Carta IEDI
A Economia Mundial e a Covid-19
A Carta IEDI de hoje analisa os cenários para o crescimento da economia mundial para 2020 e 2021 realizados pelos principais organismos multilaterais. Depois de um período de forte incertezas, inclusive sobre a real eficácias das medidas emergenciais dos governos, as novas projeções se mostram mais convergentes e apontam para quedas menos acentuadas.
De acordo com o cenário básico do FMI de outubro de 2020, a economia global encolherá -4,4% em 2020, percentual um pouco inferior ao estimado em junho (-4,9%). Essa revisão decorre, de um resultado da atividade econômica menos desfavorável no segundo trimestre de 2020 do que a prevista no cenário precedente. As projeções da UNCTAD e da OCDE apontam para uma contração no mesmo patamar: -4,3% e -4,5%, respectivamente.
Para 2021, os cenários do FMI (+5,2% contra +5,4% em junho) e da OCDE (+5,0%) praticamente convergem, enquanto a UNCTAD estima uma recuperação mais tímida (+4,0%). Considerando as projeções do Fundo, no final de 2021 o PIB global estará 0,6 ponto percentual acima do patamar de 2019.
Mesmo com a revisão do cenário, a crise provocada pela pandemia do Covid-19, que o FMI denominou de “great lockdown”, continua sendo a maior crise econômica global desde os anos 1930. A crise financeira global (CFG) de 2008 provocou somente uma “grande recessão”, resultando em recuo de apenas -0,1% do PIB mundial em 2009.
A atualização das projeções em outubro, apontando uma recessão global um pouco menos severa em 2020 do que indicava o cenário de julho, decorreu, integralmente, da menor contração projetada para as economias avançadas (EAs), de -5,8% contra -8% no cenário precedente.
Muito disso em função do melhor desempenho do PIB dos Estados Unidos e da área do Euro no 2º trim/20. Já a projeção para a retomada dessas economias em 2021 recuou de -4,8% para -3,9%, o que resultará num PIB cerca de 2% abaixo do patamar de 2019.
No caso das Economias de Mercado Emergente e em Desenvolvimento (EMED), o cenário atual projeta uma contração de -3,3% em 2020, ligeiramente maior que em junho (-3,0%). Já a retomada em 2021 permaneceu praticamente no mesmo patamar (+6% contra +5,9%). A atividade econômica deve se retrair em todas regiões, com maior heterogeneidade do que nas economias avançadas.
A Ásia emergente e em desenvolvimento deve registrar a recessão mais suave (-1,7%) em 2020, embora mais intensa que a prevista em junho (-0,8%). Em 2021 a retomada deve ser de +8%. A revisão do cenário para este ano decorre da mudança nas projeções para as duas maiores economias da região.
Por um lado, a projeção de crescimento para a economia chinesa em 2020 praticamente dobrou (+1,0% em junho para +1,9% em outubro), em decorrência da normalização mais rápida do que o previsto da atividade econômica, das políticas contracíclicas e da retomada as exportações.
Por outro lado, o cenário para a Índia piorou, indo na contramão da tendência geral de melhora nas economias emergentes (-4,5% em jun/20 para -10,3% em out/20) devido à maior intensidade da pandemia e consequente maior queda do PIB no segundo trimestre do que o antecipado.
Nas demais regiões, o cenário aponta para uma recessão mais intensa e uma retomada menos robusta do que na Ásia emergente e em desenvolvimento. A América Latina e Caribe, onde vários países foram seriamente afetados pela pandemia, registrará a maior retração (-8,1%) em 2020, sendo sucedida por uma retomada tímida em 2021 (+3,6%).
As perspectivas do FMI para a economia brasileira melhoraram significativamente para 2020, passando de -9,4% no cenário de jun/20 para -5,8% em outubro. Em compensação, pioraram no caso de 2021, apontando para uma retomada mais limitada do PIB brasileiro: +2,8% contra +3,6% no cenário de junho.
Com exceção da China, as perspectivas para as EMEDs continuam precárias em função de uma conjunção de fatores, dentre os quais: a pandemia ainda continua se espraiando e os sistemas de saúde permanecem sobrecarregados; a maior importância de setores especialmente atingidos, como turismo; a maior dependência de financiamento externo e das remessas de emigrantes. O PIB desse grupo, excluindo a China, deve retrair -5,7% em 2020 e crescimento em 2021 (+5,0%) não será suficiente para retornar ao patamar de 2019.
O FMI destaca que, embora menos incerto do que em junho, seu cenário básico continua baseado em hipóteses que podem não se confirmar em função da imprevisibilidade de vários fatores, como a trajetória da pandemia, os custos de ajustamento que ela impõe à economia, a eficácia da resposta de política econômica e a evolução da aversão ao risco dos investidores globais.
A segunda onda do COVID-19 em curso na Europa e as novas restrições que estão sendo adotadas ilustram a dificuldade inerente à elaboração de cenários econômicos diante de fenômenos inéditos.
Para minimizar a probabilidade de materialização dos riscos negativos, que continuam predominando, o FMI recomenda como prioridade imediata de política a garantia de recursos suficientes para os sistemas de saúde e para limitar os prejuízos econômicos. Para tanto são necessárias iniciativas em âmbito multilateral e nacional.
A cooperação internacional é necessária para dar suporte a esses sistemas, bem como para auxiliar financeiramente as economias emergentes e em desenvolvimento, sobretudo as de baixa renda, mediante redução de dívida e financiamento concessional.
Embora o G20 tenha lançado em abril a Debt Service Suspension Initiative (DSSI) que concede a 73 países de renda baixa a possibilidade de suspensão do serviço da dívida oficial com credores bilaterais (inicialmente até dezembro de 2020, prazo estendido para meados de 2021 em outubro), o FMI destaca que setor privado também precisa conceder tratamento similar aos países.
Em âmbito nacional, o FMI reconhece que as economias avançadas, enquanto emissoras de moeda reserva, tem maior raio de manobra para a adoção de políticas fiscais expansionistas do que as emergentes, e recomenda a manutenção dessas políticas enquanto a crise persistir.
Além disso, regras fiscais que imponham restrições a iniciativas contracíclicas devem ser suspendidas temporariamente, em combinação com um compromisso de gradual consolidação compatível com o cumprimento das regras no médio prazo.
Do lado das receitas, os governos devem considerar a alta progressiva dos impostos sobre a parcela mais rica da população e/ou os setores menos afetados. Uma gestão prudente da dívida pública, com alongamento de prazos e manutenção das taxas de juros em patamares baixos enquanto for possível, pode liberar recursos que seriam canalizados para o pagamento do serviço da dívida para medidas que contribuam tanto para amenizar a crise, dentre as quais programas de transferência de renda e seguro-desemprego. À medida em que a crise se esvaneça, parte desses recursos devem ser canalizados para investimentos públicos.
Introdução
Esta carta IEDI apresenta o cenário atual do Fundo Monetário Internacional (FMI) para o desempenho da economia global em 2020 e 2021 divulgado no World Economic Outlook de outubro. A primeira seção sumariza esse cenário e, a título de comparação, os cenários da UNCTAD e da OCDE divulgados em setembro. A segunda seção analisa o impacto do choque da Covid-19 sobre a economia global, subjacente ao cenário do FMI.
Cenário para a economia global
De acordo com o cenário básico do FMI de outubro de 2020, a economia global contrairá 4,4% em 2020, percentual um pouco inferior ao estimado em junho (-4,9%). Essa revisão decorre, sobretudo, da incorporação de informações sobre o desempenho da economia global, apontando uma trajetória menos desfavorável da atividade econômica no segundo trimestre de 2020 do que a prevista no cenário precedente. As projeções da UNCTAD e da OCDE apontam para uma contração no mesmo patamar (-4,3% e -4,5%, respectivamente).
Para 2021, os cenários do FMI (+5,2% contra +5,4% em junho) e da OCDE (+5,0%) praticamente convergem, enquanto a UNCTAD estima uma recuperação mais tímida (+4,0%). Considerando as projeções do Fundo, no final de 2021 o PIB global estará 0,6 pontos percentuais acima do patamar de 2019.
O FMI destaca que, embora menos incerto, seu cenário básico continua baseado em hipóteses que podem não se confirmar em função da imprevisibilidade de vários fatores, como a trajetória da pandemia, os custos de ajustamento que ela impõe à economia, a eficácia da resposta de política econômica e a evolução da aversão ao risco dos investidores globais. A segunda onda de COVID-19 em curso na Europa e as novas restrições que estão sendo adotadas ilustram a dificuldade inerente à elaboração de cenários econômicos diante de fenômenos inéditos.
As principais hipóteses subjacentes ao cenário básico atual do Fundo são:
• O distanciamento social se prolongará até 2021, mas será reduzido progressivamente à medida em que as vacinas que já ingressaram na fase final de teste sejam lançadas, a cobertura da vacinação se expanda e demais terapias sejam aperfeiçoadas, com as transmissões locais atingindo baixos patamares em todos países no final de 2022; as novas regras de higiene e segurança nos locais de trabalho nos países em que a pandemia já atingiu o seu pico serão eficazes em manter as taxas de infecção baixas e, naqueles que ainda se deparam com o aumento dessas taxas, novas medidas de confinamento em locares específicos podem ser adotadas, mas o cenário descarta a adoção de medidas semelhantes em escala nacional.
• A forte contração econômica em 2020 afetará negativamente o produto potencial em graus diferenciados entre os países, dependendo de vários fatores, dentre os quais a extensão do encerramento de empresas, a saída de trabalhadores desalentados da oferta de trabalho e possíveis desajustamento entre a oferta e demanda de recursos (setoriais, ocupacionais etc.).
• A política econômica continuará contracíclica e as condições financeiras favoráveis; o cenário considera um estímulo fiscal de US$ 6 trilhões na forma de gastos, redução de impostos e subsídios em âmbito global (com base em medidas anunciadas e implementadas até o momento da sua elaboração), e uma orientação significativamente menos acomodatícia em 2021; no âmbito da política monetária, os bancos centrais das maiores economias não devem alterar sua orientação até 2025.
• Os projeções para os preços das commodities e para o volume do comércio internacional melhoraram em relação ao cenário de junho em linha com revisão da projeção para o desempenho da economia global: o preço à vista médio do petróleo recuará em torno de 32% em 2020, atingindo US$ 41 o barril, mas registrará alta de 12% em 2021, se elevando para US$ 43 o barril; os preços das commodities não-energéticas (metálicas e agrícolas) aumentarão 5,6% em 2020 e 5,1% em 2021; o volume do comércio internacional deve contrair 10,4% em 2020 (similar à registrada em 2009, apesar da maior queda do PIB global, devido às diferenças entre as duas crises) e crescer 8,3% em 2021.
Assim, como já ressaltado na Carta IEDI n. 994, a crise provocada pela pandemia de Covid-19 - que o FMI denominou de “great lockdown” - é a maior crise econômica global desde os anos 1930. Enquanto as três instituições multilaterais preveem uma contração para a economia global em torno de 4,4% esse ano, a crise financeira global (CFG) de 2008 provocou somente uma “grande recessão” (recuo de 0,1% em 2009).
A revisão do cenário entre junho e outubro, apontando uma recessão global um pouco menos severa em 2020, decorreu, integralmente, da menor contração projetada para as economias avançadas (EAs), de 5,8% (mesmo percentual da UNCTAD) contra 8% no cenário precedente - em função, principalmente, do melhor desempenho do PIB dos Estados Unidos e da área do Euro no segundo trimestre, relativamente ao então previsto (ver próxima seção). Já a projeção para a retomada dessas economias em 2021 recuou de 4,8% para 3,9%, o que resultará num PIB cerca de 2% abaixo do patamar de 2019.
No âmbito das EAs, o cenário para 2020 melhorou para todos países/regiões, embora em diferentes intensidades, bem como para o grupo “Outras economias avançadas”. Os Estados Unidos devem registrar a recessão menos intensa em 2020 (-4,3%), mas, em contrapartida, o ritmo da retomada em 2021 (+4,5%) será maior somente ao previsto para o Japão (2,3%).
Já a área do Euro deve contrair 8,3% em consequência da recessão mais profunda no primeiro trimestre do ano, mas a taxa de crescimento em 2021 será maior (+5,2%). A recessão será ainda mais forte no Reino Unido (-9,8%), bem como a recuperação em 2021, diante da base mais baixa (+5,9%).
O Canadá também enfrentará uma contração expressiva da atividade econômica esse ano (-7,1%) e uma retomada no mesmo ritmo que a área do euro. Nas outras EAs da Ásia (Coréia do Sul, Taiwan, Hong Kong e Singapura) – que tem um peso elevado no grupo “Outras economias avançadas” – a recessão será mais suave, já que o maior sucesso na contenção da pandemia resultou numa queda menor do PIB no primeiro semestre.
No caso das Economias de Mercado Emergente e em Desenvolvimento (EMED), o cenário atual projeta uma recessão de 3,3% em 2020, ligeiramente maior que em junho (-3,0%); já a retomada em 2021 permaneceu praticamente no mesmo patamar (+6% contra +5,9%). A atividade econômica deve retrair em todas regiões, com uma maior heterogeneidade no desempenho do que nas EAs.
A Ásia emergente e em desenvolvimento deve registrar a recessão mais suave (-1,7%) em 2020, embora mais intensa que a prevista em junho (-0,8%), bem como o maior ritmo de retomada em 2021 (8,0%). A revisão do cenário para esse ano decorre da mudança nas projeções para as duas maiores economias da região.
Por um lado, o cenário para China melhorou desde junho devido à normalização mais rápida do que o previsto da atividade econômica após o fim do confinamento na maioria do país no início de abril, que resultou, ao lado de políticas contracíclicas e retomada as exportações, num desempenho também melhor que o esperado no segundo trimestre de 2020. Com isso, a projeção de crescimento para a economia chinesa em 2020 praticamente dobrou (1,0% em junho para 1,9% em outubro), enquanto para 2021 permaneceu no mesmo patamar (8,2%), o que resultará num crescimento acumulado de 10% no biênio 2020-2021.
Por outro lado, o cenário para a Índia piorou, indo na contramão da tendência geral de melhora entre junho e outubro (-4,5% para -10,3% nos mesmos meses) devido à maior intensidade da pandemia e consequente maior queda do PIB no segundo trimestre do que o antecipado. A maior retração será sucedida por uma recuperação mais intensa em 2021 (8,8%) relativamente à projetada para a China.
Nas demais regiões, o cenário aponta para uma recessão mais intensa e uma retomada menos robusta do que na Ásia emergente e em desenvolvimento. A Europa emergente e em desenvolvimento deve contrair 4,6% e crescer 3,9% em 2021(contra, respectivamente, -5,8% e +4,3% em junho), sob forte influência do desempenho da economia russa (-4,1% em 2020 e +2,8% em 2021).
A América Latina e Caribe, onde vários países foram seriamente afetados pela pandemia, registrará a maior retração (-8,1% contra -9,4% em junho), que será sucedida por uma retomada tímida em 2021 (+3,6%). As perspectivas para a economia brasileira, a maior da região, em 2020 melhoraram significativamente (-5,8% contra -9,4% em junho), mas pioraram para 2021 (+2,8% contra +3,6% em junho).
O Oriente médio e a Ásia central devem contrair 4.1% em 2021 (contra -4,7% em junho) e crescer 3,0% em 2021. Vários dos países da região, assim como da África subsaariana, foram negativamente afetados pela queda do preço do petróleo. Essa última região, que também têm enfrentado conflitos civis e dificuldades crescentes para pagar o serviço da dívida externa, deve contrair 3,0% em 2020 e crescer no mesmo ritmo em 2021.
O FMI ressalta que, com exceção da China, as perspectivas para as EMEDs continuam precárias em função de uma conjunção de fatores, dentre os quais: a pandemia ainda continua se espraiando e os sistemas de saúde estão sobrecarregados; a maior importância de setores especialmente atingidos, como turismo; a maior dependência de financiamento externo e das remessas de emigrantes. O PIB desse grupo, excluindo a China, deve retrair 5,7% em 2020 e crescimento em 2021 (+5,0%) não será suficiente para retornar ao patamar de 2019.
De acordo com o Fundo, a profunda incerteza em relação à evolução da pandemia torna muito difícil realizar uma avaliação quantitativa do balanço de riscos associados ao cenário básico resumido acima, que continua com viés negativo. O quadro a seguir sintetiza os fatores que podem afetar esse cenário favoravelmente e adversamente.
Para minimizar a probabilidade de materialização dos riscos negativos, o FMI recomenda como prioridade imediata de política a garantia de recursos suficientes para os sistemas de saúde e para limitar os prejuízos econômicos. Para tanto são necessárias iniciativas em âmbito multilateral e nacional.
A cooperação internacional é necessária para dar suporte a esses sistemas (financiamento do desenvolvimento de vacinas eficazes e accessíveis, assistência aos países mais pobres mediante equipamentos médicos e know-how, dentre outros), bem como para auxiliar financeiramente as EMEDs, sobretudo as de baixa renda, mediante redução de dívida, financiamento concessional e doações.
Embora o G20 tenha lançado em abril a Debt Service Suspension Initiative (DSSI) que concede a 73 países de renda baixa a possibilidade de suspensão do serviço da dívida oficial com credores bilaterais (inicialmente até dezembro de 2020, prazo estendido para meados de 2021 em outubro), o FMI destaca que setor privado também precisa conceder tratamento similar aos países.
Em âmbito nacional, o FMI reconhece que as EAs, enquanto emissoras de moeda reserva, tem maior raio de manobra para a adoção de políticas fiscais expansionistas do que as EMEDs, e recomenda a manutenção dessas políticas enquanto a crise persistir. Além disso, regras fiscais que imponham restrições a iniciativas contracíclicas devem ser suspendidas temporariamente, em combinação com um compromisso de gradual consolidação compatível com o cumprimento das regras no médio prazo.
Do lado das receitas públicas, mesmo que aumentar a tributação em épocas de crise seja difícil, os governos devem considerar a alta progressiva dos impostos sobre a parcela mais rica da população e/ou os setores menos afetados. Uma gestão prudente da dívida pública, com alongamento de prazos e manutenção das taxas de juros em patamares baixos enquanto for possível, pode liberar recursos que seriam canalizados para o pagamento do serviço da dívida para medidas que contribuam tanto para amenizar a crise, dentre as quais programas de transferência de renda, seguro-desemprego e subsídios creditícios para pequenas e médias empresas.
À medida em que a crise se esvaneça, parte desses recursos devem ser canalizados para investimentos públicos em setores como energia renovável. Em países com alta participação de setores informais, dificuldades na implementação dos programas de proteção social podem ser superadas mediante sistemas de pagamento digital, distribuição de cestas básicas, medicamentos e outras ações por parte de governos locais e organizações comunitárias.
O desempenho da economia global
A partir de maio, a economia global ingressou num lento, incerto e assimétrico processo de recuperação após o virtual colapso registrado em abril à medida em que várias economias começaram a remover as medidas de distanciamento social adotadas em resposta à pandemia de COVID-19.
O desempenho do PIB no segundo trimestre surpreendeu positivamente na China, onde o investimento público contribuiu para tirar a economia do terreno negativo, bem como nos Estados Unidos e na área do euro. Nesses dois últimos casos, embora a recessão tenha sido a mais intensa já registrada, as transferências governamentais para as famílias evitaram um resultado ainda mais dramático.
Contudo, em vários países, o desempenho no 2º trim/20 foi pior do que o projetado, em função seja do colapso do consumo e do investimento (Índia), seja do agravamento da pandemia (México), seja da fraca demanda externa (Coréia do Sul), seja da queda das remessas de emigrantes (Filipinas). Já a recuperação do comércio global iniciou-se um pouco depois, a partir de junho, estimulada pela retomada das exportações chinesas de equipamentos médicos e também para adaptação ao trabalho remoto.
O FMI chama atenção para as especificidades da recessão provocada pela COVID-19 em relação às precedentes. Nestas o setor de serviços registrava quedas menores que a indústria manufatureira. Na atual crise, as medidas de confinamento e distanciamento social em resposta à pandemia, ao lado de mudanças de comportamento da população, afetaram especialmente os serviços baseados em interação presencial (sobretudo, comércio varejista, hotelaria e entretenimento). A intensidade da contração indica que, somente com uma vacina e terapias efetivas de combate ao vírus, esses setores poderão retomar uma trajetória em direção à normalidade.
A pandemia, contudo, continuou a se espraiar, levando à desaceleração do processo de desconfinamento e/ou à reimposição parcial de medidas de distanciamento social em alguns países. No final de setembro, o número de infecções em âmbito global superou 33 milhões, com mais de 1 milhão de mortes. Desde junho, quando o cenário precedente foi realizado, o número de casos cresceu dramaticamente nos Estados Unidos, América Latina, Índia e África do Sul, e voltaram a aumentar na Austrália Japão, Espanha e França.
Assim, a retomada forte, embora parcial, no terceiro trimestre parece estar perdendo força no quarto trimestre. Os índices de gerentes de compra indicam a retomada da produção em julho e agosto frente ao mês anterior nos Estados Unidos, área do euro, China e Brasil, e um desempenho oposto na Índia, Japão e Coréia do Sul.
Em setembro, esse mesmo indicador aponta para a manutenção da tendência de alta no setor manufatureiro, mas desaquecimento nos serviços, certamente com reflexo da segunda onda de infecções em curso na Europa. Adicionalmente, os pedidos de desemprego semanais nos Estados Unidos permaneceram próximos a 1 milhão, indicando continuidade das demissões, com impactos adversos na renda das famílias,
O profundo impacto adverso da crise da COVID-19 sobre a economia global também transparece no mercado de trabalho e na inflação. No primeiro caso, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a redução total das horas trabalhadas no segundo trimestre de 2020 em relação ao último trimestre de 2019 equivale à perda de 400 milhões de empregos de tempo integral, que se somam aos 155 milhões perdidos no primeiro trimestre.
As mulheres, principalmente no mercado informal de trabalho, foram especialmente afetadas: segundo estimativa da OIT, considerando esse mercado, 42% das mulheres estão empregadas em setores severamente atingidos pela crise, em comparação com 32% dos homens. Mas, coerentemente com o desempenho da atividade econômica e do comércio globais, os indicadores de mercado de trabalho começaram a melhorar a partir de maio.
No caso da inflação, se, por um lado, os preços de medicamentos médicos aumentaram e os preços das commodities emergiram do fundo do poço atingido em abril, o efeito da demanda anêmica mais do que compensou o impacto da interrupção da oferta. A inflação nas EAs permaneceu abaixo dos patamares pré-pandemia. Nas EMDEs, a inflação recuou expressivamente na fase inicial, mas num segundo momento começou a se elevar em alguns países.
A profundidade da crise da COVID-19 teria sido muito maior não fosse a inédita resposta de política econômica. As medidas fiscais discricionárias adotadas e anunciadas até o momento pelas EAs ultrapassam 9% do PIB e demais iniciativas de injeção de liquidez (compra de ativos, empréstimos e garantia de crédito) já somam 11% do PIB. Essa resposta foi menos intensa nas EMEDs, mas também expressiva, em torno de 3,5% do PIB no âmbito fiscal e 2% de suporte à liquidez.
Além da escala da política contracíclica, iniciativas inovadoras foram lançadas. Exemplos dessas iniciativas são o fundo de retomada econômica da União Europeia (750 bilhões de euros) e várias medidas temporárias, como transferência monetária e doações em espécie, subsídios aos salários para manutenção de empregos, ampliação da cobertura do seguro desemprego, deferimento de impostos, mudanças na regulação bancária para afrouxar os requerimentos de capital para créditos em atraso e liquidação.
As ações dos bancos centrais também envolveram operações em maior escala e mais diversificadas de compras de ativos (ou seja, afrouxamento quantitativo), linhas de assistência de liquidez e provisão de crédito a devedores. O banco central dos Estados Unidos (Federal Reserve - Fed) também anunciou mudanças na sua estratégia de política monetária, que passou a se guiar por uma meta flexível de inflação de 2% ao longo do tempo.
No âmbito das EMEDs, um conjunto de iniciativas foram adotadas, como cortes das taxas de juros básicas (praticamente todos bancos centrais), redução dos requerimentos de reserva bancária (em torno de metade dos países), intervenções nos mercados de câmbio, criação de novas linhas de assistência à liquidez. Adicionalmente, pela primeira vez 20 bancos centrais das Economias de Mercado Emergente (EMEs) adotaram programas de compra de ativos de títulos públicos e privados, os quais foram efetivos em estabilizar os respectivos mercados financeiros.
Tanto a dimensão como o caráter inovador de várias iniciativas contribuíram para acalmar o humor dos investidores e evitar um prolongamento do impacto destrutivo da crise sobre o sistema financeiro. As condições financeiras se afrouxaram a partir de junho nas EAs e na maioria das EMEDs, resultando numa desconexão entre os mercados financeiros e a atividade econômica, que reflexo, em parte, a própria resposta inédita da política econômica.
Os mercados acionários nas EAs, de forma geral, retomaram ou mesmo ultrapassaram os patamares do início de 2020, os spreads dos títulos soberanos mantiveram-se estáveis ou recuaram, os spreads dos títulos corporativos caíram ainda mais, sobretudo os de alto rendimento. A queda nas taxas de juros de longo prazo reflete a redução da rentabilidade dos ativos seguros (consistente com as expectativas de que as taxas de juros básicas seguirão baixas no futuro próximo) e a compressão dos prêmios de risco.
Nas EMEDs, os rendimentos dos títulos soberanos também cederam de forma geral nos últimos meses e os spreads sobre os títulos do tesouro americano retomaram em junho a trajetória de queda iniciada em março (na esteira das ações do Fed) em linha com o aumento do apetite por risco. Os mercados de ações também reagiram na maioria dessas economias a partir de junho.
As iniciativas de suporte à liquidez (como as linhas de swaps dos bancos centrais) ao lado da retomada da economia chinesa contribuíram para o retorno dos investimentos estrangeiros de portfólio para as EMEs a partir de maio, após a saída recorde registrada entre fevereiro e abril.
Todavia, como detalhado no Global Financial Stability Report (GFSR) de outubro de 2020, esse retorno tem sido desigual, com mais da metade dessas economias ainda registrando fluxos negativos entre julho e agosto, o que sugeriria uma diferenciação em função dos fundamentos econômicos e arcabouços de política.
Esse retorno também foi desigual em termos de modalidade de títulos, com as emissões no mercado internacional denominadas em dólares predominando. Assim, várias EMEs que já enfrentavam uma situação de fragilidade fiscal e externa antes da crise, encontram-se ainda mais vulneráveis às mudanças nas condições financeiras internacionais.
Neste contexto, considerando as taxas de câmbio efetivas reais, o dólar depreciou-se mais que 4,5% entre abril e setembro, como reflexo tanto do aumento do apetite por risco dos investidores globais, como de preocupações com o impacto da pandemia no ritmo da retomada econômica nos Estados Unidos. Em contrapartida, o euro apreciou-se quase 4% no mesmo período, diante da melhora nas perspectivas econômicas e da redução do número de infecções.
As moedas das EAs exportadoras de commodities também se apreciaram diante da recuperação dos preços desses bens. No caso das EMEDs, a maioria das moedas apreciaram-se entre abril e junho, após as fortes depreciações em março. Desde então, o Renminbi se fortaleceu, enquanto as demais moedas das EMEs asiáticas mantiveram-se estáveis. Já o rublo russo (devido a fatores geopolíticos) e as moedas das economias severamente afetadas pela pandemia depreciaram-se.