Carta IEDI
Transição Verde: oportunidades e desafios para o Brasil
No cenário mundial, já há alguns anos, estão em curso movimentos para alavancar a economia verde e a sustentabilidade ambiental dos modelos de negócio, dos padrões de consumo e da atuação dos governos. A pandemia de Covid-19, ao explicitar fragilidades econômicas e socioambientais do mundo todo, exigiu reforço de políticas públicas e deve acelerar a transição para estruturas ambientalmente mais responsáveis. Esta Carta trata do tema a partir do estudo realizado para o IEDI pelos economistas Lourenço Faria (USP/Copenhagen University) e Paulo Morceiro (USP/University of Johannesburg).
O IEDI acredita que o Brasil se encontra em posição estratégica não apenas para dar uma contribuição maior à sustentabilidade, mas também para liderar a discussão do tema em âmbito global. Nossas florestas tropicais, por exemplo, têm influência planetária como reguladoras do clima e do regime de chuvas, o que nos impõe a responsabilidade e a oportunidade de liderar as diretrizes de mitigação do aquecimento global. Hoje estamos nos afastando deste propósito de o Brasil ser uma possível referência mundial de certificação de origem sustentável.
No restante do mundo, porém, a despeito da gravidade da crise econômica mundial e das incertezas derivadas do surto de Covid-19, avançam os gastos em tecnologias relacionadas à transição energética (energia renovável, veículos elétricos etc.): em 2020 somaram US$ 501,3 bilhões em termos globais, representando uma alta de +9% em relação a 2019, segundo relatório da BloombergNEF.
Cerca de 3/4 dos projetos de geração de eletricidade no mundo concluídos em 2019 são de tecnologias renováveis, como eólica e solar. Entre 2014 e 2019, o crescimento da capacidade instalada de energia eólica e solar no mundo foi equivalente a 70,5 vezes a capacidade instalada de geração da usina de Itaipu, a maior do Brasil. Na China, apenas o acréscimo da capacidade de geração de energia solar em 2014-2019 foi equivalente ao total da capacidade instalada de energia elétrica do Brasil.
Para os próximos anos, os governos das grandes potências estão associando as políticas de recuperação de suas economias no pós-pandemia à sustentabilidade ambiental, por meio do apoio a mercados e tecnologias limpas. Ao que tudo indica, será uma retomada verde, embora a transição ambiental não seja algo a se fazer em curto intervalo de tempo.
São exemplos de ações no restante do mundo:
• Pacto Ecológico Europeu (European Green Deal) busca estimular a atividade econômica no bloco através de financiamento, investimento e regulação em soluções sustentáveis e reavaliação de políticas existentes para viabilizar a transição verde nos próximos 30 anos.
• A Alemanha anunciou um pacote de estímulos de € 130 bilhões, dos quais € 40 bilhões serão destinados a investimentos verdes visando à reestruturação da indústria – sendo € 2,5 bilhões em carros elétricos e infraestrutura de recarga na indústria automotiva.
• Green New Deal da Coreia do Sul indica o investimento de US$ 61 bilhões até 2025 em energias renováveis, veículos elétricos, além de reformar edifícios públicos para torná-los mais eficientes e transformar áreas urbanas em cidades verdes inteligentes.
• Build Back Better (Reconstruir Melhor), plano do novo presidente americano Joe Biden que inclui a mobilização da estrutura produtiva e de pesquisa e desenvolvimento para gerar soluções verdes para a retomada do crescimento, além da volta ao Acordo de Paris.
• Um dos objetivos do 14º Plano Quinquenal da China, a ser implementado em 2021, é atingir a liderança no desenvolvimento e fabricação de tecnologias verdes como painéis solares e carros elétricos - a estimativa mais recente é de que já existem 200 milhões de motocicletas elétricas e 2,6 milhões de carros elétricos em circulação na China, que também foi responsável pela metade das vendas de veículos elétricos no mundo em 2019.
Além destes programas de recuperação, cada vez mais a questão ambiental tem feito parte das relações internacionais. É o caso do Acordo de Paris e dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU), que, entre outras ações, estabelecem comprometimentos entre os países signatários para redução das emissões de gases causadores do efeito estufa.
É possível verificar igualmente a influência crescente das questões ambientais em acordos internacionais e tratados comerciais. Caso recente envolvendo o Brasil diz respeito à celebração do acordo de livre comércio entre a União Europeia e o Mercosul, que encontra forte resistência por parte de deputados europeus, que criticam a atual gestão ambiental brasileira e desejam embargar o acordo.
No Brasil, a composição de nossa matriz energética aliada ao tamanho das nossas reservas naturais e sua biodiversidade conferiram ao país uma posição de relativo conforto no debate ambiental, enquanto outros países precisam aumentar seu grau de sustentabilidade. Isso, contudo, é um desafio importante para o Brasil, que corre o risco de ficar preso em sua “zona de conforto”.
É preocupante, por exemplo, que no Brasil a emissão de CO2 por unidade de valor adicionado pela indústria tenha subido de 0,47 KgCO2/US$ para 0,50 entre 2000 e 2017, enquanto na média do G20 houve declínio de 0,69 para 0,53, sinalizando claro progresso da eficiência ambiental da indústria destes países. Reverter esta trajetória demandará modernizar nossa estrutura industrial a partir de bases tecnológicas mais limpas.
O custo da negligência para empresas e países que ignoram as questões ambientais envolve a deterioração da imagem pública, perda de clientes, fornecedores, colaboradores, investidores e de oportunidades de negócio em geral. Vale destacar também a perda de dinamismo tecnológico e inovativo, dado que as preocupações ambientais já dominam a corrida tecnológica em vários setores (carro elétrico ou híbrido no setor automotivo, energia solar e eólica no setor energético etc.).
Para o Brasil, as oportunidades são muitas. Por exemplo, poucos países têm acesso a um potencial energético solar e eólico tão grande quanto nós. O país recebe uma insolação superior a 3.000 h/ano, maior taxa do mundo, e o litoral é extenso e concentra a população e a atividade econômica, facilitando a geração e transmissão de energia eólica.
Segundo estimativas do Instituto WRI Brasil, uma trajetória sustentável para a economia do país pode levar a ganhos acumulados de R$ 2,8 trilhões para o PIB brasileiro e a geração de 2 milhões de empregos entre 2020 e 2030 em relação ao cenário normal.
Por isso, a transição verde pode se tornar um norte para uma estratégia industrial para o país. Tem potencial de movimentar diversas cadeias produtivas e gerar demanda de consumo e de investimento, pois um de seus objetivos é a substituição contínua de bens de consumo, máquinas e equipamentos, e infraestrutura existente por alternativas mais eficientes e sustentáveis.
Para tanto, é fundamental o fortalecimento das políticas ambiental e de ciência, tecnologia e inovação, para que possamos, por meio de ações coordenadas em nossas relações exteriores, tirar maior proveito do mercado de carbono e do emprego da nossa biodiversidade como fonte de conhecimento e de novos produtos.
Para citar alguns exemplos, a demanda por equipamentos, componentes e mão de obra necessários para desenvolver, produzir e instalar painéis solares, turbinas eólicas, sistemas de gestão de energia e eficiência energética em edificações pode gerar um impulso na economia nos setores de máquinas e equipamentos, construção civil e serviços especializados.
A lista de bens de consumo e de capital sustentáveis inclui também as atividades de manufatura e serviços relacionados a veículos elétricos e híbridos e seus componentes, baterias, eletrodomésticos e arquiteturas produtivas mais eficientes que podem ser incorporadas em diversos setores.
O Brasil já logrou alguns resultados positivos nesta direção no passado recente. Como discutido na Carta IEDI n. 866, no caso da energia eólica, são claros os sinais de sucesso da articulação da política energética, da estratégia de financiamento do BNDES e da política de apoiar a produção local, resultando na internalização de atividades tecnológicas até então inexistentes, de maior complexidade e a gradativa incorporação de novos componentes e processos produtivos.
O que falta ao país neste momento é a consciência do papel central que pode ocupar neste movimento global de transição verde. Muitos esforços são requeridos, mas um ponto de partida é a conscientização da população, empresários e formuladores de políticas acerca das oportunidades e riscos de ficarmos para trás em mais uma revolução tecnológica.
Isolar-se da tendência mundial pode ter efeitos adversos muito mais duradouros do que se costuma reconhecer atualmente sobre a competitividade do país e o futuro de nossa sociedade.
A colaboração internacional no sentido da sustentabilidade pode ser um importante acelerador, mas a orientação de prioridades no Brasil é uma questão nossa e não devemos depender de recursos externos para proteger o patrimônio ambiental do país. Poderíamos redirecionar fundos atualmente destinados a subsídios e desonerações para políticas modernas de promoção do conhecimento e do desenvolvimento de inovações a partir da biodiversidade e da cultura das populações da região amazônica.
As questões ambientais certamente impõem desafios ao país, mas também oferecem muitas oportunidades. Se bem coordenado, o processo de transição verde, através das suas diversas dimensões, pode auxiliar no combate ou mesmo reverter problemas de longa data do Brasil, relacionados à infraestrutura insuficiente e obsoleta, à perda de competências industriais, ao limitado desenvolvimento tecnológico, baixo dinamismo da produtividade, má distribuição de renda, entre outros. Além disso, como fazem a Europa, China, EUA etc., pode também mitigar o impacto econômico e social da pandemia de Covid-19.
Introdução
O objetivo desse estudo é apresentar um panorama abrangente do processo de transição rumo a uma economia verde, sustentável e circular. Através de uma visão pragmática e estratégica, apontam-se também as oportunidades - bem como os riscos advindos da negligência e inércia - relacionadas a esse processo para o Brasil.
Vários países estão implementando políticas de investimento “verdes” em diversas áreas, como infraestrutura e matriz energética, transporte e novas tecnologias de baixo impacto ambiental na indústria e serviços, além da descarbonização do setor de energia.
No Brasil, a transição verde pode ser um norte para a estratégia industrial do país e gerar demanda via consumo e investimento, pois um de seus objetivos é a substituição contínua de bens de consumo, máquinas, equipamentos e infraestrutura existentes por alternativas mais eficientes e sustentáveis.
Ademais, aliar desenvolvimento com sustentabilidade ambiental também requer avanços na criação de “estruturas de suporte”, como reciclagem avançada e reaproveitamento inteligente de resíduos e adaptação frente aos efeitos das mudanças climáticas.
Além desta introdução, a seção 2 apresenta-se evidências científicas atuais acerca dos efeitos da atividade humana no clima e no meio ambiente. A seção 3 apresenta os principais instrumentos de política ambiental e de economia verde no mundo, bem como estratégias que alguns países adotaram no contexto da Pandemia de Covid-19. A seção 4 explica o motivo de o Brasil se encontra numa “zona de conforto” frente a esse processo de transição devido à sua posição favorável em alguns indicadores de sustentabilidade.
Em seguida são discutidos alguns temas chave sobre sustentabilidade: a transição energética em curso (seção 5) e suas oportunidades para o Brasil e sua indústria, economia circular e eficiência na utilização de recursos (seção 7), e investimentos necessários para mitigar as adaptações climáticas (seção 8). Com isso, apresenta-se uma visão abrangente e atual da transição rumo a uma economia verde, sustentável e circular em curso no mundo.
A crescente relevância da sustentabilidade e da economia verde no mundo
Os impactos da atividade humana sobre o meio ambiente são significativos e vem alterando o clima e os ecossistemas do planeta. Os relatórios do IPCC – Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, que reúne algumas das principais comunidades científicas acerca do tema – analisam a evolução de indicadores como temperatura dos oceanos, nível de degelo na região dos polos terrestres, concentração de gás carbônico e outros gases causadores do efeito estufa na atmosfera, entre muitos outros. Esses indicadores mostram como a evolução da atividade econômica e industrial humana está associada a mudanças significativas no clima em escala global.
Dados recentes de temperatura global indicam que as previsões dos modelos de mudança climática estão corretas, ou seja, que existe interferência substancial da atividade humana no clima. No gráfico a seguir, as previsões dos modelos de mudança climática usados no 4º Relatório de Avaliação do IPCC de 2004 são comparadas com os dados auferidos após esta data, indicando o grau de precisão desses modelos climáticos.
À medida que o cenário projetado de mudança climática vai se confirmando, fica cada vez mais difícil sustentar uma visão cética em relação à existência desse processo e aumenta a pressão para mudanças estruturais.
Problemas ambientais como o aumento no número de eventos climáticos extremos (como secas prolongadas, tempestades e furacões, erosão, aumento no nível dos oceanos), a poluição do ar, do solo, de rios, aquíferos e oceanos têm custos sociais e econômicos elevados, e são particularmente perversos sobre populações vulneráveis e em situação de pobreza extrema, que não possuem recursos nem infraestrutura para se adaptar às transformações causadas por esses problemas, embora sejam cada vez mais sentidos também no ambiente de negócios e na sociedade em geral.
Do ponto de vista da atividade industrial, esses problemas também se manifestam através da escassez de recursos essenciais, como os recursos minerais, biológicos e hídricos, e de eventos climáticos extremos, com efeitos sobre infraestrutura logística e geração de energia, e em etapas das cadeias globais de valor, entre muitos outros. Além disso, existe também o custo da negligência, que será abordado mais adiante e que independe da magnitude dos impactos ambientais.
Diante de todas as questões ambientais e suas consequências, um número crescente de indivíduos, organizações e autoridades nas mais diversas esferas de atuação vêm tomando consciência da importância de uma transformação profunda e contínua na economia e na sociedade.
À medida que essas questões ambientais são debatidas e soluções são propostas, cresce sua esfera de influência sobre a sociedade como um todo, alterando-se a dinâmica de riscos e oportunidades para a atividade econômica, pressionando formuladores de políticas, órgãos reguladores e empresas a debater o tema e propor soluções práticas em suas respectivas esferas de atuação.
A ampla mobilização internacional em torno dos efeitos da atividade humana sobre o meio ambiente torna cada vez mais difícil para entidades como governos e empresas negarem tais efeitos e postergarem as ações necessárias para mitigar os impactos ambientais de suas atividades.
Atualmente, as preocupações ambientais são aspectos importantes na celebração de acordos internacionais de comércio, nas parcerias comerciais e produtivas, nas estratégias de investimento público e privado, e nas atitudes e preferências de um número crescente de consumidores, investidores e trabalhadores.
Regulamentação internacional, acordos de comércio e planos estratégicos de investimento fomentam a transição verde
No plano internacional, dois instrumentos destacam-se por sua relevância no cenário atual para orientar a mudança em direção a uma economia mais limpa e verde: o Acordo de Paris e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU).
O Acordo de Paris é um tratado internacional assinado por 196 países e territórios durante a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2015 (COP 15), que estabelece um compromisso para limitar o aquecimento global através do controle das emissões de gases causadores do efeito estufa. Cada país signatário do acordo tem a tarefa de apresentar um plano nacional com ações e metas de redução de emissões – a Contribuição Nacionalmente Determinada (ou NDC, na sigla em inglês), que deverá ser revisada a cada 5 anos.
O Brasil ratificou sua NDC em 2016, estabelecendo o compromisso de reduzir suas emissões de gases do efeito estufa em 37% e 43%, em 2025 e 2030, respectivamente, tomando como base as emissões de 2005. Além disso, foram propostas uma série de metas específicas, entre elas a de promover novos padrões de tecnologias limpas e ampliar medidas de eficiência energética e de infraestrutura de baixo carbono na indústria brasileira.
Entretanto, a NDC brasileira ainda carece de mecanismos de implementação e avaliação, bem como uma maior integração com as outras políticas climáticas do país, como a Política Nacional sobre Mudança do Clima – PNMC (Lei nº 12.187/2009) e o Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima (PNA).
O plano Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), a seu turno, é composto por 17 objetivos gerais e 169 metas específicas que devem ser perseguidas pelos 193 Estados membros da ONU através da Agenda 2030. Para cada uma das metas estabelecidas foram selecionados indicadores – baseados em fontes oficiais nacionais – para acompanhar a evolução no cumprimento dos objetivos e a comparação dos esforços de cada país.
Além desses dois instrumentos, é possível verificar uma influência crescente das questões ambientais em acordos internacionais e tratados comerciais. Um caso recente envolvendo o Brasil diz respeito à celebração do acordo de livre comércio entre a União Europeia e o Mercosul, que encontra forte resistência por parte de deputados europeus, que criticam a atual gestão ambiental brasileira e utilizam esse argumento para embargar o acordo.
Pode-se discutir se esse é um argumento justo ou apenas uma estratégia do bloco europeu (ou ambos), entretanto, é indiscutível que as questões ambientais são cada vez mais usadas como instrumento estratégico nesses acordos.
Muitos governos incluíram medidas de recuperação “verdes” em seus pacotes de políticas para lidar com os impactos socioeconômicos de curto, médio e longo prazo da pandemia. No fim de 2019, a Comissão Europeia apresentou sua nova estratégia de desenvolvimento econômico chamada European Green Deal (Pacto Ecológico Europeu), que se tornou a estratégia principal do bloco para estimular a atividade econômica e promover a recuperação frente aos efeitos da Covid-19.
O pacto busca, através de instrumentos de financiamento, investimento e regulação, viabilizar o processo de transição europeia rumo a uma economia verde nos próximos 30 anos. Estão previstos esforços em todos os setores da economia para implementar tecnologias de baixo impacto ambiental nos produtos, processos produtivos e serviços em geral através do apoio à geração de inovações ambientais e investimentos, além de implementar alternativas de transporte limpo e descarbonização do setor de energia.
A Comissão Europeia também se propôs a revisar todos os seus instrumentos de política climática até junho de 2021, estabelecendo regras e metas mais ambiciosas, condizentes com os objetivos do novo pacto. Outros países dentro do bloco anunciaram seus próprios planos complementares ao pacto. A Alemanha, por exemplo, anunciou um pacote de estímulos de € 130 bilhões, dos quais € 40 bilhões serão destinados a investimentos verdes visando à reestruturação da indústria – sendo € 2,5 bilhões em carros elétricos e infraestrutura de recarga na indústria automotiva.
A Coreia do Sul também aprovou o seu Green New Deal em julho de 2020, se comprometendo a investir US$ 61 bilhões até 2025 em energias renováveis, veículos elétricos, além de reformar edifícios públicos para torná-los mais eficientes e transformar áreas urbanas em cidades verdes inteligentes.
Com a posse de Joe Biden como presidente dos Estados Unidos, o país volta ao Acordo de Paris e deve colocar em prática nos próximos meses o seu plano de governo, Build Back Better (Reconstruir Melhor, em tradução livre), que inclui a mobilização da estrutura produtiva e de pesquisa e desenvolvimento para gerar soluções verdes para a retomada do crescimento no país. Também se espera que a gestão democrata discuta as propostas do Green New Deal apresentado em 2019 propondo uma reorientação do país rumo a uma economia verde.
A China implementou uma política industrial na última década cujo foco são indústrias consideradas portadoras de grande potencial e importância estratégica para o país no médio e longo prazo. Nos seus planos quinquenais de desenvolvimento nacional mais recentes1, o país estabeleceu diretrizes para o suporte de indústrias estratégicas emergentes relacionadas a eficiência energética e proteção ambiental, novas formas de geração de energia e propulsão para veículos entre outras, através de uma série de instrumentos de política industrial e de inovação, investindo pesadamente em pesquisa e desenvolvimento e estabelecendo metas para inovação no setor. Um dos objetivos do 14º Plano Quinquenal da China, a ser implementado em 2021, envolve liderar a difusão de tecnologias verdes como painéis solares e carros elétricos.
Para as empresas, as preocupações ambientais são crescentemente incorporadas em suas atividades de pesquisa e desenvolvimento de novos produtos e processos, nos seus investimentos em bens de capital, no seu posicionamento público e estratégias de marketing, na sua visão, valores e estrutura organizacional, na sua relação com parceiros nas cadeias de valor, e na performance de organizações em mercados financeiros, entre outros.
A pressão pública, governamental e competitiva para que os negócios se adaptem é crescente. O custo da negligência para empresas e países que ignoram as questões ambientais envolve a deterioração da imagem pública, perda de clientes, fornecedores, colaboradores, investidores e de oportunidades de negócio em geral, gerando uma perda significativa de receitas, além da possibilidade de arcar com elevados custos para se adequar às regulações ambientais, especialmente para as empresas que atuam no mercado internacional e/ou em setores ambientalmente mais sensíveis.
Por último, vale destacar a perda de dinamismo tecnológico e inovativo. Em vários setores, as preocupações ambientais e a busca por produtos e serviços mais sustentáveis já dominam a corrida tecnológica, por exemplo, o carro elétrico ou híbrido no setor automotivo e a geração de energia renovável a partir de tecnologias alternativas (solar e eólica, por exemplo).
Esse processo de “esverdeamento” da economia global não será realizado através de uma ruptura abrupta com o sistema atual, mas através de uma condução gradual da economia rumo a níveis cada vez maiores de sustentabilidade, incorporados, por exemplo, nas preferências dos consumidores, nos processos de pesquisa e desenvolvimento e nas estratégias empresariais, e na condução de políticas públicas.
O Brasil precisa compreender o seu papel nessa nova fase da transição verde, algo que até o momento vem sendo colocado em segundo plano. Essa compreensão envolve uma maior conscientização e discussão acerca das oportunidades e riscos particulares ao país.
A “zona de conforto” brasileira no contexto da economia verde
Um desafio importante para o Brasil advém justamente de sua posição relativamente confortável em diversas esferas do debate ambiental e os efeitos dessa “zona de conforto” sobre os esforços demandados para que o país mantenha sua competitividade no processo de transição rumo a uma economia verde.
Historicamente, o Brasil possui uma participação bastante significativa de fontes renováveis em sua matriz energética, com destaque especial para os biocombustíveis (etanol e biodiesel) utilizados no transporte e a geração de eletricidade via hidroelétricas. Segundo dados mais recentes, a participação de fontes renováveis na oferta primária de energia brasileira é de 45,8%, porcentagem muito superior à de todos os outros países do G20.
Ainda que nenhuma das duas componentes renováveis da matriz energética – biocombustíveis e energia hidroelétrica - tenham sido, a princípio, projetadas com o intuito de reduzir impactos ambientais, elas são de fato conquistas importantes para o país e ajudaram a amortecer os impactos ambientais do crescimento das últimas décadas, além de reduzir a dependência de insumos como carvão e petróleo.
A composição da matriz energética brasileira, aliada ao tamanho das nossas reservas naturais e sua biodiversidade conferiram ao país uma posição de relativo conforto no debate ambiental, enquanto outros países precisam aumentar seu grau de sustentabilidade. Em outras palavras, enquanto países tradicionalmente vistos como poluidores correm atrás do prejuízo investindo pesadamente no desenvolvimento e disseminação de tecnologias verdes, o Brasil se encontra estagnado em uma “zona de conforto” que impede o país de reconhecer seus pontos fracos e coordenar esforços para avançar no processo de transição para uma economia verde.
Essa situação pode ser notada, por exemplo, através da análise da emissão de gás carbônico (CO2) por unidade de valor adicionado pela indústria em cada país. Grosso modo, essa é uma medida de eficiência energética da produção industrial.
Pelo gráfico percebemos que, enquanto a média dos países do G20 vem caindo num ritmo constante, indicando uma maior eficiência na transformação de energia em valor (mesmo utilizando um percentual de energia renovável muito menor), o Brasil segue estagnado, com uma leve tendência de alta nos últimos anos, indicando uma piora na capacidade do país em gerar valor sem aumentar sua pegada de carbono. Esse movimento de aumento das emissões por valor adicionado ocorre ao mesmo tempo em que o país enfrenta uma queda significativa do valor adicionado da indústria como proporção no PIB.
Vale destacar também que o fato de o Brasil possuir uma das maiores áreas de floresta e a maior biodiversidade do planeta não o torna automaticamente sustentável. A sustentabilidade está relacionada à capacidade de preservar esses recursos ao longo do tempo. O mundo cobra do Brasil um modelo sustentável de exploração e preservação de seu capital natural. Longe de representar um objetivo unicamente altruísta, a preservação das áreas de floresta nativa e sua enorme biodiversidade é de interesse nacional e global também do ponto de vista da utilização desses recursos para a geração de valor.
Pode-se questionar por que outros países que já devastaram suas reservas naturais agora cobram que o Brasil preserve as suas, ou invocar a soberania do país sobre seu território. Mas, analisando de forma pragmática, esses elementos não mudam o fato de que muitos desses países possuem influência e autonomia econômica suficiente para, individualmente ou em conjunto, aplicar sanções econômicas, cancelar acordos comerciais e reduzir o aporte de recursos e investimentos para o Brasil em diversas áreas estratégicas. Por isso o país precisa estar preparado para defender seus interesses frente a essa cobrança internacional, provando sua capacidade de administrar e proteger seu capital natural.
A competência de um país em se tornar ou se manter competitivo frente mudanças estruturais na economia global depende dos esforços de acumulação de conhecimento e de coordenação e estruturação das cadeias de valor. O Brasil, ancorado em sua posição relativamente confortável no debate ambiental, corre o risco de não ser capaz de acompanhar os rápidos avanços que estão sendo obtidos no processo de transição verde.
Do ponto de vista da atividade industrial, o Brasil enfrenta problemas estruturais graves, como o recuo da indústria no PIB e perda de dinamismo nas cadeias de valor, problemas logísticos, Custo Brasil, baixa produtividade, demanda, entre outros.
As questões ambientais certamente impõem desafios para a indústria brasileira, mas também oferecem oportunidades: se bem coordenado, o processo de transição verde pode auxiliar no combate a todos esses problemas acima mencionados, configurando-se como um norte para uma estratégia industrial e colocando o Brasil numa posição de destaque nesse novo movimento global.
Segundo estimativas incluídas em um estudo liderado pelo instituto WRI Brasil2, uma trajetória sustentável para a economia brasileira pode levar a ganhos acumulados de R$ 2,8 trilhões para o PIB brasileiro e a geração de 2 milhões de empregos entre 2020 e 2030 em relação ao cenário normal (BAU - business as usual).
As oportunidades de ganhos estão relacionadas à introdução de novos produtos, serviços, modelos de negócio, além do aumento na eficiência da estrutura produtiva como um todo. Consequentemente, novos empregos podem ser criados a partir de um cenário de transição para uma economia verde.
De acordo com estimativas da International Energy Agency podem ser criados 7,8 milhões de empregos anuais no mundo relacionados à transição para uma economia verde, sendo 1,9 milhão de empregos para dar suporte à construção de prédios eficientes e 1,2 milhão ligados à geração e distribuição de energia solar e eólica.
Por exigirem transformações estruturais na organização da atividade produtiva global, essas adaptações têm um efeito que poderá ser comparável ao de outras grandes revoluções tecno-econômicas recentes como a difusão das tecnologias relacionadas à microeletrônica e comunicação digital.
A seguir, serão discutidos com maior profundidade alguns dos temas de interesse, no âmbito das estratégias sustentáveis, para que a economia – e em especial a indústria brasileira – possam se preparar e se beneficiar do processo de “esverdeamento” da economia. Para o empresariado brasileiro, estar atento a essas tendências é fundamental para formular estratégias e guiar investimentos nas próximas décadas.
A transição energética em curso
O processo de transição energética diz respeito a uma série de mudanças estruturais que vêm ocorrendo na matriz energética global e que devem afetar profundamente a forma com que a sociedade produz e consome energia nas próximas décadas.
Em termos gerais, trata-se de um processo gradual de substituição de tecnologias de geração de energia baseadas no uso de combustíveis fósseis como petróleo e gás natural – bases da matriz energética mundial atual – por tecnologias renováveis e com baixo impacto ambiental, aliado a aumentos na eficiência energética em setores com alto consumo de energia, como transportes, bens de consumo e atividades produtivas, construção civil etc., e também através de mudanças tecnológicas nos produtos, serviços, arquiteturas produtivas e infraestruturas de suporte associadas a esses setores.
Alguns exemplos de fenômenos relacionados à transição energética são o investimento em tecnologias de geração de energia alternativas (como painéis fotovoltaicos, usinas eólicas, biocombustíveis e biomassa) e da descentralização da produção de energia elétrica, com adoção de arquiteturas de geração distribuída3, a eletrificação do transporte através da adoção de tecnologias de propulsão alternativas como veículos elétricos e híbridos no médio e longo prazo, a corrida tecnológica por tecnologias de armazenamento de energia mais eficientes, e a adoção de tecnologias de gestão e/ou economia de energia em residências, indústrias, e na própria rede de produção e transmissão de eletricidade.
A transição energética está dando seus primeiros passos. De fato, a matriz energética global ainda é majoritariamente baseada em combustíveis fósseis e essa estrutura não será alterada rapidamente. Muitos desafios ainda não foram superados, como a questão da intermitência, uma das principais críticas à energia solar e eólica: a maior parte da energia é fornecida quando o sol está brilhando intensamente ou quando os ventos estão fortes, mas praticamente nenhuma é criada à noite, com uma cobertura substancial de nuvens ou quando os ventos não sopram.
Outro gargalo importante é a falta de tecnologias mais eficientes de armazenamento de energia, crucial para reduzir a intermitência da geração solar e eólica e melhorar o desempenho de tecnologias de propulsão alternativas, como veículos elétricos. Também é preciso reconhecer que a adoção dessas tecnologias encontra resistência entre setores importantes da economia e da sociedade por razões de natureza competitiva e ideológica.
Porém, dados recentes apontam que mudanças estruturais importantes estão em curso. Comecemos analisando a capacidade global de produção de energia elétrica adicionada por tipo de tecnologia4. Em 2019, foram criados 247 gigawatts (gW) de capacidade instalada no mundo, sendo 73% formado por usinas eólicas e fotovoltaicas, 19% por usinas termoelétricas e apenas 6% são grandes hidroelétricas. Ou seja, quase três quartos dos projetos de geração de eletricidade concluídos em 2019 são de tecnologias renováveis avançadas.
Os investimentos nessas tecnologias avançadas foram quase 18 vezes maiores do que os investimentos em grandes projetos hidroelétricos no mesmo ano. Apenas em pequenos projetos de painéis fotovoltaicos distribuídos investiu-se US$ 52,1 bilhões, número 3,5 vezes maior do que se investiu em grandes usinas hidroelétricas.
Um exemplo claro da magnitude desse processo: entre 2014 e 2019, o acréscimo da capacidade instalada de geração de energia solar da China foi de 177 gW, ou seja, grosso modo, a China criou “um Brasil inteiro movido a energia solar em cinco anos” (a capacidade instalada brasileira é de aproximadamente 170 gW, considerando todas as fontes, renováveis ou não). No mesmo período, o crescimento da capacidade instalada global de energia eólica e solar (987 Gigawatts) equivale a 70,5 vezes a capacidade instalada total de geração de energia elétrica da usina de Itaipu, a maior do país.
Tecnologias como painéis fotovoltaicos e turbinas eólicas vêm passando por um processo de evolução tecnológica substancial nos últimos dez anos. À medida em que essas tecnologias são desenvolvidas e testadas, surgem avanços em termos de eficiência técnica, redução de custos e novos modelos de negócio, que por sua vez reforçam sua atratividade, gerando um ciclo positivo de desenvolvimento. Esse ciclo de aperfeiçoamento tecnológico e competitivo tem proporcionado ganhos de eficiência e redução de custos consideráveis, transformando-as gradativamente em alternativas viáveis às tecnologias tradicionais.
A crescente onda de avanço tecnológico e automação industrial é considerada um dos fatores cruciais que explicam a queda nos custos de painéis fotovoltaicos. Em 2010, o custo médio global para geração de eletricidade a partir de painéis fotovoltaicos era de US$ 0,378/kWh e chegou a US$ 0,068/kWh em 2019, uma queda de 82% no período.
A tendência é que o custo das placas solares e turbinas eólicas continue a cair devido à curva de aprendizado ascendente dessas tecnologias e seus processos produtivos5, enquanto o custo das grandes hidroelétricas e da extração de combustíveis fósseis, sujeitos a rendas ricardianas e cuja tecnologia parece não oferecer muito potencial de aprimoramento, continue a aumentar.
Ainda que, em números absolutos, essas tecnologias representem uma parcela pequena do consumo energético total, a tendência é que, mantendo-se o ritmo de investimentos, essas tecnologias possam transformar a matriz energética mundial nas próximas décadas. Hoje quando se fala em política pública e investimentos de ponta em produção de energia, é quase impossível não mencionar tecnologias alternativas de geração.
Oportunidades da transição energética para o Brasil e sua indústria
Além da redução do impacto ambiental, o processo de transição energética pode gerar diversas oportunidades de desenvolvimento econômico e social. Assim como no caso dos biocombustíveis e das usinas hidroelétricas, existem diversas vantagens para a produção de energia eólica e solar: o país recebe uma insolação (número de horas de brilho do Sol) superior a 3.000 horas por ano, sendo a maior taxa de irradiação solar do mundo, e seu litoral é bastante extenso e concentra boa parte da população e atividade econômica, facilitando a geração e transmissão de energia eólica. A partir do investimento em redes de transmissão inteligentes, a vasta estrutura de usinas hidroelétricas existentes pode ser utilizada como backup da produção eólica e solar, reduzindo o problema da intermitência.
O investimento na produção de energia eólica e solar também pode elevar o nível de desenvolvimento econômico de regiões com terras de menor potencial de uso agrícola6, como a região do semiárido nordestino, região com um dos maiores potenciais eólico e solar do país, aumentando significativamente a renda de municípios que hoje sofrem com a seca e a miséria, gerando um círculo virtuoso de desenvolvimento nessas regiões.
Outro exemplo é a instalação de painéis fotovoltaicos em áreas marginalizadas e isoladas do sistema de transmissão, o que pode aumentar a qualidade e expectativa de vida local e fomentar modelos de negócios que dependem da eletricidade. Além disso, evita-se que a expansão da matriz energética brasileira fique refém de projetos complexos, caros, demorados e sujeitos a burocracia e embargos, como os projetos centralizados de grandes usinas hidroelétricas, ou a expansão das termoelétricas que tem impactos ambientais negativamente significativos.
Para a indústria, a implementação de projetos de energia distribuída e sistemas de gestão e eficiência energética em suas unidades produtivas pode reduzir significativamente os gastos com eletricidade e perdas com falhas de transmissão do sistema central, contribuindo para aumentar sua eficiência e competitividade. Vale lembrar que poucas estruturas industriais no mundo teriam acesso a um potencial energético solar e eólico tão grande quanto as brasileiras.
Muitas empresas já se deram conta disso e vem realizando investimentos importantes: recentemente, a L’Oréal Brasil firmou um acordo com uma produtora de energia eólica no Ceará para abastecer as fábricas, centros de distribuição, centro de pesquisa e a sede da empresa no país. Essas mudanças podem gerar novos modelos de negócios. Recentemente, a Ambev firmou uma parceria com parques solares para fornecer energia limpa a cerca de 30 mil bares e restaurantes parceiros em Minas Gerais e pretende expandir o projeto para outros Estados.
A demanda por equipamentos, componentes e mão de obra necessários para produzir e instalar os painéis solares e turbinas eólicas pode gerar um impulso na economia nos setores de máquinas e equipamentos, construção civil e serviços especializados. A ABSOLAR – Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica, estima que o setor tenha investido ao menos R$ 38,2 bilhões desde 2012, gerando mais de 224 mil empregos e R$ 11,3 bilhões em tributos arrecadados no país. Para 2021, a entidade estima que os investimentos privados poderão ultrapassar R$ 22,6 bilhões, com aumento de 68% na capacidade instalada e levando à geração de 147 mil novos empregos.
Algumas empresas brasileiras já se adaptaram para usufruir das oportunidades desse setor, como é o caso da WEG, uma das maiores empresas de equipamentos elétricos do mundo como motores elétricos, transformadores e geradores, e que se tornou um dos principais fornecedores de produtos e soluções para usinas solares do país.
A busca por eficiência energética e a adoção de novas tecnologias no setor de transportes também pode aquecer o consumo e o investimento no país. Em muitos desses setores, como veículos elétricos, ainda existem poucas barreiras à entrada tecnológicas e de capital – os carros elétricos são muito mais fáceis de construir do que os veículos tradicionais, e o país possui muitos elos da cadeia de produção (partes compartilhadas com os veículos convencionais), inclusive reservas significativas das matérias primas para baterias e outros sistemas.
Hoje, a China domina o mercado de veículos elétricos, com metade da produção e da venda de veículos elétricos no mundo, e mais da metade da produção de baterias. São mais de 400 montadoras de veículos elétricos no país7. Muitas montadoras chinesas estão ganhando espaço em mercados como o europeu através da venda de veículos elétricos8.
Outros países se esforçam para acompanhar o ritmo do país asiático. A União Europeia criou a European Battery Alliance (Aliança Europeia para Baterias, tradução livre), cujo objetivo é criar a cadeia de valor completa de baterias na Europa. Nos Estados Unidos, cerca de 250 mil trabalhadores estão empregados em atividades relacionadas à fabricação, venda, reparo e manutenção de veículos elétricos, híbridos e de célula de combustível a hidrogênio9, e o novo presidente Joe Biden se comprometeu em direcionar esforços para o setor.
Diversos fabricantes começam a aparecer mundo afora, boa parte deles sem experiência prévia com fabricação de automóveis e criadas a partir de crowdfunding, como é o caso das alemãs e.GO e Sono Motors. O Brasil também esboça algum movimento, com a startup Gaia Electric10, mas é preciso um esforço consistente para que o país comece a eletrificação da frota nacional.
Segundo relatório recente da BloombergNEF11, os veículos elétricos podem alcançar a paridade de preço com os veículos tradicionais antes de 2025, acelerando a adoção dessa tecnologia. Nesse cenário, o crescimento da demanda por veículos elétricos poderá ultrapassar setores como aviação, indústria naval e petroquímica.
Além da fabricação de veículos e componentes, a transição para veículos elétricos ou híbridos pode gerar oportunidades em atividades de suporte. Um relatório da Associação Europeia de Empreiteiras do Setor Elétrico12(The European Association of Electrical Contractors) estima que 200 mil de empregos nas atividades de suporte à eletromobilidade podem ser criados na Europa caso o percentual de veículos elétricos alcance 35% dos veículos em circulação até 2030. Desse total, 39% estariam relacionados às atividades de manutenção de veículos, 17% na fabricação de baterias, 19% na instalação e operação de carregadores, 7% na fabricação dos carregadores, 8% nas atividades de conexão e aprimoramento das redes de transmissão de eletricidade, 9% na geração de eletricidade adicional demandada pelos veículos, e 1% nas vendas de equipamentos e componentes relacionados a essas atividades.
O papel coordenador do Estado, através da adequação de instrumentos de política, parece ser fundamental nesse processo de transição energética. Como abordou a Carta IEDI n. 866, as análises existentes parecem indicar que as ações destinadas a fomentar a cadeia produtiva para de geração de energia eólica no país conseguiram, ao longo da última década, resultados bastante promissores, podendo ser consideradas como um exemplo bem sucedido de coordenação entre instrumentos como políticas de conteúdo local e políticas de financiamento para o estabelecimento de uma cadeia produtiva no país.
Segundo o estudo preparado pelo economista João Furtado para o IEDI, essas políticas foram capazes de criar um ambiente de maior segurança e estabilidade para a atuação do setor privado, impactando na participação crescente dos parques eólicos na matriz elétrica brasileira, além de promover a internalização de atividades da cadeia produtiva até então inexistentes no contexto nacional. Ressalta-se que políticas com essa orientação são utilizadas por vários países como a China, para desenvolver a cadeia produtiva de equipamentos “verdes”.
Economia circular – reavaliando o valor e a utilização dos recursos
Quando se fala em problemas ambientais, economia verde ou sustentabilidade, geralmente o foco são conceitos como descarbonização, redução nas emissões de CO2 e mudanças climáticas. Entretanto, o aquecimento global devido à emissão de gases do efeito estufa é apenas parte do problema, um dentre vários problemas graves de gestão de recursos que precisam ser solucionados.
A atividade humana vem causando também outros problemas ambientais tão ou mais nocivos, como o acúmulo de objetos e partículas de plástico e outros materiais em ambientes como oceanos, rios, e nos entornos de grandes centros urbanos; a superexploração do solo, da água, e de outros recursos naturais; o acúmulo de lixo urbano e industrial, e o uso excessivo de agrotóxicos e fertilizantes, que contaminam o ar, o solo, e os reservatórios de água doce; o desmatamento e a pesca comercial em larga escala.
Historicamente, a narrativa que guiou a industrialização e o crescimento econômico é a de possibilidades infinitas, onde atender as necessidades humanas (e criar necessidades) era possível através do controle e superação dos limites impostos pela natureza. Nesse ambiente se formula a ideia de crescimento econômico contínuo e irrestrito como algo inerente e necessário ao sistema.
Nesse sistema, o fluxo de recursos segue uma lógica linear, ou seja, os recursos naturais são extraídos, transformados, utilizados e descartados no ambiente. Dado que o consumo é a base do crescimento econômico e da geração de riquezas, esse processo linear forma a arquitetura básica de funcionamento e expansão da sociedade, e é a partir dele que os recursos são valorados.
Esse modelo funcionou razoavelmente, mas o aumento vertiginoso na população e no nível de produção e consumo fez com que a lógica linear se tornasse insustentável. Hoje, a crise de recursos é uma realidade. As consequências mais evidentes são a perda significativa de biodiversidade, o esgotamento de reservas de recursos naturais e a poluição excessiva presente em muitas regiões do planeta, contribuindo para o aumento na incidência de problemas de saúde para a população.
Estes e outros efeitos menos visíveis, mas igualmente danosos, podem afetar significativamente o funcionamento da economia e da sociedade e, em última instância, a própria sobrevivência da espécie humana, caso não sejam enfrentados com a devida seriedade e urgência.
Um conceito que vem ganhando popularidade é o de economia circular. Ao contrário da economia linear, os fluxos de recursos, as arquiteturas produtivas e os padrões de consumo seriam redefinidos de forma a minimizar tanto a extração de recursos naturais quanto o descarte de resíduos no meio ambiente.
Um dos aspectos fundamentais da economia circular é o aumento da eficiência na utilização de recursos pela indústria, através do aumento na extração de valor a partir dos resíduos. Nesse sentido, várias ideias vêm sendo discutidas e testadas, algumas com potencial para revolucionar arranjos produtivos e cadeias de valor.
Uma delas é a noção de simbiose industrial, ou seja, o intercâmbio de recursos como resíduos produtivos, energia e água excedentes entre unidades produtivas de diferentes setores, mas geograficamente próximas. Esse intercâmbio é realizado de forma planejada pelos atores, através do mapeamento dos fluxos de recursos (matérias primas, energia, resíduos) e do reconhecimento das sinergias potenciais (por exemplo, o resíduo de uma indústria pode ser utilizado como matéria prima em outra).
Muitos parques industriais, em especial na Europa e na China, vêm sendo projetados de forma a maximizar essas simbioses, através de configurações específicas de setores que possibilitem as trocas de recursos, aumentando a competitividade das empresas.
Em muitos casos, é possível também ampliar a geração de valor para resíduos já aproveitados, através de iniciativas de empreendedorismo e reutilização criativa (upcycling). Um exemplo é o dos resíduos orgânicos de indústrias alimentícias (sementes, cascas), muitas vezes usados na produção de energia, e que podem ser processados e usados na fabricação de pratos e talheres descartáveis e biodegradáveis, substituindo o plástico, ou mesmo na confecção de móveis, agregando valor ao resíduo orgânico. Muitos setores têm que arcar com custos não negligíveis de tratamento e descarte de resíduos, assim iniciativas como essa podem reduzir esses custos e gerar renda extra para as empresas.
A aplicação dos princípios de economia circular também deverá impor desafios importantes às atividades manufatureiras. Em primeiro lugar, a redução da obsolescência e o aumento da qualidade e reparabilidade dos bens de consumo devem ser requisitos impostos aos fabricantes nos próximos anos como formas de reduzir a demanda por recursos.
Por exemplo, desde janeiro de 2021, a França busca implementar um “índice de reparabilidade” aos produtos vendidos no país, similar às etiquetas de eficiência energética obrigatórias no Brasil, que informará ao consumidor a durabilidade e facilidade de reparação do produto. A possibilidade de comparação dos produtos pelo seu índice de reparabilidade abre espaço para novos parâmetros competitivos e certamente exigirá adaptações no design, componentes e processo produtivo desses produtos.
Em segundo lugar, cresce também a pressão da sociedade para que as empresas se responsabilizem pelos impactos ambientais causados por seus produtos, tanto em termos de uma maior transparência em relação aos impactos da extração das matérias primas, quanto numa maior responsabilização dos produtores pelo descarte apropriado dos produtos.
A indústria precisa estar preparada para enfrentar essas mudanças através da adoção de princípios circulares no design de produto (ecodesign), implementando estudos de ciclo de vida de produtos, bem como estudando as possibilidades de simbiose industrial entre unidades produtivas.
Por outro lado, a adoção de práticas circulares abre espaço para iniciativas empreendedoras associadas à gestão de recursos, como bens de capital adaptados a arquiteturas produtivas circulares, além das já discutidas oportunidades de upcycling. Também é possível pensar em oportunidades no desenvolvimento e fabricação de novos materiais com maior grau de reciclabilidade ou outras características ambientalmente desejáveis, como materiais biodegradáveis ou mais resistentes (reduzindo a obsolescência dos produtos) que podem ser adotados em diversos setores.
Muitas empresas brasileiras vêm tomando atitudes no sentido de reduzir os fluxos de materiais com maior impacto ambiental de seus produtos e processos produtivos. Um exemplo nesse sentido é a Ambev, que recentemente anunciou a meta de eliminar completamente a utilização de plástico em seus produtos até 202513.
Adaptação às mudanças climáticas
Um desafio adicional para a economia brasileira é a adaptação a eventos climáticos extremos, em especial as secas prolongadas e tempestades, e seus efeitos sobre a economia, a sociedade e a atividade produtiva.
Como exemplo mais urgente está a crescente exposição da economia do país a irregularidades no regime anual de chuvas: o crescimento populacional e da atividade produtiva, especialmente nos grandes centros urbanos do país, pressiona a capacidade de fornecimento de água e a geração de energia elétrica (altamente dependente da energia hidroelétrica), sem que haja um aumento proporcional na oferta hídrica. Secas prolongadas, ainda que atípicas, podem ter um efeito devastador sobre a oferta hídrica.
Situações como essa poderiam provocar não apenas inconvenientes, mas também paralisações na atividade econômica e produtiva. Em grandes centros urbanos ou nas regiões de alta produtividade agrícola, esses eventos poderiam afetar milhões de pessoas e uma parcela significativa da economia.
Nos últimos vinte anos, o Brasil passou por diversas situações que testaram os limites do sistema de abastecimento de água e energia. A crise energética nacional de 2001 provocada por alterações prolongadas no regime de chuvas, reduziu ao limite os reservatórios das usinas hidrelétricas e gerou um impacto significativo na economia.
A crise hídrica no estado de São Paulo entre 2014 e 2016 provocou interrupções generalizadas no abastecimento de água para a região metropolitana da capital, afetando a população (pela intermitência no abastecimento das residências) e a atividade econômica, em especial nos setores intensivos na utilização do recurso, além de suas respectivas cadeias de valor.
Segundo dados da Pesquisa de Informações Básicas Municipais - MUNIC 201714, do IBGE, 49% dos municípios brasileiros foram atingidos pela seca entre 2013 e 2017. Dentre eles, 81% reportaram perdas financeiras significativas e 8% reportaram perdas humanas significativas.
Esse não é um problema majoritariamente concentrado no Nordeste do país: no Sudeste, 28% dos municípios com mais de 500.000 habitantes foram afetados pelas secas entre 2013 e 2017, contra 9% na região Nordeste, ressaltando o risco para as grandes regiões metropolitanas e seu impacto sobre os recursos hídricos mesmo nas regiões com maior índice de chuvas. Atualmente, o estado do Paraná passa por uma das maiores crises hídricas de sua história, em especial a região Metropolitana de Curitiba.
No outro extremo, tempestades e chuvas torrenciais, aliadas a falhas de planejamento urbano, também provocam impactos socioeconômicos significativos, degradando infraestruturas logísticas, produtivas e de serviços básicos, além de colocar em risco a vida da população. Ainda segundo a pesquisa MUNIC 2017 do IBGE, 29% dos municípios brasileiros foram atingidos por enxurradas e inundações abruptas entre 2013 e 2017. Entre os municípios com mais de 500.000 habitantes esse número chega a 57%.
O risco de uma crise hídrica grave no Brasil deve aumentar nos próximos anos, não apenas pelo aumento da demanda e consequente sobreutilização das reservas, mas também devido ao efeito das alterações climáticas sobre o ritmo de chuvas, intensificando a quantidade de eventos climáticos extremos, sua magnitude e duração. Portanto, os riscos associados a esses fenômenos devem ser considerados pelas empresas, governo e sociedade em geral.
O aumento da eficiência na gestão de recursos hídricos pelo setor produtivo – dentro do arcabouço da economia circular discutida anteriormente – pode reduzir os impactos de secas extremas sobre a atividade industrial, por exemplo, através de reaproveitamento e armazenamento da água utilizada no processo produtivo, adoção de tecnologias mais eficientes, bem como a criação e gestão de simbioses entre unidades produtivas.
Do ponto de vista dos riscos energéticos, alguns dos processos associados à transição energética, como o aumento da geração distribuída e a adoção de tecnologias de geração que reduzam a dependência da energia hidroelétrica podem aumentar a resiliência do parque produtivo brasileiro sem aumentar a emissão de gases do efeito estufa.
Notas
1 https://global-climatescope.org/policies/3300.
2 https://wribrasil.org.br/pt/publicacoes/nova-economia-brasil-eficiente-resiliente-retomada-verde
3 Atualmente, a grande maioria da eletricidade que é produzida no mundo segue uma arquitetura centralizada, na qual a eletricidade é gerada em grandes usinas como hidroelétricas, termoelétricas e usinas nucleares, e então distribuídas por redes de transmissão. A geração distribuída segue a lógica oposta, na qual a produção é conduzida de forma atomizada por micro e pequenas unidades geradoras, geralmente próximas ao local de consumo (por exemplo, painéis fotovoltaicos em residências, indústrias e fazendas solares), e o excedente é injetado no sistema de transmissão e então distribuído.
4 Fonte: Frankfurt School-UNEP Centre/BNEF. 2020. Global Trends in Renewable Energy Investment 2020. Link: http://www.fs-unep-centre.org
5 O progresso descendente constante no custo da energia solar é comumente descrito como "Lei de Swanson" em homenagem a Richard Swanson, fundador da empresa americana SunPower. Swanson percebeu que a curva de aprendizado é tal que, cada vez que o volume total de painéis solares produzidos duplica, seu custo cai 20%.
6 Países como o Marrocos, por exemplo, já possuem investimentos significativos na construção de parques de energia solar em regiões de deserto e semiáridas.
7 https://www.washingtonpost.com/business/2020/01/16/next-china-trade-battle-could-be-over-electric-cars/
8 https://europe.autonews.com/automakers/how-chinese-brands-are-using-evs-gain-foothold-europe
9 National Association of State Energy Officials and Energy Futures Initiative, “2020 U.S. Energy & Employment Report”
10 http://gaiaelectric.com.br/
11 https://about.bnef.com/new-energy-outlook/
12 https://europe-on.org/wp-content/uploads/2019/11/Powering_a_new_value_chain_in_the_automotive_sector_-_the_job_potential_of_transport_electrification-3.pdf
13 https://www.ambev.com.br/plasticos/
14 Último ano em que as questões relativas ao meio ambiente foram abordadas na pesquisa. Fonte: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/saude/10586-pesquisa-de-informacoes-basicas-municipais.html