Carta IEDI
Políticas industriais setor-específicas de sucesso: os casos de China e Coreia do Sul
Diversos países, desenvolvidos ou em desenvolvimento, já adotaram ou ainda adotam políticas industriais que apoiam setores específicos. Há alguma lógica econômica neste tipo de intervenção? Esta é a pergunta que Ernest Liu, pesquisador da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, procura responder em seu artigo “Industrial policies in production networks” focando no desenvolvimento dos ramos da indústria de base. Esta Carta IEDI sintetiza seus principais argumentos e conclusões.
Embora a visão predominante na literatura econômica convencional seja a de que políticas industriais sempre tendem a gerar má alocação de recursos e prejudicar o desenvolvimento econômico, Ernest Liu mostra evidências, a partir das experiências sul-coreana e chinesa, de que há uma racionalidade econômica que justifique aspectos setor-específicos das estratégias industriais.
Por meio de arcabouço teórico detalhado baseado em redes de produção e da análise empírica dos casos da China, no período recente, e da Coreia do Sul, nos anos 1970, o autor conclui que políticas industriais direcionadas a setores a montante na cadeia produtiva (os chamados setores upstream) geraram efeitos agregados positivos em tais economias. Isso porque há um acúmulo de imperfeições de mercado nestes setores, resultante dos encadeamentos de demanda para trás do restante da economia.
Logo, setores no início da cadeia produtiva, em geral ligados à indústria de base e, portanto, provedores de insumos industriais para diversos outros setores produtivos, acumulam distorções econômicas que podem ser positivamente compensadas, em termos agregados para a economia, a partir de políticas industriais que promovam o desenvolvimento destes setores. O sucesso das experiências da Coreia do Sul, com a formulação de política industrial que fomentava as indústrias pesada e química nos anos 1970, e atualmente da China, por meio de diversos instrumentos de política, inclusive ampla participação de empresas estatais em setores estratégicos de base, reforça o argumento.
As conclusões do estudo não apontam, no entanto, quais seriam as melhores políticas industriais, nem tampouco que estas deveriam ser adotadas indefinidamente para os setores. O principal resultado da pesquisa se refere ao potencial econômico positivo que podem gerar estímulos concedidos, de forma prioritária, a setores com maior “centralidade da distorção” (distortion centrality) – um critério que pondera o efeito agregado da expansão marginal de recursos a um dado setor e o custo proporcional à promoção deste setor.
Conforme mostrado nas análises dos casos de Coreia do Sul e China, tais setores correspondem, em grande medida, a setores a montante – aqueles que são amplos fornecedores de insumos aos diversos elos da cadeia produtiva, mas que demandam pouco dos demais setores. Logo, estímulos a estes setores podem ter efeitos positivos sobre o conjunto da economia, uma vez que considerados, deste ponto de vista, setores-chave para o encadeamento produtivo.
Políticas industriais diante das imperfeições de mercado
As políticas industriais para promover setores específicos têm sido historicamente utilizadas em diversos países para alavancar seu desenvolvimento. Pode-se mencionar, por exemplo, os casos do Japão entre 1950 e 1970, de Coreia do Sul e Taiwan entre 1960 e 1980, e mesmo da China atualmente. Nesse sentido, cabe entender como tais políticas industriais podem contribuir para o desenvolvimento econômico de um país.
O pesquisador Ernest Liu, da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, busca apresentar em seu estudo uma análise formal da racionalidade econômica por trás das políticas industriais, dada a presença de encadeamentos setoriais e imperfeições de mercado. Os resultados apontam que os efeitos de imperfeições de mercado se acumulam por meio dos encadeamentos de demanda para trás, de forma que determinados setores concentrem grande parte dessas imperfeições e, consequentemente, criem incentivos para que governos bem-intencionados subsidiem seu desenvolvimento, com impactos positivos significativos sobre a evolução dos demais setores.
Os setores a montante, que fornecem muitos insumos a outros setores e demandam poucos insumos dos demais, seriam os setores-chave a serem incentivados. Tais setores foram os que justamente sofreram algum tipo de intervenção mais pronunciada tanto na Coreia do Sul dos anos 1970 como na China recente, produzindo efeitos agregados positivos em ambos os casos.
As imperfeições ou falhas de mercado referem-se a aspectos de ineficiência do ambiente econômico não relacionados às políticas governamentais. Englobam, por exemplo, custos de transação, fricções contratuais ou fricções financeiras, assim como externalidades da produção e condutas concorrenciais não competitivas.
Tais imperfeições distorcem os preços dos insumos, tornando-os mais elevados e, portanto, elevando os custos de produção. Dada a existência dessas imperfeições de mercado e dos encadeamentos produtivos entre setores, analisa-se como intervenções de política afetam a eficiência agregada da economia. Em outras palavras, mostra-se que, dadas as imperfeições de mercado e suas consequências adversas sobre a alocação de recursos produtivos, há espaço para intervenções de política, buscando promover bem-estar e eficiência econômica.
O autor demonstra que, partindo de uma economia descentralizada, isto é, uma economia com imperfeições de mercado, mas sem intervenção governamental, as políticas industriais podem ser guiadas por um critério chamado de “centralidade da distorção” (distortion centrality). Tal medida captura o efeito agregado da expansão marginal de recursos a um dado setor e o custo proporcional à promoção deste setor. Se, por um lado, subsidiar setores influentes sobre o restante da economia pode trazer benefícios significativos, por outro, subsidiar setores grandes mostra-se, em geral, custoso. Logo, a medida sugerida – que, formalmente, refere-se à razão entre ambos os efeitos mencionados – aponta para o valor social da política de fomento, de forma a gerar o maior benefício – entendido como os efeitos positivos sobre a economia como um todo – com o menor custo.
Nesse sentido, setores com maior “centralidade da distorção” deveriam ser considerados prioritários pelas políticas de incentivo governamental. Tais setores não são necessariamente aqueles com maiores distorções em si, nem os maiores setores ou mais influentes na economia. Correspondem, em geral, a setores a montante que fornecem insumos industriais, direta ou indiretamente, a muitos outros setores distorcidos a jusante na cadeia produtiva. Isso porque os efeitos das distorções resultantes de imperfeições de mercado se acumulam pelos encadeamentos de demanda para trás ao longo da cadeia em uma rede de produção caracterizada como hierárquica, na qual é possível ordenar os setores, de modo que setores classificados no topo forneçam uma parcela desproporcionalmente elevada de sua produção a outros setores bem classificados, e assim por diante, tal como se observa empiricamente nas matrizes de insumo-produto dos países.
Uma vez incentivados, tais setores, associados à indústria de base, podem atenuar as imperfeições de mercado no restante da cadeia produtiva e conduzir a ganhos agregados na economia. A “centralidade da distorção” de um setor é tanto maior quanto mais a montante este setor estiver e quanto mais camadas de encadeamentos distorcidos seus insumos tiverem de passar até alcançarem o consumidor final.
Deve-se salientar que a “centralidade da distorção” existe devido às imperfeições de mercado. Logo, em uma economia eficiente, entendida como aquela em que não há imperfeições de mercado, não caberia nenhum papel às intervenções. Com imperfeições de mercado, por sua vez, a medida de “centralidade da distorção” torna-se um critério importante de avaliação da política, de modo que promover uniformemente todos os setores não geraria ganhos no agregado.
Assim, para que as intervenções se mostrassem efetivas, elas deveriam alocar recursos públicos de maneira diferenciada entre setores, priorizando aqueles com maior “centralidade da distorção”. Caso contrário, poderiam até mesmo agravar as distorções já existentes e gerar perdas no agregado.
O estudo indica que os setores industriais com maior “centralidade da distorção”, tanto na Coreia do Sul como na China, consistiam em fornecedores de insumos intermediários, como metais, máquinas, produtos químicos e equipamentos de transporte. As indústrias leves, por sua vez, que fornecem, sobretudo, bens finais aos consumidores, incluindo setores como produtos alimentícios e produtos para casa, tendiam a apresentar menor “centralidade da distorção”.
Os resultados da pesquisa não sugerem, todavia, que as políticas adotadas pelas economias analisadas – Coreia do Sul e China – foram ótimas. Tampouco se discute o processo de decisão por trás da adoção de política, uma vez que os modelos econômicos não captam os diversos fatores de economia política envolvidos nas escolhas efetuadas por tais economias. Embora a visão predominante na literatura econômica convencional seja a de que políticas industriais tendem a gerar má alocação de recursos e prejudicar as economias em desenvolvimento, o autor mostra que pode haver uma racionalidade econômica que justifique certos aspectos da estratégia industrial sul-coreana e chinesa, bem como que tais políticas podem ter gerado efeitos em cadeia positivos para o desenvolvimento econômico.
O caso da Coreia do Sul
Na década de 1970, mais especificamente entre 1973 e 1979, a Coreia do Sul promoveu um amplo programa de política industrial liderado pelo Estado, conhecido por Heavy-Chemical Industry Drive. O programa se direcionava a seis grupos de setores relacionados a produtos de metal, máquinas, eletrônicos, produtos petroquímicos, automóveis e construção naval. Empresas operando nos setores selecionados recebiam incentivos de política altamente favoráveis. Alguns grandes conglomerados industriais sul-coreanos reconhecidos internacionalmente nos dias de hoje, inclusive, surgiram nessa época, como POSCO e Hyundai Heavy Industries.
Os setores selecionados pela política industrial sul-coreana referiam-se claramente a setores a montante com os maiores níveis de “centralidade da distorção”. Tais setores eram, ademais, grandes fornecedores de insumos para setores não selecionados pela política e demandantes de poucos insumos em contrapartida.
Os resultados do estudo apontam que a promoção dos setores que, de fato, foram promovidos provavelmente levaria a ganhos no agregado da economia. Já a promoção de setores não contemplados pela política da indústria pesada e química tenderia a ser ineficaz e poderia gerar efeitos líquidos negativos. A cada dólar gasto em subsídios aos setores fomentados pela política, calcula-se que houve ganhos adicionais de 16 centavos de dólar no agregado.
O autor também mostra que a política selecionou justamente os principais setores com maior “centralidade da distorção”. Caso fossem promovidos setores considerados prioritários com base em outros critérios possíveis, como maior participação no consumo total ou maior valor adicionado setorial, os resultados poderiam ser negativos no agregado, dada a baixa “centralidade da distorção” de tais setores.
O fomento a setores intensivos em exportação e a setores fortemente dependentes de insumos intermediários resultaria em ganhos no agregado, mas, ainda assim, tais ganhos seriam menores (cerca de 46% e 41%, respectivamente) do que os observados pela seleção das indústrias pesada e química realizada naquele momento na Coreia do Sul. Se promovidos todos os 38 setores com os mais elevados índices de “centralidade da distorção”, seriam obtidos apenas ganhos adicionais moderados – entre 9% e 37% acima dos ganhos efetivamente observados com a política voltada aos setores pesado e químico. Este aspecto reitera a importância da política industrial efetivamente praticada para o desenvolvimento produtivo sul-coreano.
A experiência recente de política industrial da China
A intervenção governamental na economia chinesa possui longa tradição e permanece ainda bastante ativa na atualidade. O governo da China adota um amplo leque de incentivos e instrumentos de política para exercer influência sobre a produção setorial. Dentre as formas de intervenção, destacam-se:
(i) o mercado de crédito, predominantemente controlado pelo Estado chinês, no qual as taxas de juros são fortemente reguladas e os bancos recebem direcionamento de política e praticam prioridades de financiamento entre setores;
(ii) o imposto de renda sobre pessoa jurídica, que segue uma tributação padrão em âmbito nacional com um conjunto de incentivos e isenções fiscais orientados a indústrias específicas; e
(iii) o papel direto exercido pelo Estado na produção, por meio de suas empresas estatais (state-owned enterprises), que não apenas recebem subsídios governamentais, mas também acesso facilitado ao crédito.
Deve-se salientar que as políticas industriais variam substancialmente entre setores na China. A partir de uma amostra de empresas privadas chinesas de setores industriais, a pesquisa indica que a média setorial das taxas de juros efetivamente pagas é de 4,45% ao ano, enquanto setores na mediana da distribuição pagam 4,12% a.a.. Alguns setores chegam a pagar, em média, até 12,33% a.a. e outros, apenas 1,85% a.a.. Empresas nos setores mais endividados apresentam uma razão dívida/ativo que é 1,5 vez maior do que empresas nos setores menos endividados.
Além disso, encontram-se variações significativas entre as empresas de diversos setores no que se refere à parcela de firmas que recebem incentivos tributários, aos impostos de renda de pessoa jurídica efetivamente pagos, à parcela de empresas que recebem subsídios governamentais e ao montante de subsídios recebidos em relação às suas receitas. Também vale destacar que a presença de empresas estatais nos setores é bastante heterogênea, uma vez que a participação de tais empresas no valor adicionado setorial pode variar de apenas 0,66% até 74,5%, sendo, em média, de 17,32%.
Cabe, ainda, enfatizar que as empresas estatais chinesas recebem significativamente mais políticas favoráveis do que as empresas privadas. Em média, a taxa de juros efetivamente paga por empresas estatais corresponde à metade daquela paga por empresas privadas, apesar de as empresas estatais apresentarem, mesmo assim, um endividamento maior, em média, 9 pontos percentuais superior ao endividamento privado. Ademais, é duas vezes mais provável que empresas estatais recebam algum tipo de subsídio do governo para produção do que empresas privadas e, logo, o montante de subsídio recebido em relação às suas receitas também tende a ser maior do que no setor privado.
A partir da análise empírica, considerando as relações produtivas estabelecidas na matriz de insumo-produto chinesa de 2007 e controlando por diversas variáveis entre setores, o autor mostra que, na China atual, empresas privadas em setores com maior “centralidade da distorção” recebem políticas mais favoráveis, como, por exemplo, melhor acesso a financiamento, taxas de juros menores e pagamento de menos tributos. É justamente nestes setores em que existem mais empresas estatais, às quais o governo diretamente oferece crédito e subsídios.
Nos anos 1990, a maior parte dos setores industriais chineses era controlada pelo Estado. Diversas reformas econômicas se seguiram e muitas empresas estatais menores e improdutivas foram privatizadas ou fechadas desde então. As grandes e relativamente bem-sucedidas empresas estatais que permaneceram passaram por um processo de modernização corporativa e se tornaram grandes players no mercado doméstico e internacional.
Há uma visão predominante na literatura econômica convencional de que tais empresas estatais são extremamente capitalizadas e que sua existência impede a alocação mais eficiente de recursos entre os distintos setores. Embora o autor não se contraponha a esta visão, ele argumenta que, em um mundo com diversas restrições de política, as empresas estatais ainda servem como um meio para implementar políticas industriais setoriais, de forma que viabilizar estrategicamente empresas estatais em setores selecionados pode contribuir para expandir a produção setorial e gerar ganhos no agregado do sistema econômico.
O estudo indica que, na China, diferenças setoriais no que tange a crédito subsidiado, incentivos tributários e recursos públicos destinados às empresas estatais produziram efeitos agregados positivos, melhorando a eficiência agregada entre 2% e 5% no conjunto do sistema econômico, controlando por diversas variáveis e realizando variados testes contrafactuais das políticas industriais.
Tal como no caso da Coreia do Sul, apenas dois outros critérios de escolha das políticas de fomento poderiam levar a ganhos no agregado, ainda que menores do que aqueles efetivamente observados a partir das distintas políticas industriais efetivamente implementadas na China. São eles: fomento a setores intensivos em exportação e fomento a setores fortemente dependentes de insumos intermediários. Neste último caso, os ganhos gerados no agregado a partir de incentivos a setores com elevada parcela de insumos intermediários poderiam ser, a depender das especificações do modelo, de 29% a 41% dos ganhos observados a partir das intervenções realizadas na prática.
Por fim, cabe destacar que as políticas industriais implementadas por Coreia do Sul e China, embora tenham produzido efeitos positivos para as respectivas economias, não necessariamente foram ótimas, nem tampouco se discutem os aspectos de economia política subjacentes às escolhas e decisões de se implementar certos incentivos a setores específicos.
Contudo, pode-se concluir que:
(i) as intervenções de política deveriam priorizar e começar pelos setores com maior “centralidade da distorção”, que não correspondem necessariamente aos mais distorcidos de início;
(ii) os ganhos econômicos são maiores se mais recursos forem alocados para tais setores;
(iii) os efeitos de má alocação de recursos a partir de imperfeições de mercado se acumulam por meio de encadeamentos de demanda para trás na cadeia produtiva e, consequentemente, setores a montante tendem a apresentar níveis mais elevados de “centralidade da distorção”, por justamente fornecerem muitos insumos direta e indiretamente a outros setores da economia, ao mesmo tempo em que demandam pouco de outros setores; e
(iv) os incentivos praticados nos casos de Coreia do Sul e China reforçam os argumentos acima listados, pois constataram-se ganhos no agregado a partir de políticas industriais voltadas aos setores que, na prática, correspondiam àqueles com maior “centralidade da distorção”.