Carta IEDI
Por um BNDES relevante
A Carta IEDI de hoje volta ao tema do financiamento de longo prazo e do investimento privado no Brasil, a partir do trabalho preparado pelo professor da URFJ e ex-vice-presidente do BNDES João Carlos Ferraz, cuja versão integral está disponível no site do IEDI.
Este é o quinto exemplar da série recente de estudos sobre este tema, que inclui o documento “O BNDES em uma encruzilhada: como evitar sua desmontagem” (Carta IEDI n. 828 de 30/1/18) preparado pelo economista Ernani Teixeira; “Para um novo desenvolvimento, um novo BNDES” (Carta IEDI n. 834 de 5/3/18) realizado pelo consultor do IEDI, João Furtado; “Aliviando as restrições de crédito em países emergentes: o impacto dos financiamentos do BNDES na produtividade das firmas industriais brasileiras” (estudo publicado em 1/6/18), de autoria de Filipe Sousa e Gianmarco Ottaviano; “Financiamento do investimento no Brasil e o papel do mercado de capitais” (Carta IEDI n. 850 de 6/6/18) de Carlos Rocca.
Como se sabe, o país atravessa um momento de retração dos investimentos ao mesmo tempo em que estão em curso transformações nos padrões de produção, concorrência, modelos de negócio, consumo e estilos de vida. Neste momento de incerteza, ganha grande relevância discutir como preparar o BNDES para que mantenha um papel relevante para o futuro do país.
Esse é o ponto de partida do trabalho de João Carlos Ferraz. Qual deve ser a contribuição do BNDES para a evolução futura do país, a partir do seu estágio de desenvolvimento e em meio a transformações importantes na economia real, tanto no Brasil como no mundo?
O primeiro ponto levantado pelo autor é que o volume das operações do BNDES deverá aumentar e novas fontes de recursos serão necessárias. O argumento parte da constatação de que ao longo de sua história a missão do BNDES é apoiar o investimento e na média de 1952 a 2017 este apoio correspondeu a 1,45% do PIB.
Supondo um PIB de aproximadamente US$ 2 trilhões, isto significaria, atualmente, um desembolso da ordem de US$ 30 bilhões por ano. Os desembolsos correntes do BNDES estão abaixo deste montante e, caso a taxa de investimento da economia brasileira cresça nos próximos 3 anos para, por exemplo, 18% do PIB, mesmo que outras fontes de financiamento compareçam com presteza e força, será necessária uma participação mais ativa do BNDES, para além da posição tímida atual.
O segundo aspecto destacado por Ferraz surge como contrapartida do consenso que parece ter se formado de que as prioridades do BNDES deveriam ser infraestrutura, empresas de menor porte, inovação e meio-ambiente. Caso, de fato, sejam estas as suas prioridades, o Banco deverá ter uma maior disposição de assumir os riscos de desenvolvimento, ou seja, a instituição deve estar disposta a incorrer nos riscos (protegendo-se) e recompensas (lucrando e financiando a expansão de seu capital) associadas a estes objetivos.
Isto significa, sustenta o autor, que as autoridades devem avaliar se a natureza e extensão dos benefícios concedidos ao BNDES são adequados, e, além disso, devem avaliar se o escopo de atuação da instituição deve se concentrar somente nestas missões. Nesses pontos, o autor lembra que são muito limitados os benefícios que as autoridades brasileiras conferem ao seu principal agente de desenvolvimento, ao contrário do que ocorre na média mundial. O KfW alemão, por exemplo, não paga dividendos, não recolhe impostos, tem garantia soberana automática e acesso a recursos parafiscais.
Outra sugestão é que o BNDES preserve o escopo diversificado de suas operações para diluir riscos, realizando operações seguras, de baixo risco e operações lucrativas. Isto inclui operar também com grandes empresas com as devidas condicionalidades de governança, sustentabilidade, etc.
O autor lembra que a maioria dos bancos de desenvolvimento existentes não é especializada e sim diversificada em termos de instrumentos e segmentos atendidos. A lógica da diversificação é bem direta e não é diferente de outras instituições financeiras que buscam uma distribuição de riscos e recompensas pela gestão de portfolios: taxas baixas e prazos longos podem ser compensados por operações de menor prazo e maior taxa; operações de maior risco podem ser compensadas por segmentos de retorno previsível e seguro.
O BNDES também deve preservar uma atuação anticíclica, segundo a seguinte orientação: na fase ascendente, a instituição precisa estar atenta para abrir espaços para a indústria financeira. Todavia, quando as taxas de crescimento arrefecem e a indústria financeira age para proteger seus balanços e quando os mercados de financiamento reduzem ou param de fornecer financiamento, cresce a importância das instituições públicas. Para ser eficaz, o papel anticíclico de um banco de desenvolvimento deve ser adequado e específico ao momento e às necessidades dos agentes econômicos.
Ferraz defende ainda que, seguindo a grande maioria dos bancos de desenvolvimento de outros países, o BNDES deve atuar não em oposição, mas em parceria com a indústria financeira local. A experiência do BNDES em estabelecer parcerias com bancos comerciais e com o mercado de capitais, por meio de fundos ou não, e induzir mercados secundários deve ser aprofundada.
Finalmente, se faz muito necessário o desenvolvimento de ferramentas de avaliação de políticas. Quando iniciar, quando encerrar uma intervenção de política? Ou, como circunscrever uma iniciativa política aos limites de sua eficácia? O tema não é trivial quando os parâmetros envolvidos abrangem mudança estrutural, inovação, meio-ambiente, investimentos de longo prazo, duração de ciclos econômicos que são de difícil estimativa.
Será importante, como sugere o autor, institucionalizar processos de busca sistemáticos e permanentes, experimentar e implementar soluções inovadoras relacionadas a metodologias de identificação de ativos tangíveis e intangíveis de projetos e beneficiários e aos métodos de impacto ex ante, associados a processos de acompanhamento, e à avaliação ex post. Estes são ingredientes essenciais para um constante processo interno de aprendizagem e para prestar contas à sociedade.
Este trabalho não trata do BNDES do passado ou do presente, mas do BNDES do futuro. Qual deve ser sua contribuição para a evolução do país, a partir do seu estágio de desenvolvimento e em meio a transformações importantes na economia real (no Brasil e no mundo)? Que lições podem trazer as experiências de bancos de desenvolvimento de outros países? Que pilares devem sustentar o BNDES - e mesmo qualquer banco de desenvolvimento? É possível discernir e apontar, hoje, consensos sobre que espaços o BNDES deve ocupar? Quais são eles? O BNDES está preparado para realizar estes consensos? Que competências ele possui e quais deve ainda conquistar? Há algum outro espaço não consensual, mas que pode ser interessante para uma instituição pública de fomento? Este ensaio explora estes temas. E, como ensaio, sua ambição é provocar o debate sobre como manter o BNDES relevante para o país, como o tem sido desde 1952, ano de sua fundação.
É muito importante deixar clara a questão mestre deste ensaio: como o BNDES pode e deve ser relevante para o Brasil? Fazendo jogo com as palavras: este ensaio é irrelevante para aqueles quem não consideram bancos de desenvolvimento como instituições pertinentes para uma economia nacional. E, ao contrário, este ensaio pode ser relevante para aqueles que sim estão convictos que instituições públicas de fomento podem contribuir efetivamente para o desenvolvimento do país.
O ensaio está organizado em três partes, além desta introdução e reflexões finais. A seguir se analisa a natureza das instituições públicas de fomento, iniciando com a explicitação da posição de autores com convicções opostas com relação à sua pertinência. Depois são introduzidas evidências sobre as configurações de bancos de desenvolvimento pelo mundo afora. As duas seções seguintes são reflexivas. A primeira é baseada nas lições apreendidas e aprendidas durante meu período no BNDES. A segunda introduz alguns dos desafios que o BNDES deverá enfrentar.
Bancos de Desenvolvimento: to be or not to be? Ou... jabuticabas só no Brasil?
Por que a ação pública através de bancos de desenvolvimento? Pela existência de inúmeras falhas de mercado? Para prover empuxo à fase ascendente e mitigar desafios da fase descendente de um ciclo econômico. Para antecipar ciclos? Para enfrentar as incertezas do cálculo econômico associadas a investimentos de longo prazo (infraestrutura) e/ou de resultados incertos (inovação) e/ou de novos desafios do desenvolvimento (mudança climática)? Para desenvolver mercados (inclusive o mercado financeiro)? Para alavancar a internacionalização competitiva das empresas brasileiras? Para apoiar o desenvolvimento de terceiros países? Para apoiar políticas públicas? Todas estas são missões debatidas na literatura e encontradas em várias instituições públicas de fomento pelo mundo afora.
Embora se possa encontrar nuances entre diferentes autores, é possível estilizar a existência de duas visões contrapostas, inclusive no debate brasileiro: uma em que órgãos públicos devem ser restritos para atuar somente em situações de falhas de mercado, como defendem Sergio Lazzarini e outros no artigo “What do state-owned development banks do? Evidence from BNDES, 2002–09” de 2015; a outra, onde fontes privadas e públicas de financiamento são complementares, mas o Estado tem um papel estratégico na definição e implementação de misssões de interesse público, como argumentam Mariana Mazzucato e Caetano Penna em “Beyond market failures: the market creating and shaping roles of state investment banks” de 2016.
Para o primeiro, mercados financeiros competitivos e informados devem prevalecer e fornecer soluções ótimas para o financiamento de um sistema econômico. Taxas de juros flexíveis constituem o melhor instrumento de alocação de excessos ou insuficiências. Há ainda uma visão pró-mercado extrema que argumenta que a falta de fontes privadas de crédito financeiro se deve à repressão financeira e/ou aos impactos das condições de crédito oferecidas pelas insituições públicas de fomento. No entanto, a grande maioria dos autores desta corrente não discute heads on o outro lado da moeda: quais as razões e os determinantes de uma estrutura a termo das taxas de juros, tendenciosa à volatilidade e ao curto prazo? Na ausência de uma instituição pública, uma indústria financeira com tais características induziria o volume e a qualidade de investimentos no tempo e na medida das necessidades do país?
Aqueles que reconhecem um papel ativo para o Estado no financiamento de longo prazo consideram que as forças do mercado não podem ou não são capazes de lidar não só com falhas de mercado mas com incertezas. Qualquer decisão econômica envolve expectativas em relação ao futuro, que é cada vez mais desconhecido com o passar do tempo. Assim, o tempo e a natureza de um investimento definem a extensão da incerteza de um projeto: quando um investimento se direciona à inovação ou à algum novo desafio do desenvolvimento; quando a sua maturidade é longa; quando há turbulência no ambiente financeiro, econômico e/ou político. Se a incerteza prevalece, mesmo que recursos estejam disponíveis, as fontes de mercado podem não estar dispostas a fornecer os fundos necessário, independentemente do mecanismo de preço.
Mazzucato, ao discutir políticas de inovação e seus órgãos executores no artigo “From market fixing to market-creating: a new framework for innovation policy” de 2016, é enfática sobre as instituições orientadas por missões: “missões implicam estabelecer direções da mudança”. Para aumentar suas capacidades de prospectar e definir cursos de ação, as agências públicas devem ser instituições pró-descoberta, intensivas em aprendizado. Se são indutoras de tendências, essas agências naturalmente enfrentam o imponderável. E, ao enfrentar o imponderável elas devem estar preparadas para assumir custos e se beneficiar de recompensas de retornos positivos. Para Chang em “Understanding the relationship between institutions and economic development: some key theoretical issues” de2006, há certas funções que as instituições públicas devem assumir para promover o desenvolvimento econômico e que estas devem ter as formas adequadas para melhor servir a essas funções. O autor propõe o incentivo ao investimento como uma função crítica a ser realizada pelas instituições públicas.
Muito importante e como defendia Gerschenkon (em “Economic backwardness in historical perspective, a book of essas”), as missões de um banco de desenvolvimento estão diretamente relacionadas aos desafios que uma sociedade enfrenta em momentos específicos do tempo. Na Alemanha, no passado recente, o KfW desempenhou um papel fundamental no apoio ao desenvolvimento e uso da tecnologia verde e do setor financeiro precisamente por causa de uma combinação de seu mandato econômico geral, sua estrutura de financiamento híbrido, seu conhecimento técnico e sua participação na formulação de políticas nacionais. Na China, o Banco de Desenvolvimento da China (CDB) também apoia tecnicamente o Estado na elaboração de planos nacionais e… “desempenha papel chave no desenvolvimento do mercado financeiro e do sistema de crédito” (segundo Xu, Q. Em “CDB: Born Bankrupt, Born Shaper” de 2017).
No entanto, o debate carece de aprofundamento em duas direções: qual a real extensão e profundidade dos mercados financeiros e, qual o grau de autonomia política que uma instituição pública de fomento tem para definir suas missões.
São poucos os estudos sobre a disposição da indústria financeira privada financiar o desenvolvimento, o longo prazo, como faz Rezende em “Why does Brazil´s banking sector need public banks? What should the BNDES do?” de 2015. Quando o fazem, a maior parte trata da sua ação durante períodos de crise e as evidências são muito fortes. Como apontam Brei e Schclarek (“The Countercyclical Behavior of NationalDevelopment Banks in Latin America and the Caribbean” de 2017), na América Latina e o Caribe há “evidências robustas de que bancos nacionais de desenvolvimento e bancos comerciais públicos aumentam os empréstimos em resposta a períodos de crise em relação aos tempos normais, enquanto bancos privados nacionais e estrangeiros diminuem seus empréstimos em relação aos seus padrões normais de empréstimo”.
Sobre o poder das instituições públicas de fomento definirem missões, são poucos os estudos que ponderam que, como instituições públicas que são, os bancos de desenvolvimento seguem orientações de governos, a partir de suas prioridades políticas, validadas por meio de eleições, em regimes democráticos. Assim, por mais que bancos de desenvolvimento contribuam tecnicamente para a formulação de políticas, as suas diretrizes e prioridades são definidas no âmbito da política.
Pilares de um banco de desenvolvimento. O que importa?
Escala e escopo
Para serem relevantes, bancos de desenvolvimento devem ter escala e escopo. A operação em grandes volumes resulta na queda do custo unitário médio do produto ou serviço (financeiro). Já a economia de escopo ocorre quando a redução nesse custo médio se dá pela produção conjunta de mais de um produto ou serviço .
Luna-Martinez, J. e Vicente, C. L. (“Global survey of development banks” de 2012), Ferraz e outros (“A contribuição dos bancos de desenvolvimento para o financiamento de longo prazo” de 2013), Mazzucato e Penna (“Beyond market failures: the market creating and shaping roles of state investment banks” de 2016) e Griffith-Jones e outros (“The Future of Development Banks” de 2017) ao analisar experiências internacionais informam que prevalece a diversidade nas missões de bancos de desenvolvimento, sendo as principais:
(i) financiar novas atividades econômicas ou a expansão das capacidades existentes (fábricas, serviços públicos) e capacitações (inovação) assim como induzir a geração de externalidades (por exemplo, projetos de mitigação de mudanças climáticas);
(ii) apoiar o desenvolvimento dos mercados financeiros;
(iii) contribuir para a estabilidade sistêmica ao assumir um papel anticíclico;
(iv) apoiar o desenvolvimento de políticas públicas nacionais ou locais e planejamento de longo prazo.
A escala pode ser revelada pelo tamanho e pela importância econômica dos bancos de desenvolvimento em suas economias. Em 2013, os vinte e três membros do International Development Finance Club (IDFC) tinham uma base combinada de ativos de cerca de US$ 2,8 trilhões, segundo o International Development Financial Club. Somente na América Latina existem 79 instituições financeiras de fomento, incluindo bancos comerciais públicos com alguma missão de desenvolvimento. Estes bancos públicos têm importância considerável pois, em média, possuem 20% dos depósitos ou das carteiras de ativos e/ou patrimônio bancário da indústria financeira da região, segundo a Asociación Latinoamericana de Instituciones Financieras para el Desarrollo. O quadro abaixo traz informações mais objetivas, mostrando uma grande variedade de situações em países selcionados. A relação ativo/PIB varia de 1% e 7,1% nos casos do Canadá, México, Japão, Espanha e França e entre 13,3% até 24,3% no caso do Brasil, China, Alemanha, Coréia e Itália.
O escopo se revela pelos espaços de atuação. A maioria dos bancos não é especializada e sim diversificada em termos de instrumentos e segmentos atendidos, como mostra o quadro a seguir. O apoio à indústria, às empresas de menor porte, inovação, economia verde, internacionalização e ao mercado de capitais é uma constante entre bancos de destaque no mundo. O apoio à agricultura, infraestrutura, exportações e grandes empresas é menos constante mas isto não quer dizer que estes países não desenvolvam instrumentos de apoio a estes segmentos. A lógica desta diversificação é bem direta e não é diferente de outras instituições financeiras: distribuição de riscos e recompensas por uma gestão de portfolios: segmentos taxas baixas e prazos longos podem ser compensados por operações de menor prazo e maior custo; operações de maior risco podem ser compensadas por segmentos de retorno previsível e seguro.
Capacidade financeira
Para financiar os desafios do desenvolvimento, as instituições financeiras de fomento devem possuir e manter balanços sólidos e longos. Para consolidar balanços desta natureza, três requisitos são necessários.
Desenvolvimento, em qualquer plano, somente se logra no longo prazo. Assim, o primeiro requisito é explicitar no planejamento estratégico as prioridades de desenvolvimento definidas no âmbito político em uma perspectiva de longo prazo. Paciência e tenacidade são as atitudes corporativas para alcançá-las e, desde a perspectivas econômico-financeira, possuir ativos de longo prazo é essencial para qualquer instituição pública de fomento.
No caso brasileiro, pelo menos até o presente o BNDES possui este atributo, como revelado, indiretamente, pela participação da insituição nos mercados de crédito. Em outubro de 2017 o mercado de crédito de longo prazo no Brasil correspondia a 13,2% do PIB, divididos em 4,2% para debêntures corporativas, 4,1% para operações de crédito dos bancos comerciais com recursos do BNDES (crédito indireto) e 4,9% em operações diretas do banco. Em setembro de 2016, créditos com mais de 5 anos estavam concentrados no BNDES (50,9%), Banco do Brasil (22,3%) e Caixa (12,7%). Os restantes 14,1% estavam distribuidos entre os 4 principais bancos privados do país.
O segundo requisito é ter um balanço sólido que lhe permita assumir riscos sem que isto afete sua base de capital. Como mostra o quadro a seguir, bancos de desenvolvimento selecionados apresentam ativos, taxas de retorno e níveis de inadimplência bastante razoáveis. Desde uma perspectiva de risco, os bancos de desenvolvimento também estão atentos. Em uma região como América Latina, que, para os críticos de bancos de desenvolvimento, já foi considerada como inapta para este tipo de instituição, a situação atual é de tranquilidade, talvez mesmo até excessiva: em 2016, a Corporación Financeira de Desarrollo do Peru apresentou uma taxa de capital regulatório de 28,8%; o Banco Nacional de Comércio Exterior do México, 18,5%, a Nacional Financiera, também do México, 13,3%, o Banco de Comercio Exterior da Colômbia, 16,8% e o Banco de Inversión y Comércio Exterior da Argentina, 33,7%. Estes resultados não diferem daqueles alcançados pelos bancos comerciais brasileiros.
O terceiro requisito é captar recursos que lhes permita financiar os desafios do desenvolvimento a taxas e prazos adequados. A fim de cumprir suas missões, estas instituições contam com o apoio explícito de seus Estados nacionais por meio de uma combinação de diferentes instrumentos. O próximo quadro informa o escopo de instrumentos utilizados por bancos de desenvolvimento de 12 países, a maioria deles podendo ser considerada como países desenvolvidos: pagamentos de dividendos, recolhimento de impostos, garantia soberana para empréstimos e acesso a recursos parafiscais.
Todos os bancos arrolados utilizam combinações de instrumentos de apoio, com a exceção do BNDES que utiliza somente o acesso a recursos parafiscais. A garantia soberana é o instrumento mais frequente (10 bancos em 12), seguido de não pagamento de impostos e acesso a recursos parafiscais (7 bancos em 12). O acesso a recursos parafiscais se dá de forma diferenciada, desde o acesso a fundos especiais, como o caso do FAT no Brasil ou pelo financiamento do Banco Central, no caso do CDB chinês. Através de um instrumento denominado Pledged Supplementary Lending, o Banco Central da China injetou, até o final de 2016, algo em torno a US$ 150 bilhões, principalmente no CDB, a taxas inferiores à média das taxas dos titulos corporativos AAA e à taxa básica de juros de longo prazo. Segundo Xu (2017), o objetivo é não só prover fundos para investimentos em infraestruturas como também usar a taxa destes empréstimos como guia para a taxa de juros de longo prazo do país.
Apenas três dos bancos não pagam dividendos aos seus controladores: KfW (Alemanha), Vneskonombank (Russia) e Nafin (México). O KfW alemão é o banco que combina o maior número de instrumentos de apoio: não paga dividendos, não recolhe impostos, têm garantia soberana automática e acesso a recursos parafiscais. Com este tipo de apoio o KfW, em 2015, tinha ativos totais no valor de € 503 bilhões e desembolsou € 79 bilhões, dos quais € 50 bilhões no país: € 20 bilhões para PME, € 16 bilhões para habitação, € 7,7 bilhões para educação, desenvolvimento social e infraestrutura. No âmbito externo foram € 28 bilhões para negócios internacionais, a maioria (€ 20 bilhões) para promoção de exportações alemãs.
O FAT, no Brasil, é uma fonte de quase capital, portanto, adequada para um banco de desenvolvimento. De forma próxima, os empréstimos do Tesouro foram concedidos com prazos acima de quarenta anos. Portanto, também adequados. Porém, por razões de natureza fiscal, não associadas à natureza dos compromissos firmados - financiar o longo prazo -, o BNDES, seguindo orientações de governo, deve pré-pagar ao Tesouro, até o final de 2018, mais da metade (R$ 330 bilhões) dos empréstimos concedidos. Esta reviravolta de orientações de governo, em menos de dez anos, se contrapõe com a perenidade de orientações e, principalmente, dos instrumentos utilizados por instituições públicas de fomento em outros países.
Autonomia técnica e interação com a sociedade
Qualquer instituição pública de fomento deve estar alinhada com as políticas públicas, cultivar parcerias com o setor financeiro, negociar constantemente com os beneficiários de financiamentos e interagir com os segmentos da sociedade impactados pelo seu fomento.
É pouco provável que uma instituição pública de fomento, pela importância estratégica que ocupa entre as instituições de um Estado, seja capaz de prevalecer, impor e implementar prioridades que julgue relevante, à revelia dos poderes políticos constituidos. Causa surpresa, portanto, a assertividade de analistas e comentaristas quanto à autonomia política do BNDES, quanto à sua capacidade de definir e implementar prioridades, sem a devida consideração sobre os espaços institucionais que a agência ocupa.
Qualquer política pública, para ser eficaz, exige agências executoras eficazes o que somente é logrado quando estas possuem autonomia técnica: capacidades internas para discernir, fomentar, implementar e monitorar projetos coerentes com as diretrizes de política. Mesmo assim esta agência sempre conviverá com a tensão entre assumir riscos – maiores ou menores dependendo da natureza dos desafios de desenvolvimento e suas missões – e preservar sua base de capital, justamente para ser capaz de atuar com paciência, no longo prazo. O caso do banco alemão KfW é ilustrativo: embora o KfW possa ser uma instituição de propriedade do governo, ele possui autonomia operacional que lhe é provida legalmente.
A autonomia técnica se revela em processos de decisão impessoais e coletivos; em um processo de aprovação de projetos que atravessa distintas câmaras coletivas de decisão quanto à pertinência técnica de um projeto ao mesmo tempo em que se preserva a avaliação independente de risco de crédito, com capacidade de deferimento ou indeferimento normativamente regulada. Ao mesmo tempo é necessário cultivar a excelência desta capacidade técnica: seleção de funcionários por concursos competitivos, aprendizado contínuo e, principalmente, o investimento em melhorar as práticas de avaliação e monitoramento das atividades de fomento. Somente desta forma uma instituição de fomento será capaz de mitigar as incertezas associadas ao fomento dos desafios do desenvolvimento.
A interação com a sociedade tem importância central para uma instituição pública de fomento. Uma das principais justificativas à própria existência destas instituições está relacionada aos riscos de sua captura por grupos de interesse com poder suficiente para pautar prioridades e lograr benefícios. Por outro lado muitos analistas apontam que a única resposta aos riscos de captura é o isolamento destas agências do público – a figura da torre de marfim é sempre evocada. Porém, este não é um tema para ser tratado de forma tão simplista. Diferenças de interesse são a norma permanente no relacionamento entre qualquer instituição pública e diferentes grupos sociais. As tensões relacionais não podem ser descartadas ou ignoradas, mas aceitas e tratadas, tendo o bem público como a principal referência para a agência de fomento. Ações de uma instituição pública sem consulta é uma ação antidemocrática. E a crença que os agentes econômicos não fazem lobby por seus interesses é, no mínimo, muito ingênua. A representação de interesses em associações setoriais é legítima; o conflito de interesses é a norma.
É neste âmbito onde o viver e conviver com o contraditório se revela. Não somente uma instituição pública de fomento deve permanentemente negociar com os beneficiários dos financiamentos, mas também interagir com os grupos sociais impactados pelas ações de fomento.
Como mitigar capturas? Como mitigar externalidades negativas e alavancar aquela positivas? Através da explicitação do papel desempenhado por cada ator em um determinado projeto. E, a partir daí negociar, negociar, negociar e negociar ... Afinal de contas, arbitrar interesses, tendo o bem público como referência é o "karma" dos praticantes de políticas públicas.
Planejamento de longo prazo
O longo prazo é a referência temporal para um banco de desenvolvimento. Operar neste horizonte demanda planejamento para igual período. O futuro é imprevisível e justamente por isto é necessário desenvolver uma atitude de mirar o longo prazo, de se preparar para os riscos do imponderável.
O professor Fábio Erber, também funcionário do BNDES era um excelente frasista. Uma de suas máximas mais primorosas: não se faz política sem teoria. Qualquer política, pública ou privada, deve estar ancorada em conceitos substantivos e forte quadro analítico para permitir a identificação e a concatenação entre desafios e oportunidades e capacidades internas e para direcionar ações, mobilizando os recursos necessários, em um horizonte de tempo determinando.
Qualquer ação pública – e também privada – demanda um quadro de referência organizado. Técnicas de cenários e de posicionamento estratégico podem e devem ser utilizadas pois estas constituem a base de um processo de planejamento de longo prazo. Este deve ser organizado a partir de dois tipos de nortes: o norte político, o das diretrizes políticas, das missões e o norte da substância, da transformação destas diretrizes em prioridades corporativas e metas e, a partir destas, a organização e alocação de capacitações econômico-financeiras e operacionais. Porém, nunca se deve esquecer que um plano sem orçamento é um plano de papel e nada mais.
Como o futuro é imponderável, um processo de planejamento deve evoluir das “melhores práticas” para os “bons processos”. A concepção e a implementação de ações devem ser consideradas como processos de aprendizagem, orientadas por metas quantitativas e qualitativas e resultados mensuráveis, sempre tendo como requisito uma compreensão adequada da temporalidade destas ações: das decisões quanto ao financiamento, ao logro de aumento de capacidades e capacitações até a observância e mensuração de impactos, sempre considerando as dimensões contraditórias destes impactos.
BNDES relevante
Tamanho: uma referência histórica
O país atravessa momentos difíceis que podem ser retratados pela profunda queda da relação investimento sobre o produto que, em 2017, ficou em torno a 15%, 5 pontos percentuais abaixo do nível de 2013. Apesar das mudanças de ênfase, ao longo de sua história a missão do BNDES é apoiar o investimento. Na média, entre 1952 e 2017, este apoio foi de 1,45% do PIB (Barboza e outros em “A atuação histórica do BNDES: o que os dados têm a nos dizer?” de 2018). Supondo um PIB de aproximadamente US$ 2 trilhões, isto significaria, atualmente, um desembolso da ordem de US$ 30 bilhões ano. Um valor semelhante pode também ser obtido considerando-se a participação média do BNDES como fonte de financiamento do investimento, entre 2005 e 2017, segundo dados da CEMEC. Os desembolsos correntes do BNDES estão por baixo deste montante e, caso a taxa de investimento cresça, nos próximos 3 anos para uma posição intermediária, por exemplo, 18% do PIB, mesmo que outras fontes de financiamento compareçam com presteza e força, será necessária uma participação mais ativa do BNDES, para além da posição tímida atual.
Os desafios dos consensos
A presença do fomento do BNDES tem muito a ver com os vetores do crescimento do investimento do país. Curiosamente, há um interessante consenso, entre formuladores de política (de ontem e de hoje) e analistas (de visões pró-falhas de mercado e pró-intervenção orientada por missões): as prioridades do BNDES deveriam ser infraestrutura, empresas de menor porte, inovação e meio-ambiente. Sem entrar no mérito que a maior proporção do investimento é, de fato, investimento em expansão de capacidade de empresas de maior porte e que estas podem ter dificuldades de acessar mercados pelo seu tamanho diminuto (em moeda nacional) ou de alto risco (em outra moeda), vale a pena explorar a natureza destes denominadores comuns desde a perspectiva de sua realização efetiva pelo BNDES.
Investimentos em infraestrutura, empresas de menor porte, inovação e meio-ambiente são intensivas em externalidades, de alto retorno social, indutoras de transformação estrutural, entre outras razões. Mas também são os investimentos com maior incerteza. Relativamente a investimentos fixos em atividades industriais, por exemplo, estes envolvem longos períodos de maturação, risco de crédito ou possibilidade de não retorno.
Caso infraestrutura, empresas de menor porte, inovação e meio-ambiente realmente sejam as diretrizes políticas e as missões e prioridades do BNDES, a instituição deve contar com os seguintes recursos:
- Estrutura de capital sólida e balanço longo capaz de suportar incertezas e riscos.
Disposição aos riscos de desenvolvimento e não somente “apetite a risco” uma expressão que tem por detrás uma atitude relativamente conservadora. A instituição deve estar disposta a incorrer nos riscos (protegendo-se) e recompensas (lucrando e financiando a expansão de seu capital) associadas a estes objetivos;
- Acesso a recursos financeiros que lhe permita atrair investidores (taxa, prazo, nível de cobertura).
Isto significa não somente a avaliação, por parte das autoridades, se a natureza e extensão dos benefícios concedidos são adequados, mas também se o escopo de atuação da instituição deve se concentrar somente nestas missões. Afinal de contas, o financiamento interno pode parcialmente compensar os limitados benefícios concedidos no Brasil à sua principal agência de fomento, ao contrário de outros países. Para cumprir as missões consenso é essencial manter o atual escopo diversificado de instrumentos e operações do BNDES de modo a realizar operações seguras, de baixo risco e operações lucrativas, inclusive para grandes empresas em empréstimos com a devida estrutura a termo da taxa de juros ou de mercado de capitais, com as devidas condicionalidades de governança, sustentabilidade, etc.
Agir pro, contra e ex-ante ao ciclo,
Como o investimento é pró-cíclico e o BNDES é agente relevante de seu financiamento, agir pró-ciclicamente é de sua competência. Porém, na fase de ascensão do ciclo, a instituição deve estar atenta para abrir espaços para a indústria financeira; afinal de contas, o desenvolvimento desta indústria também deve ser de seu interesse.
Quando as taxas de crescimento arrefecem e a indústria financeira age para proteger seus balanços, quando os mercados reduzem ou param de fornecer financiamento ao sistema econômico, cresce a importância das instituições públicas. Mas, para ser eficaz, o papel anticíclico de um banco de desenvolvimento deve ser adequado e específico ao momento e às necessidades dos agentes econômicos. Se há demanda reprimida por investimento associada a restrições de crédito, então, a solução é irrigar o sistema. Se são altos os níveis de alavancagem, a ação contracíclica deve ser fornecer capital de giro e renegociar termos de crédito, para manter os negócios à tona. Em suma, é importante reconhecer os diferentes tipos de “papel anticíclico” que um banco de desenvolvimento pode desempenhar.
Finalmente, um banco de desenvolvimento deve desempenhar um papel pré-ciclo, apoiando investimentos de muito longo prazo, promovendo a preparação de projetos ou enfrentando desafios de desenvolvimento que podem dar frutos em um futuro próximo. ciclo.
“Parceirar”
É crescente a convicção na sociedade brasileira que a indústria financeira - bancos comerciais, mercado de capitais de renda fixa ou variável - deve evoluir na direção do financiamento de longo prazo. Bancos de desenvolvimento são condição necessária – mas não suficiente - para o desenvolvimento de um país. As evidências de países desenvolvidos assim o indicam. Na grande maioria dos países os bancos de desenvolvimento não operam em oposição, mas em parceria a uma indústria financeira local. Potencialmente e nos próximos anos, essa complementaridade pode se tornar ainda mais importante pois a regulamentação bancária internacional e as nacionais estão evoluindo para serem mais rigorosas, exigindo que os bancos fortaleçam sua base de capital. A experiência do BNDES em “parceirar” com bancos comerciais e com o mercado de capitais, através de fundos ou não, e induzir mercados secundários devem ser aprofundadas.
Go digital
A digitalização é um processo sistêmico, penetrante (pervasive) em todas as esferas econômicas. A indústria financeira, em particular é uma das atividades econômicas onde a digitalização se faz mais presente e aguda, em processos, nos seus clientes e em novos entrantes (fintechs). A trajetória é percebível: custos decrescentes e oferta crescente de soluções digitais e, principalmente, desintermediação. A digitalização aumenta eficiência e precisão e permite o desenvolvimento de soluções personalizadas. As instituições financeiras têm a capacidade potencial de oferecerem soluções diretamente para seus clientes. Isto demanda investimentos intensivos em tecnologias digitais, associações com empresas ágeis e flexíveis de soluções, especialmente as fintechs, forte capacidade de avaliação em massa de credito (credit score), através de big data e inteligência artificial e, principalmente, investimentos em cíber segurança.
Ferramentas de avaliação
Bancos de desenvolvimento lidam inerentemente com contradições: qualquer projeto tem impactos de várias dimensões. Uma atitude explícita para reconhecer a natureza contraditória de sua missão é essencial.
As experiências passadas do BNDES sugerem que identificar as “racionalidades ocultas” de Hirshman é de fato um desafio. Mas há outro e ainda maior desafio. Quando iniciar, quando encerrar uma intervenção de política? Ou, como circunscrever uma iniciativa política aos limites de sua eficácia? A esse respeito, as ferramentas disponíveis para os economistas são muito imperfeitas: os chamados métodos tecnicamente sólidos geralmente exigem evidências que simplesmente não estão disponíveis ao tempo das intervenções. Estimar custos e benefícios ex ante pode não ser trivial quando os parâmetros de cálculo como mudança estrutural, inovação, meio-ambiente, investimentos de longo prazo, duração de ciclos econômicos sejam de difícil estimativa. Simplesmente, a evidência necessária e suficiente é sempre tardia.
Para tanto, é necessário institucionalizar processos de busca sistemáticos e permanentes, experimentar e implementar soluções inovadoras relacionadas a: (i) metodologias de identificação de ativos tangíveis e intangíveis de projetos e beneficiários; (ii) garantias e instrumentos financeiros, especialmente aqueles relacionados a capital de risco e compartilhamento de riscos; iii) métodos de impacto ex ante, associados a processos de acompanhamento e avaliação ex post. Estes são ingredientes essenciais para um constante processo interno de aprendizagem e para prestar contas às suas sociedades. As iniciativas do BNDES nesta direção, através da ferramenta “Tese de Impacto de Investimento em Projetos” devem ser valorizadas.
Reflexões finais
O país atravessa um momento de retração dos investimentos ao mesmo tempo em que estão em curso transformações nos padrões de produção, concorrência, modelos de negócio, consumo e estilos de vida. É justamente na incerteza o momento quando se deve discutir como preparar um BNDES relevante para o futuro do país. O BNDES tem a forma e a função de uma instituição voltada para missões pró-desenvolvimento. Sem perder o seu DNA de efetivo contribuinte para o Brasil, o BNDES deve evoluir com a sociedade na gestação de uma nova agenda de desenvolvimento. Porém, devemos estar sempre atentos aos ensinamentos de Harvey Leibenstein: sempre haverá espaço para o BNDES ser mais eficaz, eficiente e efetivo.
Espero que este artigo possa contribuir para o debate sobre se e como as instituições do Estado podem, de forma inovadora, contribuir para um desenvolvimento econômico sustentável do Brasil.