidas pelo GPA, que é um acordo plurilateral, do qual são signatários 48 membros da OMC, entre os quais os vinte e sete países que integram a UE. O Acordo está centrado nas obrigações gerais estabelecidas pelo texto e nos cronogramas de compromissos de acesso ao mercado dos países-membros. Quando os países-membros da OMC são signatários do GPA, os governos também estão proibidos de impor políticas de conteúdo local, com algumas exceções no caso de a aquisição ser para “fins governamentais”.
Além dos Acordos TRIMs e GPA, as medidas de conteúdo local também são expressamente proibidas pelo Acordo SCM, pois constituem uma das duas categorias de subsídios proibidos, a saber, de acordo com o Artigo 3.1, “(b) Subsídios contingentes, sejam isoladamente ou como uma de várias outras condições, mediante a utilização de bens nacionais em detrimento dos importados”.
No GATS, que cobre as medidas de investimento que afetam o comércio de serviços, as principais disposições que restringem as políticas de conteúdo local estão incluídas em artigos sobre acesso a mercados (Artigo XVI) e tratamento nacional (XVII).
Por exemplo, os parágrafos (e) e (f) do Artigo XVI restringem ainda mais a capacidade dos países de impor certas medidas de conteúdo local a investidores estrangeiros que buscam obter acesso ao mercado.
Uma particularidade importante do GATS é que suas obrigações só se aplicam na medida em que o membro da OMC tenha incluído o setor de serviços relevante em sua Lista de Compromissos. Como resultado, os membros mantêm alguma liberdade para impor requisitos de conteúdo local em setores de serviços que não estão incluídos em sua lista de compromissos.
Considerando as regras incluídas nos TRIMs, GPA, SCM e GATS, o espaço disponível para as políticas de conteúdo local dos membros da OMC parece bastante pequeno. No entanto, os autores salientam que é preciso atentar para o espaço que têm os membros da OMC não signatários do GPA, dado que podem aplicar requisitos de conteúdo local às compras governamentais. Além disso, os membros também podem impor políticas de conteúdo local a setores que não constem de suas próprias Listas de Compromissos do GATS.
Na avaliação dos autores, os acordos comerciais preferenciais e as cadeias de suprimentos internacionais impactaram mais o espaço para políticas de conteúdo local do que os compromissos assumidos no âmbito da OMC.
Um exemplo mencionado no estudo é o Acordo Comercial Canadá-UE (CETA). Sob o CETA, o Canadá abriu suas políticas de compras governamentais para empresas da UE mais do que para qualquer outro parceiro comercial.
Subsídios ao comércio de serviços sob o GATS
As regras aplicáveis ao comércio internacional de serviços contidas no GATS também podem afetar as iniciativas de política industrial dos membros da OMC. O GATS regulamenta as medidas aplicáveis ao comércio de serviços, impondo obrigações relacionadas à não discriminação (NMF e tratamento nacional), acesso a mercados e transparência, por exemplo.
Os próprios países-membros decidem os setores de serviço que desejam liberalizar, em que medida e sob quais condições. Portanto, o escopo dessas obrigações essenciais é determinado pelas Listas de compromissos específicos de cada membro.
O GATS opera em quatro modalidades de oferta: oferta transfronteiriça, consumo no exterior, presença comercial e presença de pessoas físicas. Além das consequências para o investimento estrangeiro e os requisitos de conteúdo local, que podem ser permitidos ou proibidos dependendo dos compromissos de cada membro, as disposições do GATS têm, segundo o estudo, outras implicações para o espaço político disponível para os membros em relação à política industrial.
Atualmente não há disciplinas específicas sobre subsídios no GATS, e a compreensão do assunto ainda está em estágio inicial. No entanto, como outras medidas que afetam o comércio de serviços, os subsídios já estão sujeitos a algumas disciplinas do GATS e, portanto, algumas obrigações gerais se aplicam.
Na interpretação dos autores, as disciplinas existentes no GATS aplicáveis aos subsídios no comércio de serviços são, no entanto, insuficientes para lidar com os complexos e importantes efeitos de distorção do comércio internacional. Uma vez que nenhum consenso ou progresso significativo foi feito em 25 anos de negociações em andamento no âmbito multilateral, não é de surpreender que os membros busquem avançar fora da estrutura da OMC.
Embora o Artigo XV imponha um mandato para negociar as disciplinas aos subsídios no comércio de serviços em nível multilateral, a redação do artigo não impede expressamente os membros de promover essa agenda fora da OMC, desde que os regulamentos não sejam incompatíveis com as regras da OMC. Existe, portanto, uma área legal cinzenta que permite espaço político para os membros em termos de controle de subsídios ao comércio de serviços.
Aproveitando o espaço político disponível, a UE já implementou com êxito regulamentos que disciplinam os subsídios aos serviços em uma base setorial (áreas de transporte marítimo e aéreo), bem como por meio de acordos comerciais preferenciais (PTAs) abrangentes.
Desde 2011, a maioria dos PTAs realizados pela UE inclui disposições que codificam regras sobre subsídios ao comércio de serviços. Como pode ser visto na tabela abaixo, onde isso não acontece, os PTAs incluem uma cláusula de compromisso (rendez-vous clause) que prevê a incorporação de quaisquer resultados das negociações de subsídios no âmbito do GATS.
OMC como Fórum para Monitoramento Multilateral das Políticas Industriais
Além de estabelecer as regras multilaterais que disciplinam o comércio global, a OMC serve como um fórum para monitoramento multilateral das políticas comerciais e industriais adotadas pelos países-membros e, por meio dessa função de monitoramento, impacta o espaço disponível para as políticas.
Embora os mecanismos de monitoramento não tenham poder de execução, os autores consideram que eles aumentam a transparência e a responsabilidade dos sistemas jurídicos domésticos, induzindo ajustes de políticas e evitando disputas formais.
A função de monitoramento da OMC é desempenhada, sobretudo, por meio de conselhos e comitês, nos quais são disponibilizadas informações sobre políticas e medidas adotadas pelos países-membros, os quais podem discutir sua implementação e interpretação. Esses órgãos organizam sessões de informação ou circulam relatórios elaborados pelo Secretariado da OMC e aqueles elaborados e submetidos pelos países-membros.
Os Comitês de Barreiras Técnicas ao Comércio (TBT) e de Medidas Fitossanitárias (SPS), por exemplo, introduziram um recurso de monitoramento por meio do mecanismo de Preocupação Comercial Específica (STC), o qual consiste em consultas formais dirigidas a um membro para obter mais informações sobre uma determinada ação ou inação e, em alguns casos, para incentivar o membro em questão a alterar uma medida específica.
Esse mecanismo impacta o espaço político dos membros, uma vez que sujeita as medidas dos membros a perguntas e comentários de outros países. De acordo com o estudo, a UE é o membro que mais levanta e responde a STCs.
As STCs podem ser levantadas mesmo para medidas que não tenham sido notificadas nos Acordos TBT ou SPS, bem como para medidas em fase de projeto ou já adotadas por governos. De fato, 32% das STCs levantados no Comitê TBT tratam de medidas não notificadas, segundo os autores.
Na avaliação dos autores, isso é importante, porque permite que os membros discutam questões que, de outra forma, não seriam trazidas para o guarda-chuva da OMC. As STCs podem visar a transparência, apelando aos membros por não terem notificado uma determinada medida, ou podem ser empregadas para monitorar questões relacionadas a barreiras desnecessárias ao comércio ou à lógica da política em questão, por exemplo.
Os efeitos do mecanismo STC sobre o espaço político dos membros são, segundo os autores, uma faca de dois gumes. De um lado, esse mecanismo permite que os membros sigam sua agenda, acompanhando e verificando as medidas dos demais membros, mas, de outro lado, ao mesmo tempo, sujeitam suas próprias políticas à revisão por pares.
As Conferências Ministeriais também têm a prerrogativa de revisar o trabalho em andamento da OMC. É o órgão máximo de decisão da organização, reunindo-se normalmente a cada dois anos. Além disso, dois outros mecanismos permitem a transparência e o monitoramento comercial das políticas comerciais dos países-membros: o Mecanismo de Revisão de Políticas Comerciais (TPRM) e o Mecanismo de Transparência para PTAs.
O TPRM se traduz em relatórios periódicos sobre medidas comerciais adotadas pelos países, que são preparados pelos governos e pelo Secretariado da OMC para a realização de revisão por pares das políticas comerciais dos países-membros.
Ainda que os relatórios não sirvam de base para procedimentos de solução de controvérsias e não imponham novos compromissos políticos aos membros, os autores mencionam que um estudo sobre a dinâmica da pressão dos pares e conformidade dentro do TPRM constatou que 53% das medidas contestadas no Órgão de Solução de Controvérsias foram mencionadas, destacadas ou analisadas nos relatórios de revisão de políticas comerciais preparados pela Secretariado da OMC.
Já o Mecanismo de Transparência para PTAs supervisiona as políticas comerciais regionais e preferenciais dos membros e é conduzido pelo Comitê de Acordos Comerciais Regionais. Porém, esse Comitê não examina a consistência dos acordos comerciais com o quadro normativo da OMC, conduzindo apenas um processo de revisão de transparência.
Em resumo, na avaliação dos autores, a função de monitoramento da OMC impacta o espaço político dos membros para a política industrial porque, como resultado das discussões que ocorrem nos Comitês por meio dos instrumentos discutidos acima, os governos podem ser encorajados a modificar suas medidas de política.
O Mecanismo de Resolução de Controvérsias
De acordo com os autores, o mecanismo de solução de controvérsias, quando estava plenamente em funcionamento, desempenhava um papel importante no fornecimento de segurança jurídica e previsibilidade em relação aos direitos e obrigações sob as regras da OMC, uma vez que esclarece as disposições legais existentes. Todas as disputas encaminhadas ao sistema de solução de controvérsias da OMC abordam, até certo ponto, a política industrial.
Embora a capacidade do sistema de solução de controvérsias de impactar o espaço para a política industrial seja limitada pelas regras existentes, alguns casos mostram que o mecanismo pode realmente expandir ou reduzir o espaço político dos países-membros. Ademais, ainda que as decisões do Órgão de Solução de Controvérsias (DSB) sejam, em princípio, relevantes apenas para a controvérsia e as partes em questão, os autores afirmam que existe uma jurisprudência de facto no direito da OMC.
Na ausência de razões convincentes, os esclarecimentos jurídicos incorporados pelo DSB devem ser seguidos em casos subsequentes quando relevantes. Portanto, as decisões do DSB criam “expectativas legítimas entre os membros da OMC” de que outros membros podem mudar suas políticas de acordo com o que foi decidido pelo DSB.
Wouters e Marssola destacam que existem três maneiras pelas quais o Órgão de Solução de Controvérsias pode impactar o espaço para a política industrial dos países-membros:
1. A clarificação das regras pode ajudar a compreender melhor os seus significados e aplicação, tornando-as mais prováveis de serem utilizadas. Uma interpretação mais ampla ou mais restrita influencia os processos de elaboração de regras;
2. Dado que uma determinada interpretação ou aplicação das regras pode encorajar ou desencorajar queixas potenciais, dependendo da probabilidade de uma decisão favorável, a falta de previsibilidade também pode afetar as escolhas políticas dos países-membros, uma vez que podem querer tirar partido da zona cinzenta;
3. As decisões do DSB podem, sob disposições específicas da OMC, ter diferentes efeitos sobre o espaço disponível para a política industrial.
Segundo os autores, a UE é um importante usuário do sistema de solução de controvérsias da OMC. Ao longo do período janeiro de 1994 a junho de 2020, a UE iniciou 104 disputas, foi parte demandada em 88 disputas e foi terceira parte em 209 casos. Para comparação, esses números são, respectivamente, 124, 156 e 163 para os Estados Unidos e 21, 45 e 188 para a China no mesmo período.
A título de exemplo, os autores apresentam dois casos de decisões do DSB com a UE como parte demandada, que tiveram diferentes efeitos sobre o espaço político disponível para a política industrial.
No caso relativo às grandes aeronaves civis (DS 316), a decisão do painel do DSB forneceu maior espaço para políticas industriais dos países-membros da OMC ao esclarecer que a proibição de concessão de subsídios condicionados ao desempenho das exportações sob o Artigo 3.1(a) do Acordo SCM deve se basear em critérios objetivos. Desde que o subsídio não seja explicitamente contingente à exportação e as vendas internas cresçam tanto quanto as exportações, em termos absolutos, mantendo inalterada a proporção entre elas, um membro da OMC pode decidir promover as exportações de uma indústria doméstica.
Em contraste, a decisão do DSB na controvérsia em torno da metodologia não padronizada de cálculo das margens de dumping no biodiesel, que contrapôs a UE à Argentina, diminuiu o espaço político dos países-membros, e sobretudo, da UE ao limitar a flexibilidade de usar medidas antidumping para lidar com intervenções governamentais e as distorções de preços.
No caso UE – Biodiesel (Argentina), o Órgão de Apelação estabeleceu que os dados confiáveis fornecidos pelo produtor nacional não podem ser rejeitados em favor de preços de terceiros países simplesmente porque os preços domésticos são muito baixos, uma vez que o Artigo 2.2.1.1 é sobre se os custos nos registros refletiam os custos efetivamente incorridos pelo produtor investigado, e não se esses custos eram considerados razoáveis.
Ainda que essa jurisprudência da OMC sobre as medidas comerciais corretivas tenha tido grandes repercussões, na prática, a UE continuou a aplicar a metodologia não padronizada de custos em casos de defesa comercial contra países, cujos preços, na avaliação da Comissão Europeia, refletiam distorções de mercado, argumentando que a metodologia era “totalmente consistente com as obrigações da União Europeia na OMC”.
Na avaliação dos autores, as decisões do DSB podem ter um impacto poderoso no espaço político dos países-membros e nas escolhas de instrumentos de política industrial. Contudo, ressaltam que os membros continuam encontrando alguma flexibilidade de interpretação das decisões e, portanto, continuam a aplicar suas medidas, como no caso da metodologia não padronizada da UE.
Considerações Finais
O exame do quadro normativo da OMC para a política industrial realizado por Wouters e Marssola mostrou que as regras comerciais multilaterais permitem espaço suficiente para a autonomia regulatória dos países-membros.
No que diz respeito às medidas tarifárias, por exemplo, os países mantêm suas tarifas consolidadas mais altas do que as tarifas que realmente aplicam, a fim de preservar a flexibilidade, se necessário. Já em relação às medidas não tarifárias, como restrições quantitativas e procedimentos de licenciamento, as numerosas exceções e o amplo conteúdo do Acordo sobre Procedimentos de Licenciamento de Importações garantem também aos países membros certa margem de manobra.
De igual modo, ainda que os Acordos TBT e SPS, que disciplinam as barreiras técnicas e fitossanitárias ao comércio usadas como ferramenta de política industrial, imponham uma série de obrigações correspondentes a normas e harmonizações, também oferecem válvulas de segurança para que os governos imponham medidas mesmo na ausência de evidências científicas de risco à saúde humana, vegetal ou animal. Da mesma forma, as regras da OMC não parecem restringir significativamente o espaço político dos membros em termos de mecanismos de defesa comercial.
A análise também revelou que, em geral, quanto menos desenvolvido for um país-membro, maior será seu espaço político em termos de compromissos no âmbito da OMC. Porém, os autores destacam que há ressalvas significativas para este achado.
Por exemplo, as exceções aos subsídios proibidos aplicáveis aos países menos desenvolvidos não são muito úteis, pois esses países carecem de recursos para subsidiar suas indústrias em primeiro lugar. De fato, na prática, os subsídios permitidos pelas regras da OMC correspondem principalmente às prioridades políticas dos países desenvolvidos, afirmam os autores.
Para além dos mecanismos relativos à proteção contra importação e promoção das exportações de bens, o estudo analisou medidas específicas, do interesse da EU: requisitos de conteúdo local e subsídios ao comércio de serviços.
Para os autores, as regras e disciplinas da OMC para os requisitos de conteúdo local deixam um espaço bastante reduzido para políticas. As exceções se aplicam apenas aos membros que não são signatários do GPA e para setores que não constam nas listas de compromissos dos membros sob o GATS.
Com relação subsídios ao comércio de serviços, na visão dos autores, as disciplinas da OMC são claramente inadequadas. Embora o GATS inclua um mandato para avançar ainda mais nessa agenda, pouco progresso significativo foi alcançado. Em consequência, os países-membros, recorreram a formas alternativas, como os PTAs.
O estudo examinou igualmente, a função de monitoramento da OMC, particularmente por meio do mecanismo STC dos comitês TBT e SPS. Esta plataforma permite que os membros verifiquem e monitorem as medidas de política uns dos outros, mas também sujeitam as suas próprias à revisão dos pares.
Mesmo que esses instrumentos de monitoramento tenham o potencial de impactar o espaço político dos países-membros, na ausência de uma aplicação prática, os autores consideram ser difícil argumentar que restringem significativamente o espaço político dos membros para a política industrial.
As decisões do DSB da OMC podem igualmente expandir ou reduzir o espaço dos países-membros para a política industrial. Isso é alcançado pela decisão inter partes obrigatória do DSB e também pela jurisprudência criada por meio de suas decisões, que podem encorajar ou desencorajar os membros a tomar certas medidas de acordo com expectativas legítimas de como isso seria percebido pela OMC.
No entanto, mesmo quando as decisões do DSB reduzem o espaço político dos países, esses podem encontrar maneiras alternativas de implementar suas medidas, como mostra o caso das metodologias de ajuste de custos da UE.
Ressaltando a importante missão do sistema multilateral de comércio, como resultado de um esforço consensual em direção a maior previsibilidade e oportunidades de mercado não discriminatórias, os autores concluem que as regras da OMC não existem para impedir a intervenção do Estado ou cercear autonomia dos seus membros. Na verdade, ao limitar medidas arbitrárias e prevenir e remediar conflitos comerciais, as disciplinas da OMC fornecem um espaço político mais “eficaz”, com maior clareza para as decisões políticas comerciais e de investimento.