Carta IEDI
A experiência recente do Brasil com políticas de conteúdo nacional
Esta Carta IEDI dá continuidade a uma série de quinze trabalhos a respeito de diversos temas – como infraestrutura, financiamento do investimento, inovação, mudanças na estrutura industrial, produtividade e políticas de desenvolvimento produtivo, entre outros – que subsidiaram a elaboração da estratégia industrial do IEDI, que será divulgada em breve. Alguns destes trabalhos já estão disponíveis: Cartas IEDI n. 855 de 26/6/18; n. 856, de 28/6/18; n. 857 de 29/6/18; n. 858 de 2/7/18; n. 859 de 3/7/18; n. 860 de 5/7/18, n. 862 de 10/7/18, n. 863 de 12/7/18 e n. 864 de 13/7/18.
Esta edição, baseada no estudo coordenado pelo economista e professor da Poli/USP João Furtado e disponibilizado no site do IEDI, sintetiza a análise da recente experiência brasileira com as políticas de conteúdo local, cujos resultados que ainda carecem de avaliações sistemáticas e aprofundadas. Foram reunidas evidências que ajudam a avançar em uma análise equilibrada sobre essas políticas para os seguintes setores: automóveis, petróleo, informática, equipamentos para a produção de energia eólica e produtos farmacêuticos.
No passado, as políticas de conteúdo local foram um dos pilares centrais das políticas de desenvolvimento da maioria dos países, mas seguem sendo ainda muito empregadas na atualidade. Nos Estados Unidos, por exemplo, o instrumento mais explicitamente voltado para o apoio à produção local é o Buy American Act, que desde 1933 torna obrigatórias as compras de fabricantes locais em projetos de investimento federais, estaduais e municipais.
O Brasil praticou políticas protecionistas e políticas de conteúdo local durante muito tempo, com resultados que continuam a ser debatidos. Se por um lado existe o reconhecimento de que a industrialização e o desenvolvimento brasileiros devem muito às políticas que os promoveram, por outro lado tem havido críticas que lhes atribuem muitos dos nossos males, incluindo o atraso industrial e as deficiências competitivas de nosso sistema produtivo.
Por mais que o debate esteja ainda vivo, segundo João Furtado e seus coautores, é incontestável que as políticas de substituição de importações e de conteúdo local foram alicerces da constituição de um Brasil industrial que teve dinamismo e densidade elevados até pelo menos a entrada dos anos 1980, quando a convergência de uma nova revolução tecnológica e industrial, de um lado, e os efeitos de uma crise externa, de outro, contribuíram para uma paralisia prolongada na evolução do sistema industrial.
Dentre as ações recentes, os autores avaliam que há casos em que os sinais de insucesso das políticas de conteúdo local parecem mais numerosos, a exemplo da Lei da Informática e do Inovar Auto. Há outros cuja avaliação é muito difícil em função da forte alteração do ambiente de mercado em que operavam, a exemplo das políticas do setor de petróleo e gás. No setor farmacêutico há resultados positivos, com o desenvolvimento de drogas sintéticas e biológicas, parecendo haver aprendizado tecnológico, embora sua velocidade ainda não tenha assegurado os benefícios pretendidos. Já no caso da energia eólica os sinais de sucesso são mais claros, com a internalização de atividades tecnológicas até então inexistentes, de maior complexidade e a gradativa incorporação de novos componentes e processos produtivos.
Deste modo, parece inoportuno invalidar todo e qualquer desenho de política de conteúdo local, como muitos têm defendido no Brasil, embora seja verdade que algumas de nossas experiências recentes não tiveram os resultados almejados, seja por deficiências em sua concepção, seja por erros e desvios em sua implementação. Ainda são necessárias avaliações mais robustas de todas essas experiências, especialmente, porque existem casos de relativo sucesso que não são reconhecidos no debate atual, a exemplo da geração de energia eólica.
Para que as políticas de conteúdo local produzam resultados mais rápida e eficazmente quanto possível, de modo a evitar oposições ferozes e abandonos irreparáveis, como se tem visto, os autores do estudo estabelecem algumas recomendações e restrições que o desenho das políticas de conteúdo local devem respeitar:
• Se as distâncias que separam a base da indústria local do horizonte internacional de referência são muito grandes, a prudência recomenda que a política de conteúdo local não seja instituída antes de uma fase preparatória que reúna os elementos necessários para o preenchimento do hiato identificado.
• Se a mudança na fronteira internacional de referência tecnológica for muito acelerada, talvez a recomendação mais apropriada seja a de evitar investimentos em conteúdo local para além dos pilotos ou segmentos bem delimitados.
• Políticas que imponham custos temporários aos consumidores poderão ser mais factíveis do que políticas que imponham custos ao sistema industrial, evitando a subtração em cascata de competitividade sobre sucessivos segmentos.
• Adoção de uma concepção de extrema seletividade das políticas de conteúdo local, acompanhada do oferecimento de apoios suficientes para o alcance de resultados que assegurem competitividade internacional.
Por fim, vale ressaltar o princípio que norteia toda e qualquer proposta de política industrial feita pelo IEDI, qual seja, a fixação de prazos para o término das políticas, periódicas avaliações dos seus resultados e seu constante aperfeiçoamento.
Introdução
De acordo com as definições mais aceitas pelos principais organismos nacionais e internacionais (Organização Mundial de Comércio, Comissão Europeia, Governo dos Estados Unidos), Políticas de Conteúdo Local (PCL, doravante) são as ações públicas que exigem a realização naquele país ou território de uma parcela da produção ou a aquisição de fornecedores e produtores locais. Por essa definição, as PCL possuem requisitos essencialmente análogos aos de políticas de substituição de importações, uma vez que o investidor-produtor é obrigado a adquirir ou produzir insumos localmente, mesmo quando prefira comprá-los em outro país.
São ao menos três justificativas teóricas para a adoção de PCL. A primeira é o crescimento econômico que pode ser gerado pela produção decorrente da implementação destas políticas. Evidentemente, a viabilidade da produção local de um novo conjunto de produtos depende intensamente do aprendizado e da aquisição de novas capacidades pelas firmas, o que se tornou cada vez mais importante com a progressiva abertura das economias nacionais e as mudanças dos sistemas de produção (o que, no Brasil, teve início no começo da década de 1990). Por isso, um dos principais objetivos das políticas industriais - ao menos daquelas que estão efetivamente preocupadas com o desenvolvimento econômico consistente no longo prazo - é a geração de novos ativos baseados em conhecimento, que possibilitem às firmas competirem no mercado global, gerando emprego e renda de maneira sustentável.
A crítica a esta linha de defesa é muito evidente e tem sido repetidamente utilizada nos debates, aqui e no mundo: se a produção adicional decorrente da implementação da política for mais cara do que as importações que ela substitui, talvez o conteúdo local não represente um acréscimo muito vantajoso à geração de riqueza. Neste contexto, o argumento de que é preferível manter a importação em detrimento da produção local não carece totalmente de legitimidade, embora devamos ponderar que ele é perfeitamente defensável se o custo adicional à sociedade incorrido pela aplicação de PCL for temporário, em prol do ganho de novas capacidades que no futuro poderão alçar a indústria local a um novo patamar de competitividade. Dito de outro modo, esta linha de defesa e crítica das PCLs tem que ser examinada em perspectiva dinâmica: a situação atual e as possíveis situações futuras, decorrentes das velocidades relativas de aprendizado e capacitação – no país executor da PCL e nos demais países.
A segunda justificativa teórica apoia-se no argumento de que as PCL são instrumento de diversificação industrial. Diversificação e especialização podem ser vertentes complementares de uma mesma estratégia de crescimento. O conceito de diversificação tem pelo menos três conotações. Em primeiro lugar, pode significar o desdobramento de uma estrutura existente de modo a incorporar a produção de novos bens intermediários, ou seja, gerar incrementos no nível geral de integração vertical, internalizando a produção de insumos que até então eram adquiridos externamente. A segunda conotação está relacionada ao aumento da variedade de produtos finais fabricados (uma firma que fabrica motores começar a fabricar equipamentos para energia eólica, por exemplo, sem abandonar a área “tradicional” de atuação). Uma terceira conotação está relacionada a incrementos no número de áreas básicas de produção nas quais a firma opera. Este último tipo de diversificação é de fundamental importância e não pode ser avaliado pelo número de diferentes tipos de produtos, finais ou intermediários, fabricados, pois está mais relacionada ao número de “plataformas tecnológicas” disponíveis internamente (processos biotecnológicos e processos químicos tradicionais, por exemplo). As três conotações para o conceito de diversificação não possuem maiores oposições.
O conceito de especialização, no entanto, tem duas conotações muito diferentes e em vários aspectos opostas. Especializar-se pode significar elaborar apenas alguns poucos produtos ou pode significar fazer muito bem, com elevado rendimento e alta produtividade. Aparentemente, numa visão que parece encontrar respaldo no cotidiano dos indivíduos, executar muitas atividades dificulta fazer concomitantemente bem muitas dessas atividades. Ocorre que o sistema industrial possui relações recíprocas – idealmente sinérgicas – entre os seus elementos constituintes; o sistema industrial é um todo orgânico, complexo, cujo bom funcionamento depende da interação virtuosa entre seus componentes. Quanto mais elementos, maiores as possibilidades de combinações criativas e sinérgicas. A especialização, no sentido de fazer muito bem feito, pode beneficiar-se muito de um sistema produtivo diversificado.
A contribuição da diversificação à eficiência e à competitividade do sistema produtivo só ocorre de forma efetiva e de modo positivo se os elementos constituintes do sistema possuem níveis de produtividade adequados a um sistema global aberto e competitivo. A incorporação de novas cadeias de valor e de novas etapas produtivas ao tecido industrial demanda políticas consistentes, que incentivem a migração de recursos de atividades consolidadas (agricultura, comércio ou indústrias estabilizadas, por exemplo) para a exploração de áreas até então inexistentes (a exemplo da manufatura avançada); mas isso precisa ser feito de modo coerente com os parâmetros do sistema econômico globalizado, cujos processos de aprendizado se tornaram velozes e no qual novas fontes de competição se tornam muito frequentes. Por isso, o aprendizado e o desenvolvimento não têm ponto de chegada, são processos permanentes, que se renovam e que demandam atenção constante das empresas e dos governos.
A terceira justificativa teórica para a adoção de PCL diz respeito à possibilidade de emparelhamento, em termos do desenvolvimento industrial e tecnológico, em relação aos países industrialmente mais avançados (o que se convencionou denominar de catching-up). Tais saltos de longo alcance, como ensina a história, só são possíveis quando as empresas e as políticas dos governos são capazes de promover avanços muito rápidos e persistentes de produtividade, o que, por sua vez, demanda a criação e incorporação de ativos baseados em conhecimento.
É necessário ponderar que as avaliações aqui desenvolvidas nos autorizam a afirmar que as PCL podem agir, no limite, apenas como instrumentos facilitadores da dinâmica descrita nos parágrafos anteriores, porém estão longe de ser uma condição suficiente. É preciso sempre combiná-las com outros instrumentos, tanto de natureza industrial como macroeconômica, em um conjunto coeso capaz de promover um ambiente virtuoso, no qual os beneficiários destas políticas (as empresas locais) absorvam novas capacidades que permitam, no futuro, prescindir das PCL. Não é descabido reforçar que essas políticas possuem custos sociais relevantes, só justificáveis se forem capazes de alicerçar o ganho de competitividade da indústria doméstica que, por fim, tornará a existência destas políticas desnecessária. Nenhuma Política de Conteúdo Local deveria durar para sempre e o seu sucesso deve ser medido também pela facilidade com que pode ser abandonada ou substancialmente modificada para incorporar objetivos mais ambiciosos.
Se as PCL não forem utilizadas como meio para ganho de produtividade podem se tornar mero instrumento de compensação da incapacidade das empresas e do Estado de executarem medidas que visem o aumento da competitividade empresarial e sistêmica. Utilizá-las para simples protecionismo é fazer um uso limitado e anacrônico do instrumento, além de representar o risco de mascarar temporariamente sintomas de baixa competitividade sem, de fato, buscar solucionar as falhas estruturais que condenam a economia ao atraso recorrente.
Políticas de conteúdo local foram um dos pilares centrais das políticas industriais desde pelo menos o século 18 e ganharam força política nos Estados Unidos e na Alemanha, no século 19, associadas às obras de Alexander Hamilton (1757-1804), nos Estados Unidos, e de Friedrich List (1789-1846), na Alemanha. Hamilton, um dos pais fundadores da jovem nação norte-americana, foi também o seu primeiro ministro (secretário) da Fazenda. A ele se devem várias instituições importantes que perduraram e moldaram a economia dos EUA.
É tudo menos obra do acaso que tenham sido os Estados Unidos e a Alemanha, os dois principais países que perseguiam a industrialização liderada pela Inglaterra desde o século 18, aqueles em que surgiram as teses e os argumentos em favor de políticas de proteção e promoção às indústrias nascentes. O conflito entre o liberalismo do líder industrial inglês e as realidades econômicas das economias retardatárias dos Estados Unidos e da Alemanha ofereceu o espaço social e político para a formulação e a execução de ideias protecionistas. A história mostrou, pelo avanço que esses e outros países alcançaram ao longo dos séculos 19 e 20, o acerto das proposições protecionistas e de defesa da produção local. Mas essas políticas não aconteceram para depois acabarem. Elas permaneceram, mesmo que isso ocorra sob novas formulações.
Políticas de conteúdo local, como vertente de políticas de promoção da produção local, têm sido utilizadas regularmente países dos mais diversos perfis. Nos Estados Unidos, o instrumento mais explicitamente voltado para o apoio à produção local é o Buy American Act, que desde 1933 torna obrigatórias as compras de fabricantes locais em projetos de investimento federais, estaduais e municipais. Em 1982 esse instrumento foi reforçado, passando a incluir as compras de todos os projetos financiados com recursos públicos. Ao lado desse instrumento de caráter bastante horizontal, que cobre todos os tipos de compras públicas (diretas e indiretas), as encomendas públicas direcionadas para investimentos de natureza tecnológica constituem um poderoso instrumento de promoção do desenvolvimento, abrindo novas oportunidades pela criação de produtos, processos, indústrias e mercados.
Mas existem também muitas evidências de que essas políticas que produziram resultados muito aquém dos almejados. Em alguns casos, há um abismo entre os resultados obtidos (diminutos) e os custos incorridos (extensos). Este abismo dificilmente pode contribuir para uma defesa incondicional dessas políticas. E uma avaliação criteriosa que considere os sucessos obtidos (frequentemente aquém dos prometidos) e os insucessos cabais é fundamental para a compreensão do instrumento – do seu potencial, dos seus riscos e das suas limitações.
O Brasil praticou políticas protecionistas e políticas de conteúdo local durante muito tempo, com resultados que continuam a ser debatidos. Se por um lado existe o reconhecimento de que a industrialização e o desenvolvimento brasileiros devem muito às políticas que os promoveram, por outro lado tem havido críticas que lhes atribuem muitos dos nossos males, incluindo o atraso industrial e as deficiências competitivas de nosso sistema produtivo. Por mais que o debate esteja ainda vivo, é incontestável que as políticas de substituição de importações e de conteúdo local foram alicerces da constituição de um Brasil industrial que teve dinamismo e densidade elevados até pelo menos a entrada dos anos 1980, quando a convergência de uma nova revolução tecnológica e industrial, de um lado, e os efeitos de uma crise externa, de outro, contribuíram para uma paralisia prolongada na evolução do sistema industrial.
Uma síntese das políticas de conteúdo local no Brasil
O governo brasileiro concebeu e implementou recentemente políticas setoriais para diversas áreas, com resultados que ainda carecem de avaliações sistemáticas e aprofundadas. O presente documento reúne evidências sobre essas políticas, procurando avançar em direção a uma análise equilibrada sobre as políticas brasileiras de conteúdo local: automóveis, petróleo, informática, equipamentos para a produção de energia eólica e produtos farmacêuticos.
A proteção e o fomento à indústria de material de transporte rodoviário (automóveis, caminhões etc) têm origens remotas (anos 1950) e o setor nunca deixou de ter algum tipo de instrumento específico ao longo destes mais de 60 anos. O Inovar-Auto parece ter sido mais um programa de apoio à indústria sem capacidade efetiva de promover uma mudança estrutural ou elevar de modo significativo a sua competitividade e a sua inserção em bases competitivas. Em nossa avaliação, a análise da PCL aplicada à indústria automobilística no Brasil ajuda a refletir sobre o futuro de um programa que representa um insucesso ou, na melhor das hipóteses, um sucesso apenas muito parcial.
Com relação ao estímulo à inovação tecnológica – este um dos principais objetivos declarados do programa – os críticos sustentam que durante a sua vigência o gasto em Pesquisa & Desenvolvimento (P&D) do setor automotivo caiu de 2,8% da receita operacional líquida das empresas do setor em 2011 (antes do Inovar-Auto) para 2,1% em 2014. O número de patentes automotivas registradas pelo Brasil também se reduziu no mesmo período (em 20%). Dessa forma, concluem eles, o Inovar-Auto não apenas não estimulou a atividade tecnológica, como bem pode tê-la desestimulado.
Em relação à fronteira tecnológica, não apenas a indústria local não avançou, como parece estar se distanciando ainda mais. A opção estratégica pelo carro popular, ao massificar o consumo e permitir maior escala, “aprisionou” a indústria em uma trajetória que se encontra em franco declínio. Em relação a ela, o Inovar-Auto é um fracasso – não apenas reforçou esse caminho, como não promoveu nenhum movimento em direção a carros da próxima geração, como os elétricos e os autônomos. Mais grave ainda, a incapacidade da indústria instalada no Brasil de responder aos desafios da desaceleração do mercado interno com exportações substanciais revela a divergência entre os seus padrões e aqueles vigentes internacionalmente. Quando finalmente as exportações apresentaram um novo dinamismo, isso deu-se com vendas para mercados periféricos, onde os padrões de desempenho e eficiência são mais frouxos ou inexistentes. Por outro lado, em relação ao padrão produtivo local, o Inovar-Auto foi bem-sucedido – o que na maioria das vezes passa despercebido pela crítica – ao estimular atividades de engenharia para adaptar tecnologias aos veículos brasileiros e assim internalizar conhecimentos e competências.
O Inovar-Auto criou, também, dificuldades junto aos organismos internacionais que regulam (e fiscalizam) o comércio internacional, como a Organização Mundial do Comércio (OMC). Os defensores dessa política setorial apontam ganhos relevantes, mas não é difícil constatar que ela não promoveu um revigoramento robusto e com projeção internacional digna de nota.
A análise realizada sobre o Inovar-Auto mostra que a combinação de forte proteção com estímulos estruturantes frágeis é uma fórmula muito pouco promissora. A diretriz que se pode indicar nesse caso é no sentido de um novo enquadramento da indústria automobilística brasileira, inserida numa perspectiva de futuro da mobilidade, da urbanização e dos novos modelos emergentes - inteligentes, autônomos, compartilhados, integrados. Correr na retaguarda de uma trajetória em esgotamento deveria dar lugar à conquista de posições nas tendências emergentes, enquanto não se formam barreiras e a entrada não é dificultada ou impedida.
As evidências reunidas mostram que o Inovar-Auto é mais do que uma sucessão de políticas ou instrumentos que há muito tempo não podem ser consideradas uma contribuição efetiva à transformação estrutural da indústria automobilística, que sempre teve importância e em relação à qual a sociedade brasileira mantém elevada expectativa. Vem daí a pergunta que cabe fazer, de modo quase inevitável: vale a pena prosseguir numa corrida que a esta altura parece ser, além de improdutiva (em face dos resultados), cada vez mais irrelevante, quando os carros elétricos e os autônomos, além das novas formas de uso compartilhado, poderão reduzir drasticamente as dimensões das frotas e colocar os fabricantes em posição subalterna frente aos provedores de serviços de mobilidade?
A indústria naval e a indústria fornecedora para a indústria (extrativa) do petróleo são objeto de políticas de conteúdo local em muitos países. A razão é evidente: um grande número de países que possui jazidas de petróleo (e de gás) é desprovido de outras atividades econômicas comparáveis à importância do petróleo e procuram por isso utilizá-lo para ampliar os transbordamentos - geralmente diminutos - que ocorreriam de maneira mais ou menos automática. Em outros países, com estruturas de produção e sistemas econômicos mais desenvolvidos, os efeitos de uma fonte de recursos oriundos da venda do petróleo (ou dos investimentos externos associados) induz uma valorização da moeda local e com isso há uma redução dos níveis de competitividade de todas as demais atividades - a chamada “doença holandesa”. Esse efeito produtivo decorrente dos fluxos monetários (entrada de divisas) motiva os países - mesmo os mais desenvolvidos - a buscarem novas áreas competitivas, com a diversificação de suas estruturas produtivas associadas à cadeia do petróleo.
A situação brasileira pode ser considerada intermediária em relação a essas duas situações polares. Por um lado, o Brasil possui uma pauta de exportações diversificada, mas com uma elevada proporção de produtos agropecuários e minerais. Por outro lado, a base industrial herdada do período de industrialização acelerada (1930-1980), mesmo que esteja muito enfraquecida, ainda oferece os elementos para aspirações maiores. Foi nesse contexto, entre essas duas condições extremas, que no Brasil a indústria do petróleo foi alçada à condição de grande promessa para o desenvolvimento industrial. Vários fatores concorriam para isso: as condições singulares do petróleo brasileiro, concentrado em águas profundas; a presença de uma empresa de controle estatal em posição dominante; e a construção de uma tradição tecnológica que remonta aos anos 1950, quando a Petrobras foi responsável pela implantação de novos segmentos industriais.
O exame da política de conteúdo local para a indústria de petróleo deve dissociá-la dos eventos estranhos que a marcaram negativamente no período recente. É possível que os investimentos realizados por essa grande empresa contribuíssem para o revigoramento do tecido industrial brasileiro e para a sua diversificação em bases competitivas, sem, no entanto, onerar os próprios investimentos da indústria do petróleo? É difícil separar os elementos que compuseram no período recente essa trajetória da indústria do petróleo dos elementos que afetam as indústrias de commodities nos auges cíclicos de seus preços, quando os custos permanecem essencialmente vinculados aos investimentos feitos no passado e os preços disparam, gerando volumes de recursos que parecem, como o café nos anos 1920, “dar para tudo”, pagar qualquer conta, inclusive a conta de investimentos que não se justificam economicamente. É por isso que o caso da indústria de petróleo e gás é o mais complexo, pois nele se combinam fatores muito diversos que influenciam os resultados da política e as percepções que deles são extraídos pelos observadores e pela sociedade.
A sistematização aqui feita sobre as avaliações dos resultados da política neste caso mostra que a PCL no setor de petróleo e gás é considerada, em geral (o que não significa completamente), um fracasso, devido aos vários problemas que enfrentou, alguns relativos à concepção e condução da política, outros à dinâmica e ao desempenho específico do setor. No primeiro caso, ressalta-se a baixa seletividade e a falta de estímulo ao desenvolvimento de atividades tecnológicas ou às exportações por parte das empresas. Por conta do desenho da política, que requer conteúdo local mais elevado das atividades mais fáceis, os componentes mais intensivos em tecnologia podem ser importados. Somada à baixa exportação, o resultado é que a PCL não reduziu o déficit comercial do setor. No segundo caso, apresentam-se a queda dos preços do petróleo a partir de 2014 e, no mesmo período, a crise da principal operadora do setor, a Petrobras.
A política de conteúdo local destinada ao setor de P&G foi submetida a uma forte crítica a partir de 2014. Como é preciso destacar, uma parte das críticas proveio de fornecedoras internacionais de componentes e serviços, que viram seus interesses prejudicados pelo desenho da política. Mas parte das críticas partiu de diversos estudos preocupados com a baixa eficiência produtiva (na maioria dos estudos) e com a falta de incentivos, seja para o desenvolvimento de atividades mais sofisticadas, seja para a busca de competitividade das empresas do setor. Há bastante substância em tais críticas, em nossa opinião. Se a PCL se resumiu a elevar o emprego e a renda doméstica, com efeitos apenas de curto prazo; se, além disso, o fez incentivando a atuação nos segmentos menos “nobres” da cadeia de fornecimento; e se os custos dos insumos foram maiores e sua qualidade e prazo de entrega piores do que o congênere importado – como não avaliar negativamente a política?
É preciso ressaltar, contudo, que existem casos notórios de sucesso, ainda que parciais e isolados, resultantes da PCL e do crescimento setorial que ela induziu. Esses casos encontram-se na engenharia de projetos, nos quais os escritórios de engenharia desenvolveram soluções para as operações de Exploração e Produção (E&P) e hoje se posicionam internacionalmente. Há também resultados positivos na criação de centros de P&D de empresas multinacionais no Brasil, que não seriam possíveis sem esforços incisivos da política. No entanto, ainda assim a pergunta se mantém pertinente: esses resultados justificam os grandes custos sociais relacionados à PCL destina à indústria de P&G no Brasil?
Deixando de lado o fato de que os fornecedores foram afetados também pela crise pela qual passa o setor de P&G como um todo, uma reflexão sobre as críticas supracitadas encaminha uma proposição menos sombria. Ao invés de abandonar a PCL, como fez o governo atual, um direcionamento mais construtivo seria elaborar um diagnóstico dos fornecedores da cadeia de P&G, identificando suas competências, o que pode – e o que não tem condições – de ser produzido localmente. A partir daí, se preservariam as competências adquiridas e o conhecimento acumulado no período de expansão do setor, entre 2007 e 2014. Os centros de pesquisa tecnológica também seriam apoiados, uma vez que esse “investimento fixo” sofisticado é o mais importante feito em virtude da PCL. Finalmente, é importante registrar que incentivos diretos ao aprendizado e à construção de novas competências no setor (principalmente à P&D e à exportação) podem funcionar melhor do que um complexo sistema de monitoramento e punição por não cumprimento dos requisitos de conteúdo local, se o que se deseja é impulsionar a competitividade internacional da indústria brasileira de P&G.
O contraponto da política de conteúdo local da indústria de petróleo com outro segmento de energia não poderia ser mais nítido. Foi em uma indústria nova para o Brasil (e para os demais países) que a política de conteúdo local alcançou os resultados mais promissores. Uma combinação inteligente entre a política energética (Ministério das Minas e Energia) e a política de financiamento aos investimentos (BNDES) das empresas de geração de energia eólica produziu resultados muito substanciais.
O Brasil tem experimentado ganhos expressivos na capacidade de geração de energia a partir dos ventos. A participação da fonte eólica na energia gerada no período pelas usinas do sistema alcançou 8,3% em março de 2018. Com isso, a energia eólica já empata com o gás natural como terceira fonte de energia em capacidade instalada no Brasil e se aproxima cada vez mais da biomassa, com 9,3%, segundo informações do Valor Setorial 2018 Energia. De acordo com a ABEEólica, a associação representativa do setor, a energia gerada pelas eólicas já chega a abastecer mais de 10% do País em alguns meses do ano (chegando a mais de 60% no Nordeste nos meses da “safra de vento”, ou seja, de junho a novembro) e é suficiente para abastecer cerca de 22 milhões de residências por mês.
Assim como em outros empreendimentos de geração de energia, a construção de parques eólicos tem custos de capital elevados, com longos períodos de amortização. O acesso a fontes competitivas de recursos financeiros, portanto, é de grande importância. O BNDES exerceu papel fundamental no crescimento do setor eólico no país. O documento “Mapeamento da Cadeia Produtiva da Indústria Eólica no Brasil” da Associação Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI) estima que 90% dos parques eólicos do Brasil tenham sido financiados pelo Banco. Os desembolsos do BNDES para geração eólica bateram recorde em 2017, duplicando o valor de 2016. Os empréstimos do BNDES para o setor totalizaram 7 bilhões de reais e representaram mais da metade do total destinado pelo Banco para a área de energia no ano de 2017.
Mais do que isso, o BNDES teve atuação crucial no desenvolvimento da cadeia industrial de produção do aerogerador no Brasil. A metodologia concebida e colocada em vigor pelo banco de desenvolvimento em 2012, para o credenciamento de aerogeradores passíveis de financiamento, foi muito oportuna ao estabelecer metas físicas de aumento gradual, de incorporação de novas capacidades nas montadoras e fornecedores de componentes. Em combinação com os leilões de energia - que garantiram demanda consistente para novos projetos, com remuneração adequada - esta política de fomento gerou encadeamentos relevantes de aprendizado e de construção de novas capacidades, que se tornaram o alicerce para que o Brasil viesse a assegurar a produção integral do aerogerador em bases competitivas. A ação pública permitiu o desenvolvimento da cadeia produtiva, com a internalização de atividades tecnológicas de maior complexidade, até então inexistentes, e a gradativa incorporação de novos componentes e processos produtivos.
A política de conteúdo local aplicada ao desenvolvimento da cadeia produtiva do aerogerador no Brasil ensina uma importante lição em termos de política industrial: as políticas podem e devem evoluir com base em avaliações contínuas dos resultados obtidos, em contraposição aos seus sempre existentes custos sociais, tendo como principal parâmetro as metas inicialmente propostas. Na sociedade voltada para o conhecimento, as empresas, que são os elementos constituintes centrais das indústrias e dos mercados, concebem estratégias e implementam ações que resultam em aprendizado - individual e coletivo. Isso pode ocorrer com elevada intensidade e resultar em progressiva elevação do patamar de competitividade e da qualidade dessa competição, que se desdobram em resultados positivos para a economia e a sociedade.
Para se ter uma ideia da evolução da indústria brasileira de equipamentos para energia eólica nos últimos anos, até 2009 o Brasil contava com a presença de apenas duas montadoras de aerogeradores (Wobben e Impsa) e duas produtoras de pás eólicas (Tecsis e Wobben). Atualmente, o país conta com a presença de pelo menos oito montadoras (Wobben, Alstom, Gamesa, Vestas, Siemens, Acciona, General Eletric e WEG) e quatro produtoras de pás eólicas (Tecsis, Wobben, LM e Aerys).
As políticas industriais para o setor energético, mais precisamente para o segmento de energia eólica, parecem ter sido capazes de promover um aprendizado coletivo, envolvendo as empresas e o setor público, desde os primeiros leilões (sem resultados), passando pela modificação nos critérios de nacionalização dos equipamentos (impedindo uma especialização de baixo potencial tecnológico e industrial), até os resultados dos leilões realizados no fim do ano passado, que permitiram investimentos consideráveis associados a uma oferta de energia nova a preços competitivos.
O que esta experiência revela é a capacidade das políticas públicas de sinalizar para as empresas de modo claro os seus propósitos, gerando correspondente conjunto de ações privadas. A existência no Brasil de um parque industrial metalmecânico bastante diversificado, com empresas detentoras de capacidades produtivas e competências tecnológicas pertinentes para a indústria de aerogeradores, facilitou o aprendizado relativamente rápido, para os padrões brasileiros da velocidade de incorporação de conhecimento. A relativa simplicidade e elevada transparência da política que foi proposta e executada por um número relativamente pequeno de atores públicos também cumpriram um papel relevante. Por isso, mais do que simplesmente sustentar a efetividade da política que foi concebida e executada no período recente, a análise da política de equipamentos para energia eólica sugere pelo menos duas novas questões.
A primeira diz respeito aos possíveis desdobramentos dessa política. Tendo alcançado um patamar de competitividade aceitável, tendo feito bom uso dos incentivos construídos e criado um ambiente saudável, como pode ela se desdobrar agora em novos desenvolvimentos (a exemplo de inovações nos equipamentos ou nos processos de fabricação) de modo a promoverem um novo impulso de competitividade? Pode o Brasil ambicionar tornar-se um polo de fabricação de equipamentos ou partes e subsistemas de aerogeradores com projeção internacional? Quais ações privadas e públicas deveriam ser adotadas para que a indústria possa ser alçada a essa posição competitiva?
A indústria de informática constitui também um exemplo de política antiga e relativamente persistente, a despeito das mudanças que sofreu ao longo do tempo. As políticas industriais voltadas para o complexo eletrônico, da qual o segmento de informática (componentes, equipamentos e software) faz parte, remontam ao final dos anos 60 do século passado.
A política atual, no entanto, surgiu na década de 1990. A Lei da Informática, como ficou conhecida, concede incentivos fiscais às empresas do setor que cumpram determinado esforço mínimo de P&D e um conjunto de atividades conhecido como Processo Produtivo Básico (PPB). O incentivo fiscal consiste na redução do IPI em produtos habilitados/incentivados. O PPB é um mecanismo para determinar o nível de nacionalização necessário para cada tipo de produto que é objeto de incentivo.
É preciso reconhecer que a utilização dos incentivos fiscais vinculados a esta política é responsável pela permanência ou instalação de muitos empreendimentos industriais no Brasil, tanto no Polo Industrial de Manaus, como em outras localidades do País. No entanto, os resultados dessas políticas são alvo de grandes polêmicas que ainda permanecem inconclusivas. A análise a seguir destaca aspectos importantes da natureza da informática, esse universo que se iniciou com um dispositivo aparentemente muito precário (a patente dos Laboratórios Bell, em 1949) e vem caminhando para transformar de maneira muito radical a produção, os modelos de negócios, o consumo e a vida dos indivíduos e da sociedade global.
No Brasil, o mínimo que se pode dizer como crítica à política de informática é que ela é extremamente dispendiosa de recursos públicos sem que os resultados para a sociedade estejam em proporção razoável. Há resultados? Sem dúvida que sim. A indagação que se coloca é se esses resultados permitem que a informática, com o seu substrato eletrônico e a difusão digital, entregue para a sociedade tudo o que ela espera ou pelo menos aquilo que lhe permitiria melhorar de modo efetivo a produtividade e a competitividade do sistema produtivo e os padrões de consumo e de vida dos indivíduos e das famílias. As informações aqui reunidas não permitem dar uma resposta afirmativa a esta pergunta.
É preciso reconhecer que o advento da indústria 4.0, da internet das coisas e da digitalização generalizada deverão transformar de forma inédita os ambientes de produção e de consumo, bem como as vidas privada e social. Por isso, qualquer política de informática na atualidade tem diante de si o desafio de ser capaz de oferecer a todos os setores produtivos, às cidades, às famílias e aos indivíduos os meios para o pleno aproveitamento dessas oportunidades. A indústria 4.0 e os modelos emergentes de sua difusão no Brasil parecem indicar que as políticas brasileiras para a informática são insuficientes ou inadequadas para que ela possa cumprir o papel estruturante que mais do nunca se tornou necessário. A informática é muito mais do que uma indústria, ela é um vetor do desenvolvimento de todas as indústrias, que viabiliza novas soluções e difunde tecnologias. Por isso, o seu desenvolvimento deve, mais ainda do que em outros casos, ser avaliado por suas relações com o sistema industrial, com todas as demais atividades e com o consumo de serviços avançados, e não por seu desenvolvimento “endógeno”.
É na informática e nas tecnologias de informação e comunicação que a dicotomia moderna entre o físico e o imaterial se expressa de modo mais nítido. Os componentes materiais da indústria vão perdendo terreno para os elementos digitais que comandam a produção e o consumo, bem como as relações entre eles. O sonho brasileiro de protagonismo da fabricação microeletrônica e na montagem de seus artefatos finais, por legítimo que seja, não deveria ofuscar a prioridade que deve ser dada à constituição de soluções inteligentes para a digitalização dos sistemas fabris.
E, neste plano, a prioridade das prioridades deveria ser atribuída à difusão massiva de tecnologias digitais no sistema de produção das centenas de milhares de empresas que só poderão sobreviver se migrarem rapidamente para esse estágio preparatório do modelo 4.0. As grandes empresas, as empresas líderes de seus setores, as filiais de grupos multinacionais instaladas no Brasil, essas sempre poderão assimilar os pacotes tecnológicos da manufatura avançada. Mas o tecido industrial habitado por muitas médias e pequenas empresas, que dão sentido à expressão sistema industrial, não poderá seguir a mesma trajetória e dependerá de uma fase prévia de preparação para a etapa digital antes de reunir as condições mínimas para ingresso no novo modelo emergente. Por isso é crucial que a política de informática desloque os seus estímulos da montagem local de artefatos para a difusão de tecnologias habilitadoras da digitalização. Se possível, esse impulso da digitalização massiva poderá servir de estímulo para um conteúdo local progressivamente maior. Mas esse deveria ser um resultado derivado, não um objetivo constitutivo.
A indústria farmacêutica brasileira tem sido alvo de políticas que costumeiramente buscam conciliar o que pode não ser conciliável. Por um lado, pretende-se desenvolver uma indústria a partir de seu aprendizado tecnológico, partindo de curvas inevitavelmente desfavorecidas no início (em função do retardo no ponto de partida); e por outro lado, utiliza-se o poder de compra do Estado, por meio do Ministério da Saúde, para realizar aquisições que desde o início precisam ser feitas (por razões orçamentárias) em bases de preço reduzidas. O curto prazo torna-se assim inimigo do longo prazo.
No período recente, mais precisamente em 2008, o Governo Federal iniciou por meio do Ministério da Saúde a consolidação de um marco institucional para apoiar a capacitação tecnológica em indústrias relacionadas à saúde, que foram definidas como o "Complexo Industrial da Saúde". Esta iniciativa foi parte da Política de Desenvolvimento Produtivo, a Política Industrial Brasileira para o triênio 2008-2010.
Este quadro institucional abriu o caminho para o lançamento, em abril de 2009, de 11 Parcerias de Desenvolvimento Produtivo (PDPs) para a produção local de medicamentos e produtos estratégicos – incluindo seus princípios ativos. Essas parcerias seriam formadas entre fabricantes nacionais e estrangeiros e laboratórios estatais para produzir e fornecer localmente ao sistema de saúde pública. Nestes arranjos, a empresa privada assume a produção dos ingredientes ativos e os fornece ao parceiro público, um laboratório estatal que formulará o medicamento. Além disso, os laboratórios privados devem transferir a tecnologia para a produção da droga para laboratórios públicos dentro de cinco anos, enquanto o Ministério da Saúde garante a exclusividade nas compras governamentais do medicamento durante esse período.
Tal exclusividade na prática significa que os parceiros garantiriam um mercado viável se a produção local do medicamento fosse desenvolvida com sucesso, enquanto (1) o preço unitário no primeiro ano do contrato deve ser inferior ao preço unitário da última licitação pública; (2) este preço deve se reduzir gradualmente durante o contrato de cinco anos com uma taxa mínima de 5% ao ano.
Segundo o Ministério da Saúde, atualmente, existem 83 PDPs em andamento para a produção local de 38 drogas sintéticas, 24 produtos biológicos (incluindo biossimilares e vacinas) e 21 dispositivos médicos. Ainda segundo o Ministério, desde março de 2017, 35 PDPs estão fornecendo o produto correspondente ao Ministério da Saúde, gerando uma redução de gastos estimada em um total de US$ 1,5 bilhão em aquisições de produtos para o sistema de saúde pública. No entanto, tal economia é calculada com relação ao preço da última aquisição pública e não considera a redução de preços no mercado internacional ou de fornecedores alternativos, no caso de produtos não protegidos por patentes.
Em março de 2017, o Ministério da Saúde redistribuiu as PDPs de alguns produtos biológicos. Tal redistribuição considerou a expertise das instituições para fabricar insumos usados no tratamento de artrite, câncer e doenças autoimunes com o objetivo de promover especialização dos laboratórios e oferecer competitividade, escala de comercialização dos produtos e capacitação dos pesquisadores.
Pode ser ainda muito cedo para avaliar o impacto real desta política em termos de criação de capacidades tecnológicas. Esse processo é complexo e leva tempo para que os retornos do investimento realizado possam ser colhidos. Por isso, não está claro se os incentivos proporcionados por esta política pública estão repetindo os erros anteriores das políticas de substituição de importações. A exclusividade de mercado e a modesta redução obrigatória de preços podem gerar acomodação. Se for esse o caso, o efeito colateral será o acesso reduzido aos medicamentos, não apenas no curto, mas também no longo prazo. A produção local de produtos farmacêuticos, incluindo ingredientes ativos, indiscutivelmente é importante para a acumulação de conhecimento. No entanto, isso não deve ser uma desculpa para a falta de competitividade da indústria local e para a imposição de preços elevados para os pacientes e para o sistema de saúde brasileiro.
As parcerias público-privadas da indústria farmacêutica pretenderam enfrentar a contradição costumeira das políticas voltadas para esse setor com um novo arcabouço. Os resultados das recentes edições de políticas ainda não tiveram uma avaliação suficiente, mas os indícios são menos auspiciosos do que o desejável. Parece haver aprendizado, mas a sua velocidade ainda não assegurou os benefícios pretendidos e prometidos.
Conclusões: as políticas de conteúdo local como instrumento de aprendizado, capacitação e desenvolvimento
O desenvolvimento econômico, do ponto de vista de um determinado país, pode ser compreendido como um processo em que se passa de um conjunto de ativos baseados em produtos primários para um conjunto de ativos baseados no conhecimento, explorado por recursos humanos qualificados em atividades muito específicas, de alto grau de complexidade. Essa transformação exige que se atraia capital (físico e humano) do comércio e das atividades do setor primário (agricultura, mineração) para a indústria, que é o motor do crescimento econômico moderno. Em todo o mundo, é no setor manufatureiro que os ativos baseados no conhecimento foram cultivados e usados com mais intensidade. É nesse sentido que a indústria é o coração do desenvolvimento: ela gera os ativos que, ao serem incorporados pelos outros setores da economia, vão permitir a sua propulsão a um patamar superior de eficiência e competitividade. Não é difícil encontrarmos exemplos nesse sentido. Basta citarmos dois: a revolução que os agroquímicos provocaram na produção de alimentos; e os produtos da microeletrônica que deram uma nova conotação ao que conhecemos por “serviços”.
O conhecimento é um ativo econômico muito especial, porque é escasso: é difícil acessá-lo, seja pela sua produção seja pela sua aquisição. O conhecimento é conceitual, no sentido de que envolve combinações de pedaços de informação que interagem de múltiplas formas. Assim sendo, o conhecimento é específico a cada usuário (organização ou empresa), sendo apropriado na medida do possível de modo a gerar rendas tecnológicas exclusivas.
As diferentes tecnologias (o motor a combustão interna, os processos petroquímicos e os semicondutores, por exemplo) podem ser compreendidas como “pacotes” de conhecimento. Em parte, este conhecimento é tangível e formalizado (em normas, em regras de operação e em artefatos físicos), mas em grande medida é tácito, ou seja, é o “saber fazer” que não está formalizado e que, portanto, é de difícil transferência - o que a literatura denomina “conhecimento desincorporado”. Capacidades tecnológicas capazes de gerar novos produtos e novas técnicas de produção são parte dos ativos intangíveis de uma corporação. Tais ativos permitem à empresa ser mais eficiente que seus concorrentes, vendendo a preços relativamente maiores ou produzindo a custos relativamente menores. Como ativos baseados em conhecimento são exclusivos, específicos à firma que o possui, eles permitem à empresa obter rendas desse monopólio (temporário) que, no longo prazo, estão no cerne de sua sobrevivência.
Depreendemos da análise dos parágrafos anteriores que o grande desafio dos países em desenvolvimento, como o Brasil, é superar a escassez de ativos baseados em conhecimento, o que conduz esses países à inabilidade para concorrer globalmente em bases competitivas com os países mais avançados, mesmo em indústrias mais compatíveis com sua dotação relativa de fatores produtivos (a indústria têxtil, a petroquímica, a automobilística etc). Este deve ser, portanto, o objetivo com primazia em políticas industriais: a geração e incorporação de ativos baseados em conhecimento, como capacidades tecnológicas avançadas, que permitam ao país que as adota ter empresas capazes de sobreviver em um sistema de competição global.
É neste contexto que se inserem as políticas industriais e, mais especificamente, as políticas de conteúdo local. Essas políticas foram ampla e intensamente utilizadas por muitos diferentes países desde pelo menos o século 19, quando as economias retardatárias da Europa e dos Estados Unidos procuraram desenvolver as suas estruturas econômicas contando com o reforço da mola propulsora do mercado interno. Países da América Latina, da Ásia e da África, bem como das periferias da Europa, trilharam o mesmo caminho no século 20, com resultados variáveis segundo os países e os setores.
O advento da globalização, com suas transformações nas cadeias de produção, nas configurações empresariais e nos aparatos institucionais reguladores dos fluxos mundiais de comércio, modificou substancialmente o modus operandi e as possibilidades de funcionamento dessas políticas promotoras da produção local. Se no passado, com regimes de proteção elevados e duradouros, o aprendizado induzido pelas políticas de conteúdo local podia ter uma velocidade relativamente reduzida, no presente, cada vez mais as políticas de conteúdo local terão que produzir os seus resultados tão rápida e eficazmente quanto possível, sob o risco de enfrentarem oposições ferozes e abandonos com custos irreparáveis.
Isso impõe ao desenho das políticas algumas restrições e recomendações objetivas. Em primeiro lugar, se as distâncias que separam a base da indústria local do horizonte internacional de referência são muito grandes, a prudência recomenda que a política de conteúdo local não seja instituída antes de uma fase preparatória que reúna os elementos necessários para o preenchimento do hiato identificado. Em segundo, se a mudança na fronteira internacional de referência for muito acelerada, talvez a recomendação mais apropriada seja a de evitar investimentos em conteúdo local para além dos pilotos ou segmentos bem delimitados em que os custos eventuais da política não excedam as vantagens de um aprendizado que poderá, oportunamente, oferecer as condições para uma política de desenvolvimento local da produção mais abrangente.
Políticas que imponham custos temporários aos consumidores poderão ser mais factíveis do que políticas que imponham custos ao sistema industrial. A razão é simples: os custos temporários (e dentro de certos limites) aos consumidores representam um ônus que se dilui sobre a cesta de consumo, enquanto sobre segmentos específicos do sistema industrial poderão representar a inviabilidade de uma indústria inteira (o conjunto de empresas congêneres dependentes desse insumo) e a subtração em cascata de competitividade sobre sucessivos segmentos. Em todos os casos, sem exceção, a política de conteúdo local deveria atentar para os três parâmetros básicos de seu sucesso: a distância que separa a base local do horizonte internacional, a velocidade de transformação desse horizonte e a capacidade local de superar a defasagem existente com ações deliberadas e vigorosas de aprendizado e aquisição de competências.
Uma vez que a capacidade do sistema industrial para se mover em direção à fronteira da concorrência internacional é dependente de apoios do sistema público e de ações complementares por parte de instituições associativas e coletivas, é preferível que as políticas desenhadas para a promoção desse “emparelhamento” sejam concebidas com uma panóplia de instrumentos suficiente para assegurar o seu rápido sucesso ou abandono liminar. A consequência dessa proposição é clara: as políticas de conteúdo local precisam ser extremamente seletivas. Sem isso, além de se somarem custos sobre os setores relacionados (sobretudo os demandantes de seus produtos), dilui-se a capacidade limitada do aparelho público em apoiar, acompanhar e monitorar detalhadamente o avanço do aprendizado e da conquista de uma posição competitiva sustentável.
Por isso, uma recomendação importante que a contemporaneidade impõe à Política Industrial deve ser a concepção de uma extrema seletividade das políticas de conteúdo local, acompanhada do oferecimento de apoios suficientes para o alcance de resultados que devem ser, desde a partida, considerados suficientes para o alcance de competitividade internacional. Assim, o setor beneficiário de uma política passa rapidamente do rol dos portadores de deficiências ou insuficiências competitivas para o dos competitivos. Com isso, minimizam-se os custos da política e aumentam-se as possibilidades de seu sucesso.
É útil recordar, por fim: o maior risco de uma política industrial é provocar a sua perda de legitimidade perante a sociedade. A prudência recomenda, por isso, que a ousadia dos seus objetivos seja sempre acompanhada dos meios para a sua consecução. São os sucessos que reforçam a base industrial e a confiança da sociedade na capacidade pública de formular políticas e nas estratégias privadas para executar as ações correspondentes. Só eles podem evitar a descontinuidade das políticas, que provoca a dilapidação de recursos públicos e privados e a imposição de custos sociais sem contrapartida.