Análise IEDI
Panorama do retrocesso industrial de longo prazo
Os dados do PIB de 2018 divulgados recentemente pelo IBGE mostram que o retrocesso da indústria brasileira na estrutura produtiva do país continua avançando em ritmo forte. No ano passado, a participação da indústria de transformação diminuiu quase 1 ponto percentual em relação a 2017, atingindo apenas 11,3% do valor adicionado (VA) total mensurado a preços básicos e correntes ou 9,7% do PIB geral (incluindo impostos). Este foi o menor percentual de toda a série histórica das Contas Nacionais do Brasil, iniciada em 1947.
O economista Paulo Morceiro, do NEREUS-USP, construiu uma série de longo prazo que ilustra esta evolução de declínio relativo da indústria brasileira, compatibilizando e ajustando as diferentes metodologias empregadas pelo IBGE ao longo do tempo. As principais evidências deste trabalho são apresentadas a seguir.
Nota-se que o processo de industrialização brasileiro avançou bastante durante três décadas, dos anos 1950 até os anos 1980. A parcela da indústria de transformação no valor adicionado total elevou-se de 16% na década de 1950 para aproximadamente 27% do VA no início da década de 1980.
Neste período a industrialização brasileira atingiu o seu apogeu. O país fabricava os produtos de praticamente todos os setores industriais existentes nos países avançados, consolidava o parque produtivo da indústria 2.0 e instalava alguns segmentos que ficariam conhecidos como indústria 3.0. Vale ressaltar que o crescimento econômico do Brasil foi elevado e teve o setor industrial na liderança durante as três décadas de industrialização.
No entanto, a industrialização brasileira perdeu fôlego na década de 1980. Desde então, ocorreram duas ondas intensas de retrocesso da participação industrial. Não por acaso, nestes períodos a economia brasileira como um todo apresentou taxas de crescimento inferiores às da economia mundial.
Na primeira fase, que abrange a segunda metade da década de 1980 até 1998, a parcela da manufatura recuou de 27,3% para 13,8% na composição do valor adicionado do país. Na origem deste movimento estavam, nos anos 1980, os patamares elevadíssimos de inflação – retardando decisões de investimento –, e, na década de 1990, o processo brusco de abertura comercial e a sobrevalorização da taxa de câmbio, notadamente, após a implantação do Plano Real.
Além disso, durante esta primeira onda o Brasil praticamente abriu mão de adotar uma política industrial que promovesse a transição de um modelo de industrialização por substituição de importações por outro modelo mais aberto, integrado à economia internacional, que pudesse criar competências em cadeias de maior complexidade tecnológica. Assim, o país se distanciou ainda mais daqueles que ocupavam posições de vanguarda ao investirem pesadamente em ciência, tecnologia e inovação para consolidar a indústria 3.0.
A segunda fase de intenso regresso industrial, inicia-se em meados dos anos 2000 e se arrasta até o período atual, com perda de 6,5 p.p. na estrutura produtiva do país. O PIB da indústria de transformação saiu de 17,8% para 11,3% entre 2004 e 2018.
Na maior parte deste período, enfatiza Paulo Morceiro, a taxa de câmbio manteve-se em patamares de forte apreciação, comprometendo ainda mais a competitividade do produto nacional, que já sofria muito de outros custos sistêmicos, tais como a elevada e complexa estrutura tributária, gargalos de infraestrutura, baixo crescimento de produtividade, etc.
Ademais, também marcaram os anos 2000 uma crise internacional de grandes proporções em 2008, a instabilidade político-econômica brasileira e a paralisação do investimento público, por ter sido o principal alvo da contenção de gastos orçamentários a partir de 2015.
Segundo o autor, durante a segunda onda da chamada desindustrialização, um fenômeno qualificado como vazamento de demanda para o exterior manifestou-se no Brasil, isto é, as importações cresceram num ritmo mais intenso que a indústria de transformação doméstica, aumentando, consequentemente, o peso dos importados na demanda interna. Três momentos deste processo foram identificados por Paulo Morceiro:
•De 2005 até 2014 as importações aumentaram simultaneamente com a redução da parcela da indústria de transformação no valor adicionado (VA) total, evidência de elevada correlação entre vazamento de demanda e retrocesso do setor.
•Entre 2015 e 2016 as importações diminuíram, em função da recessão econômica do país, e a parcela da manufatura no VA se estabilizou, já que a crise afetou tanto a indústria como o PIB total.
•Em 2017 e, principalmente, em 2018, o retrocesso se aprofundou e houve aumento substantivo das importações.
Segundo o IBGE, o setor externo contribuiu negativamente com meio ponto percentual do PIB em 2018, pois as importações (+8,5%) avançaram num ritmo duas vezes maior que as exportações (+4,1%). As maiores altas nas importações ocorreram em refino de petróleo (sob influência da mudança nas regras do Repetro), materiais eletrônicos e equipamentos de comunicação, e vestuário.
O avanço das importações no mercado interno, além de reduzir o crescimento do PIB, sinaliza que a indústria doméstica tem perdido competitividade para os importados. Competir com países que possuem uma taxa de câmbio mais competitiva, política industrial e tecnológica robusta e inteligente, menor tributação e grandes investimentos em infraestrutura, como a China, tem sido difícil para a indústria nacional, que convive com problemas das mais diferentes naturezas.
Como o IEDI apontou no documento “Industria e o Brasil do Futuro”, do final do ano passado, o desempenho da indústria brasileira tem sido prejudicado por entraves macroeconômicos, mecanismos de financiamento do investimento escassos e muitas vezes caros, incompatíveis com a rentabilidade das empresas do setor, gargalos de infraestrutura, sistema tributário complexo, oneroso e gerador de insegurança jurídica, suporte insuficiente e pouco articulado de incentivos à ciência, tecnologia e inovação, entre tantos outros problemas que comprometem a produtividade e a competitividade do setor.
Nesse ritmo, a indústria brasileira caminhará para um percentual do PIB inferior a dois dígitos, algo que pode acontecer dentro dos próximos dois anos se as tendências em curso de retrocesso industrial e de vazamento de demanda para o exterior continuarem.