Análise IEDI
América Latina entre riscos e oportunidades da Indústria 4.0
A Indústria 4.0 se caracteriza por integração físico-virtual possibilitada pelos avanços tanto em tecnologias de operação, responsáveis por maior automação e robotização dos processos produtivos, como tecnologias de informação, incluindo Internet das Coisas, análise de Big Data e sistemas de inteligência artificial. Seus impactos têm se traduzido em transformações dos modelos manufatureiros tradicionais, desde robotização nas fábricas até processos mais complexos e autônomos ao longo da cadeia de valor.
Contudo, ainda permanecem muitas incertezas acerca desse fenômeno, sua evolução e seus desdobramentos sobre os diferentes países, como o IEDI já assinalou em outras publicações sobre o tema. Experiências internacionais acerca da Indústria 4.0 foram relatadas nas Cartas IEDI n. 797 “Indústria 4.0: Desafios e Oportunidades para o Brasil” de 21/07/17, n. 803 “Indústria 4.0: O Futuro da Indústria” de 01/09/17, n. 807 “Indústria 4.0: A Política Industrial da Alemanha para o Futuro” de 29/9/17, n. 820 “Indústria 4.0: O Plano Estratégico da Manufatura Avançada nos EUA” de 11/12/17, n. 823 “Indústria 4.0: Políticas e estratégias nacionais face à nova revolução produtiva” de 29/12/17, n. 827 “Indústria 4.0: A iniciativa Made in China 2025” de 26/01/18 e n. 831 “A Coreia do Sul e a Indústria do Futuro” de 16/02/2018.
A Análise de hoje sintetiza o trabalho “La política industrial 4.0 en América Latina”, de autoria de Mario Castillo, Nicolo Gligo e Sebastián Rovira, um dos capítulos de “Políticas industriales y tecnológicas en América Latina”, publicado pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) em 2017. Nele, são discutidos os avanços que vêm ocorrendo nos países desenvolvidos e, de maneira ainda incipiente, na América Latina sobre o fenômeno da Indústria 4.0 para, diante disso, propor desenhos de política industrial compatíveis à realidade da região.
Em nível internacional, constata-se que os impactos econômicos da Indústria 4.0 decorrentes dos avanços de cada uma de suas tecnologias e da interação entre elas são diversos em termos de produtividade, custos e emprego, além de flexibilidade na produção e surgimento de novos produtos, serviços e modelos de negócios. Estima-se que a consolidação dessa quarta revolução industrial deva ocorrer em uma década, dada a rápida difusão das novas tecnologias. Encabeçam o desenvolvimento dessas tecnologias Estados Unidos, Alemanha, Japão e China.
Na América Latina, a adoção das tecnologias subjacentes à Indústria 4.0 se apresenta em fase incipiente, correndo-se inclusive o risco de se ampliar o diferencial tecnológico em relação aos países avançados nos próximos anos. Os principais países da região ainda não alcançaram as capacidades mínimas em cinco tecnologias habilitadoras da Indústria 4.0, a saber, conectividade, infraestrutura de armazenamento de dados, computação em nuvem, análise de Big Data e Internet das Coisas.
O atraso tecnológico na América Latina se reflete em um baixo nível de digitalização dos setores industriais, apesar do elevado potencial de mudança estrutural oferecido pela Indústria 4.0. Para isso se concretizar, entretanto, requer-se ampla melhoria na qualidade do sistema educacional dos países para ofertar mão de obra qualificada, de forma que educação e capacitação, por um lado, e mudança estrutural da base tecnológica, por outro, caminhem juntas.
Cabe, portanto, avançar em uma política industrial 4.0 que, sob incerteza tecnológica, seja mais flexível e inovadora. Os pesquisadores da Cepal recomendam desenhos de política industrial que contemplem tanto a transferência e catching-up tecnológico como também o desenvolvimento de inovações em setores estratégicos, atentando-se às distintas realidades dos países.
As propostas de política industrial devem compreender três dimensões principais, a saber, inserção internacional, infraestrutura e regulação, e oferta e demanda. Assim, devem priorizar a integração da região às redes tecnológicas internacionais para absorção e transferência de conhecimentos, a elevação dos investimentos que permitam conectividade e transferência de dados no montante e na velocidade requeridos pela Indústria 4.0, avanços nos marcos regulatórios e segurança das redes, além de coordenação entre políticas e instrumentos de fomento às inovações digitais.
Por fim, mas não menos importante, faz-se necessária uma maior cooperação e coordenação regional. Fatores críticos ao desenvolvimento das novas tecnologias da Indústria 4.0 na América Latina relacionam-se a questões de infraestrutura, capacidades tecnológicas e governança, para as quais se esperam, apesar de elevada heterogeneidade entre os países, respostas conjuntas e articuladas em âmbito regional.
A Indústria 4.0 em nível internacional. A análise da Indústria 4.0 em nível internacional envolve cinco dimensões: (i) o impacto econômico da Indústria 4.0; (ii) a velocidade da mudança tecnológica; (iii) os desafios para o desenvolvimento da Indústria 4.0; (iv) a liderança da Indústria 4.0; e (v) a relação entre automação e desemprego.
Os avanços de cada uma das tecnologias associadas à Indústria 4.0, bem como a interação entre elas, produzem mudanças disruptivas nos processos produtivos, com impactos diretos em termos de produtividade, custos e emprego. Também possibilitam maior flexibilidade na produção e surgimento de novos produtos, serviços e modelos de negócios. Há diversas estimativas de empresas de consultoria sobre esses impactos, apontando para importantes ganhos de produtividade e redução de custos de produção, sobretudo em países como Alemanha, mas também Estados Unidos e Japão, a partir da implementação das tecnologias digitais nos processos produtivos.
A inter-relação entre as novas tecnologias, característica da Indústria 4.0, facilita sua rápida difusão, cuja evolução cresce a taxas exponenciais e mais rapidamente que ondas tecnológicas anteriores. As projeções indicam que a consolidação da quarta revolução industrial ocorrerá em torno de uma década. Cinco fatores, considerados chaves para a consolidação da Indústria 4.0, têm apresentado evolução positiva. São eles: (i) maior viabilidade técnica das soluções tecnológicas para automação interativa de processos, atividades e tarefas; (ii) menores custos econômicos das plataformas e soluções de hardware e software; (iii) melhora na rentabilidade econômica de alternativas de automação como consequência de restrições de oferta e maiores custos trabalhistas; (iv) obtenção de benefícios econômicos associados a uma maior eficiência, melhor qualidade e redução de custos; e (v) contexto regulatório favorável.
Há, no entanto, elementos que ainda se apresentam como desafios bastante relevantes ao desenvolvimento da Indústria 4.0. Destacam-se quatro: (i) definição de padrões de comunicação e garantia de segurança das redes frente à transmissão de dados e interoperabilidade entre sistemas; (ii) capacidade analítica de elevado volume de dados, por meio de algoritmos, aplicações e soluções que permitam analisar e administrar os dados coletados por milhares de sensores conectados a máquinas e sistemas; (iii) infraestrutura das redes de comunicação dentro das empresas e das empresas com o ambiente externo, melhorando as condições de conexão e acesso em termos de largura de banda, velocidade e latência; e (iv) disponibilidade de recursos humanos qualificados, com conhecimentos específicos para desenvolvimento, implementação e uso das novas tecnologias digitais.
A Indústria 4.0 tem sido liderada por consórcios de empresas internacionais especializadas em automação industrial, hardware e software, e seu desenvolvimento tem se concentrado em países que apresentam um ecossistema digital sofisticado e fortes alianças público-privadas. Encabeçam o desenvolvimento das novas tecnologias Estados Unidos, Alemanha, Japão e China, nos quais há importantes iniciativas de políticas públicas relacionadas à Indústria 4.0.
Em diversas economias avançadas, observa-se clara redução de empregos industriais, tendência que deve se acentuar com o rápido desenvolvimento das tecnologias associadas à Indústria 4.0. Com a queda dos custos de processamento e armazenamento computacional e o extraordinário avanço alcançado pelas tecnologias de inteligência artificial e robótica, é crescente a automação de tarefas cognitivas antes realizadas apenas por pessoal qualificado. Os impactos negativos da automação sobre o mercado de trabalho em termos da quantidade de empregos, sobretudo rotineiros, já são esperados. Ao mesmo tempo, contudo, argumenta-se que as inovações têm o potencial de aumentar a produtividade e promover a criação de novos postos de trabalho com características distintas às das ocupações tradicionais, de modo que novas habilidades profissionais para manejar e administrar as novas tecnologias sejam requeridas.
A Indústria 4.0 na América Latina. A Indústria 4.0 nos países latino-americanos se encontra em fase incipiente. Ainda é baixa a adoção de tecnologias digitais nos processos produtivos. As atividades digitais na região estão mais associadas ao consumo – por meio do uso da Internet para jogos, redes sociais e comércio eletrônico – do que à produção, cuja automação é baixa. Coloca-se inclusive o risco de que o diferencial tecnológico entre países latino-americanos e países avançados se amplie nos próximos anos, uma vez que os países da região não alcançaram, simultaneamente, as capacidades mínimas requeridas por cinco das principais tecnologias habilitadoras da Indústria 4.0. Tais tecnologias incluem: conectividade, infraestrutura de armazenamento de dados, computação em nuvem, análise de Big Data e Internet das Coisas. A velocidade de conexão e a densidade de sensores e robôs na região, por exemplo, encontram-se bastante aquém do observado em países avançados.
Este atraso tecnológico se traduz em baixo nível de digitalização dos setores industriais na América Latina. A Indústria 4.0 apresenta, todavia, elevado potencial de mudança estrutural dos setores. Seu uso por parte de empresas na região, embora limitado, encontra-se em setores, tais como a indústria automotiva no México e no Brasil, a indústria florestal e extrativa mineral no Chile, a agroindústria na Argentina, além dos setores de energia elétrica, comércio varejista e serviços de logística em diversos países. A região também carece de mais iniciativas públicas relacionadas à implementação e difusão da Indústria 4.0.
A Indústria 4.0, aliás, consiste em importante aliado para enfrentar os desafios de produtividade e competitividade das economias da região, considerando a necessidade de diversificação produtiva, a crescente urbanização e o envelhecimento da população. Identifica-se, porém, a baixa qualidade do sistema educacional como principal obstáculo para que a região se adapte às mudanças tecnológicas. Há fortes restrições de oferta de recursos humanos qualificados e, portanto, a necessidade de formação de trabalhadores adaptados às novas demandas tecnológicas. É necessário que, em paralelo à maior oferta de trabalhadores com nível educacional mais elevado, também ocorra um incremento das atividades que demandem essas capacidades. Logo, educação e capacitação, por um lado, e mudança estrutural da base tecnológica, por outro, devem caminhar juntas para que se produzam efeitos significativos sobre a economia.
A Política Industrial. Neste contexto, cabe se perguntar sobre qual o melhor momento de intervir com uma política industrial 4.0. Ao se esperar para apoiar a transferência tecnológica somente de inovações consolidadas, pode-se perder as vantagens associadas ao líder de uma determinada tecnologia e mesmo ampliar o atraso tecnológico em relação aos países desenvolvidos e demais competidores. Por outro lado, ao se fomentar a rápida adoção de novas tecnologias, pode-se incorrer no risco e nos custos de promover tecnologias que não se transformem na trajetória tecnológica dominante. Sob incerteza tecnológica, cabe avançar em uma política industrial 4.0 mais flexível e inovadora, preparando as empresas para avaliar as tecnologias, fazer bom uso delas, inserir-se na discussão mundial e acelerar os processos de difusão e adoção de novas tecnologias.
Também cabe se perguntar sobre o enfoque da política industrial, se concentrado em esforços para se adotar as tecnologias estrangeiras ou para aproveitar as oportunidades abertas pelas novas tecnologias e pular esta etapa promovendo o desenvolvimento de tecnologias próprias. Esta última possibilidade depende das características dos países, setores, empresas e tecnologias em um contexto de trajetória tecnológica ainda incerto. Vale ressaltar que as diferenças entre países e entre setores de um mesmo país na América Latina são grandes em relação à adoção das tecnologias da Indústria 4.0. Recomenda-se, portanto, desenhar uma política de apoio que contemple tanto a transferência e catching-up tecnológico como também mecanismos para desenvolver inovações em setores estratégicos, atentando-se às distintas realidades dos países da região.
Para o desenho de política, é importante distinguir três categorias de empresas que participam da Indústria 4.0:
(1) Pelo lado da oferta, encontram-se as empresas provedoras de automação industrial, sobretudo estrangeiras, com elevada taxa de inovação de produtos, embora com incerteza acerca dos padrões de desenho dominantes.
(2) Pelo lado da demanda, estão as empresas industriais locais usuárias que se aproveitam das novas aplicações tecnológicas para melhorar processos e sua operação na cadeia de valor.
(3) Pelo lado da infraestrutura, identificam-se empresas locais e estrangeiras de hardware, software e redes de comunicação que oferecem as plataformas de integração de sistemas e comunicação.
A participação de empresas latino-americanas em consórcios internacionais referentes a temas da Indústria 4.0, como segurança e interoperabilidade, assim como a construção de espaços de colaboração público-privados na região com o objetivo de promover inovações industriais por meio da interação entre empresas provedoras e usuárias de tecnologias se configuram em importantes iniciativas de política.
Proposta de Política Industrial 4.0. Os impactos de uma política industrial 4.0, notadamente sobre produtividade, diversificação produtiva e sustentabilidade ambiental, dependerão de seu desenho, alcance e implementação, bem como da evolução e maturidade de cada componente do ecossistema – leia-se, cadeia de valor – da Indústria 4.0. Tal ecossistema é constituído por três componentes principais, a saber, infraestrutura, plataformas e usuários, cujo grau de desenvolvimento determinará o tipo de políticas públicas necessárias em cada país.
A infraestrutura fornece as bases para a conectividade local e internacional a partir de redes de banda larga. As plataformas da Indústria 4.0 abrangem indústrias e serviços, como eletrônica, software e análise de Big Data, que permitem a implementação das aplicações digitais em âmbito industrial. Os usuários se referem às empresas e comunidades que, mediante sua demanda por serviços e aplicações, definirão o grau de absorção das tecnologias digitais. Permeia esse ecossistema da Indústria 4.0 a base institucional da economia, isto é, fatores comuns a distintos mercados e atividades. Diante disso, os investimentos na Indústria 4.0 terão impacto maior na medida em que sejam acompanhados por políticas que assegurem o desenvolvimento de fatores institucionais complementares, por exemplo, nas esferas macroeconômica, de recursos humanos e de inovação.
As propostas de política industrial devem atuar sobre fatores críticos à implementação do ecossistema da Indústria 4.0, reunidos em três dimensões principais. São elas:
(i) inserção tecnológica internacional: conectar a região às redes tecnológicas internacionais e transferir aos países conhecimentos e capacidades tecnológicas em novas áreas
(ii) infraestrutura e regulação: elevar os níveis de investimento em infraestrutura, particularmente em banda larga fixa e móvel de alta velocidade, que permita a conectividade e transferência de dados no montante e na velocidade requeridos pela Indústria 4.0 ao mesmo tempo em que se avance na garantia de marcos regulatórios e segurança para as redes virtuais
(iii) políticas de oferta e demanda: coordenar as políticas para fortalecer capacidades tecnológicas e promover inovações digitais nos setores produtivos por meio de um conjunto de instrumentos governamentais de apoio, dentre os quais se destacam linhas de financiamento e aportes de capital às novas empresas, fomento à inovação tecnológica, estabelecimento de centros de pesquisa e execução de programas de compras públicas.
Por fim, dado o atraso tecnológico e a elevada heterogeneidade digital entre os países latino-americanos, torna-se imprescindível uma maior cooperação e coordenação regional. Uma iniciativa inédita na região para abordar este desafio consiste na agenda digital para a América Latina e o Caribe (eLAC 2018), que fomenta o uso de tecnologias digitais como instrumentos para o desenvolvimento sustentável. Aos fatores críticos ao desenvolvimento da Indústria 4.0 na América Latina, relacionados a questões de infraestrutura, capacidades tecnológicas e governança, cabem respostas conjuntas e articuladas em âmbito regional, envolvendo todas as partes interessadas na Indústria 4.0, como governo, setor privado e academia.