Carta IEDI
Sistema Brasileiro de Inovação: Proposta de Política Orientada à Missão
Em um momento de crise e de corte de incentivos, como este em que nos encontramos, não se pode perder de vista o tema da inovação no país. É com isso em mente que a Carta IEDI de hoje faz uma síntese do estudo Brazilian Innovation System: A Mission-Oriented Policy Proposal, recém-publicado pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE).
Elaborado pelos professores Mariana Mazzucato, da Universidade de Sussex, e Caetano Pena, da UFRJ, o estudo propõe a transformação do Sistema Brasileiro de Inovação em um sistema orientado à missão. Para tanto, defendem a adoção de uma agenda de políticas sistêmicas que estimulem os distintos atores públicos e privados a atuar em parceria para alcançar metas específicas de um programa estratégico explícito de inovação.
A política de inovação não se resume a estimular tecnologias e setores individuais, mas significa principalmente, na avaliação dos autores, identificar e articular missões que galvanizem padrões de produção, distribuição e consumo entre os setores.
Nessa abordagem, o governo desempenha um papel fundamental de desbravar novas áreas capital-intensivas e de alto risco das quais o setor privado se mantém, inicialmente, distante. Mediante parcerias dinâmicas entre estado, academia e o setor empresarial, novos mercados são criados e formatados, possibilitando aumento de produtividade, criação de empregos de melhor qualidade e elevação da arrecadação.
O estudo defende que o campo do jogo seja “inclinado” na direção da missão perseguida. Ou seja, iniciativas de políticas orientadas à missão devem incluir explícita direção tecnológica e setorial.
No Brasil há exemplos positivos de iniciativas de política públicas orientadas à missão, com foco explícito ou implícito em inovação, nos quais ocorreram interações virtuosas entre o estado, a academia e o setor empresarial. Seriam os casos das políticas públicas na área de saúde e do programa Inova, e em menor medida, iniciativas lideradas pela Petrobrás e pela Embrapa. Porém, falta ao país uma agenda estratégica consistente de longo prazo que oriente a pesquisa científica e os agentes privados em seus esforços de inovação.
Nas políticas orientadas à missão na área de saúde adotadas entre 2008 e 2014, os autores identificam a presença de seis características favoráveis ao sucesso das iniciativas: i) capacidade científico-tecnológica; ii) capacidade de demanda; iii) capacidade produtiva, com empresários dispostos a assumir o risco da inovação; iv) capacidade das organizações governamentais; v) capacidade de políticas; vi) capacidade de previsão.
O trabalho argumenta que para um país como o Brasil, que conta com elevada dotação de recursos naturais estratégicos e já possui um sistema nacional de inovação bem desenvolvido e variados instrumentos de política, a adoção de um programa estratégico de inovação orientado à missão em áreas como segurança nacional, energia e meio ambiente, infraestrutura urbana, infraestrutura pública, agronegócio e agricultura familiar permitiria superar as debilidades do atual sistema de inovação e ajudaria a gerar crescimento inclusivo e sustentado.
Contudo, tal transformação exigiria enfrentar um desafio considerável: assegurar uma clara articulação e coordenação entre a política de inovação e as demais políticas públicas, em especial com a política econômica.
Segundo o estudo, estreita coordenação das políticas públicas poderia evitar que esforços de política industrial e política de inovação explícita sejam minados por políticas macroeconômicas restritivas como aconteceu no período recente com iniciativas relativamente bem-sucedidas, como a Embrapii, o fundo de capital semente CRIATEC e o PAISS.
Os autores reconhecem que a atual situação política e econômica no Brasil impõe sérios obstáculos à adoção de uma agenda positiva para o desenvolvimento de longo prazo e ao lançamento das bases para a transformação do sistema nacional de inovação em um sistema orientado à missão. Todavia, consideram que as linhas de ações propostas permitiriam ao Brasil, não somente, resolver problemas persistentes, como também tornar-se líder em novos campos tecnológicos. Nesse sentido, apresentam oito recomendações:
1ª) As políticas macroeconômicas e complementares devem ser mais favoráveis aos programas de inovação.
2ª) Ineficiências das políticas e da regulação devem ser solucionadas mediante ação legislativa (reforma tributária e adoção de compras governamentais para inovação).
3ª) Mecanismos de concorrência, cooperação e prestação de conta devem ser estabelecidos e reforçados em programas orientados à missão.
4ª) Detalhada reavaliação dos experimentos brasileiros de políticas orientadas à missão.
5ª) Experiências bem-sucedidas deveriam ser emuladas por outras agências públicas para criar redes/parcerias orientadas à missão.
6ª) As missões escolhidas devem refletir as melhores práticas.
7ª) Aperfeiçoar e expandir bem-sucedidas iniciativas orientadas à missão já adotadas e realizar detalhado diagnóstico e prognóstico para outras missões potenciais.
8ª) As missões deveriam, sempre que possível, contribuir para o combate à desigualdade. Algumas missões farão isso diretamente, outras indiretamente.
Princípios-chave para um Sistema de Inovação Orientado à Missão. O referencial teórico adotado pelos professores Mazzucato e Pena para análise do sistema de inovação brasileiro é a teoria econômica evolucionária, que identifica três importantes características no processo de inovação realizado pelas empresas em suas estratégias de obtenção de vantagens concorrenciais. De acordo com essa abordagem, o processo de inovação é: 1) altamente incerto, ou seja, não há nenhuma garantia prévia de sucesso; 2) cumulativo, significando que o aprendido e produzido no passado contribui para o que é realizado no presente e no futuro; 3) empreendimento coletivo, no qual diversos atores participam e compartilham riscos. A partir dessas características, os autores estabelecem o primeiro dos sete princípios-chave que irão conformar a proposta de agenda de políticas de inovação orientada à missão.
Esse primeiro princípio refere-se à política de inovação em si mesma e estabelece que a política de inovação deva ser construída a partir das três características-chave do processo de inovação. Como o processo é incerto, os seus resultados são desconhecidos previamente e, portanto, é preciso admitir fracassos e mudanças de rota. Como o processo é cumulativo, os agentes envolvidos devem ser pacientes e agir com visão de longo prazo na obtenção de competências e capacidades. No processo coletivo, os agentes precisam trabalhar em conjunto, compartilhando riscos e também recompensas.
O segundo princípio estabelece que as políticas em uma perspectiva orientada à missão devem ser sistêmicas, utilizando, mas indo além, de instrumentos horizontais e dos instrumentos impulsionados pela ciência. As políticas orientadas à missão utilizam um amplo leque de instrumentos financeiros e não financeiros para realização da missão em diferentes setores, estabelecendo uma direção concreta para a economia, e mobilizando a rede necessária de agentes relevantes, públicos e privados.
O terceiro princípio estabelece um sistema nacional de inovação caracterizado em perspectiva ampla, no qual são identificados quatro subsistemas, que interagem mutualmente: i) politicas públicas, regulação e funding público; ii) pesquisa e educação; iii) produção e inovação; iv) financiamento privado e funding privado. Segundo os autores, embora não haja uma hierarquia entre os subsistemas e que todos os quatro possuam, teoricamente, importância estratégica, o subsistema de politicas públicas, regulação e funding público é o que tradicionalmente tem conduzido o processo de desenvolvimento sócio econômico e de mudança tecnológica.
O quarto princípio refere-se à necessidade de desenvolver novas relações e criar mais confiança para estimular o processo de inovação pela modelagem e criação de tecnologias, setores e mercados. De acordo com os autores, o estado precisa galvanizar os interesses dos atores relevantes e organizar a si próprio de modo a pensar grande e formular políticas ousadas, que criem também o senso de propriedade entre os distintos participantes do setor público, do setor privado e da academia. Igualmente, é crucial ser capaz de executar as políticas por meio da coordenação dos esforços da rede de participantes, empregando o poder de convocação do governo, intermediando relação de confiança e fazendo uso de instrumentos de política orientados.
O quinto princípio estabelece que políticas sistêmicas orientadas à missão devam se basear em diagnósticos e prognósticos sólidos e claros. Isso requer a identificação não somente dos elos inexistentes, das falhas e gargalos, ou seja, as debilidades do sistema nacional de inovação, como também dos pontos fortes desse sistema. Previsões são necessárias tanto para identificar oportunidades futuras como para enfrentar as debilidades. Os autores argumentam que o diagnóstico também pode ser utilizado para conceber estratégias concretas, novas instituições e novos elos no sistema de inovação.
Diferentemente da visão convencional, que preconiza o uso de políticas horizontais tecnologicamente neutras, o estudo defende que o campo do jogo seja “inclinado” na direção da missão perseguida. Ou seja, iniciativas de políticas orientadas à missão devem incluir explícita direção tecnológica e setorial.
O sexto princípio preconiza que, para ser bem sucedido na missão, um país necessita de estado empreendedor. Esse conceito refere-se ao papel do Estado em assumir riscos no processo de investimento, descoberta e experimentação, verificado naqueles poucos países que alcançaram crescimento liderado por inovação (mais a respeito, ver Carta IEDI nº 605). Nessa abordagem, o governo desempenha o papel fundamental de desbravar novas áreas de capital intensivo e de alto risco das quais o setor privado se mantém, inicialmente, distante. É por meio de iniciativas de políticas orientadas à missão e de investimentos ao longo de todo o processo de inovação (desde a pesquisa básica até o financiamento do capital-semente de empresas inovadoras em estágio inicial), que o Estado é capaz de ter um maior impacto no desenvolvimento econômico.
De acordo com o sétimo princípio, o Estado precisa ser capaz de extrair lições da experiência com política de inovação orientada à missão. O arcabouço de política orientada à missão requer monitoramento contínuo e dinâmico e avaliações ao longo de todo processo de política de inovação. As agências governamentais aprendem no processo de investimento, descoberta e experimentação que integram as iniciativas orientadas à missão.
Segundo o estudo, as iniciativas de sucesso de políticas orientadas à missão reúnem as seguintes características favoráveis: i) capacidade científico-tecnológica: base apropriada de conhecimento científico e tecnológico; ii) capacidade de demanda: demanda potencial ou efetiva, pública e/ou privada, tanto em termos de poder de compra como de necessidade; iii) capacidade produtiva: base apropriada de empresas já existentes ou de empresários dispostos a assumir o risco de criar empresas inovadoras; iv) capacidade das organizações governamentais: base apropriada de conhecimento no interior das organizações públicas para a formulação e execução de políticas para solucionar os problemas-alvo; v) capacidade de políticas: uso estratégico de instrumentos apropriados de políticas de demanda e de oferta, apoiados por políticas complementares; vi) capacidade de previsão: diagnóstico preciso dos problemas e soluções, incluindo análise da situação corrente e perspectivas para as tecnologias e setores-alvo.
De acordo com os autores, o arcabouço de políticas orientadas à missão se adequa tanto a missões orientadas à segurança, impulsionando tecnologias nos setores de defesa e energia, como a missões nas áreas de saúde e agricultura. Porém, se no passado as iniciativas orientadas à missão priorizavam os setores de defesa e energia, atualmente novos desafios entraram na agenda das políticas de inovação como justificativas-chave para ação do governo, fornecendo direção estratégica para as políticas de funding e para os esforços de inovação. Essas novas missões incluem o enfrentamento dos desafios ambientais, relacionados à economia verde, e dos grandes desafios sociais associados à mudança demográfica, à desigualdade e ao desemprego dos jovens.
Diferentemente das missões do passado que frequentemente estavam relacionadas a uma meta e resultado bem definidos e desafios tecnológicas pré-identificados, as missões contemporâneas são bem mais complexas. Como visam responder a desafios bem mais amplos, essas novas missões requerem compromissos de longo prazo dos agentes do setor público e do setor privado para o desenvolvimento de inúmeras soluções tecnológicas, que irão substituir tecnologias incumbentes, e para a realização de mudanças institucionais. O quadro abaixo resume as principais diferenças entre as missões do passado e as missões contemporâneas em termos da difusão de tecnologia, direção, controle, tipo de inovação e políticas complementares.
Pontos Fortes e Debilidades do Sistema Brasileiro de Inovação. Na avaliação dos autores, o Brasil possui um sistema nacional de inovação bem desenvolvido, com presença de instituições-chave em todos seus quatro principais subsistemas: subsistema de produção e inovação, subsistema de políticas e regulação; subsistema financiamento e funding, subsistema de educação e pesquisa (figura abaixo).
O subsistema de produção e inovação, cuja institucionalização foi impulsionada pela estratégia de substituição de importação adotada pelo governo brasileiro até a década de 1980, se caracteriza pela baixa propensão a inovar. Tomadas em seu conjunto, as empresas brasileiras investem pouco em P&D (apenas 0,5% do PIB em 2013), gastam pouco com treinamento e qualificação educacional (menos de 0,1% da receita líquida), não cooperam de forma sistemática com outras empresas e com instituições de pesquisa. Porém, esse panorama encobre a realidade em setores altamente dinâmicos, tais como: o setor de agronegócio, no qual prevalece uma grande integração sistêmica entre os produtores de máquinas e equipamentos e insumos, os institutos de pesquisa (com destaque para a Embrapa) e as unidades produtivas agrícolas; o setor de software, no qual as empresas pequenas e médias registram elevada propensão a inovar e maior cooperação com as universidades e institutos de pesquisa; e o setor de energia, cujo dinamismo e inovação estão ancorados nas atividades da Petrobrás, cujo centro de P&D especializado tem desenvolvido soluções técnicas de ponta para explorar petróleo e gás em reservas marítimas ultraprofundas.
No que se refere ao subsistema financiamento e funding público e privado, não obstante a expansão nas recentes décadas dos mercados de crédito e de capital no Brasil, o setor financeiro privado continua concentrado no financiamento ao consumo das famílias e na oferta de crédito de curto prazo para o setor produtivo, enquanto o mercado de capitais só é amigável para abertura de capitais de empresas com modelos de negócio comprovado. O país ainda não dispõe de um mercado profundo de private equity e de capital de risco, o que dificulta o financiamento de alto risco de start up inovadoras. Nesse quadro, as iniciativas das instituições públicas de funding, BNDES e Finep, são fundamentais para o financiamento de projetos de P&D e inovação. Dentre essas, o estudo destaca o lançamento em 2007 do fundo de capital semente, CRIATEC, que conta com 80% dos recursos provenientes do BNDES, cujos alvos são start up dos setores de biotecnologia e tecnologia de comunicação e informação. O BNDES também realiza, por meio da sua subsidiária BNDESPar, investimentos em pequenas e médias empresas inovadoras.
Responsável pela construção de capacidade em ciência, tecnologia, educação e pesquisa, o subsistema de educação e pesquisa compreende vários elementos: instrução primária e secundária, ensino de graduação, ensino de pós-graduação, institutos de pesquisa e educação vocacional (institutos tecnológicos, escolas técnicas e de treinamento). Se de um lado, o Brasil registou, na última década, notável avanço no sistema de educação superior, expresso na ampliação dos programas de mestrado e doutorado, no crescimento do número de estudantes por meio das bolsas do Prouni e no aumento da atividade de disseminação da produção acadêmica e cientifica; de outro lado, os sistemas de educação básica e de educação vocacional continuam deficientes. Na educação básica, ampliou-se o acesso, mas a qualidade é bastante limitada, enquanto o sistema de educação vocacional é insuficiente para atender as demandas do setor produtivo.
O subsistema de políticas e regulações inclui não somente as políticas de ciências, tecnologia e inovação (C,T&I) e políticas industriais específicas, denominadas políticas explícitas, mas também as políticas macroeconômicas, denominadas implícitas, que afetam os investimentos produtivos, e em particular, os investimentos em inovação e em mudança tecnológica. O estudo ressalta que em países em desenvolvimento, como o Brasil, em razão dos impactos das variáveis macroeconômicas, inflação, câmbio, juros e déficit público nas decisões de investimento, as políticas implícitas afetam o desenvolvimento do sistema nacional de inovação de modo muito mais significativo do que as políticas explícitas.
Em relação às políticas explícitas de CT&I, os autores destacam que somente a partir do governo Lula, essas políticas tornaram-se realmente prioritárias. Até então, as ações eram majoritariamente horizontais e visavam corrigir falhas de mercado, tais como: ausência de cooperação entre as instituições científicas e tecnológicas e as empresas, e problemas de aversão a risco e imperfeições do mercado financeiro.
No primeiro governo Lula, além do lançamento da Política de Industrial, Tecnologia e Comércio Exterior (PITCE) e do Plano Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (PNCTI), foram promulgadas duas importantes leis para provisão de incentivos fiscais e subsídios para P&D e inovação: a Lei da Inovação (2004) e a Lei do Bem (2005). Em 2008, no início do segundo governo Lula, houve o lançamento do Plano de Ação para Ciência, Tecnologia e Inovação (PACTI).
No período, 2011-2014, o governo Dilma deu continuidade à formulação de políticas explicitas de CT&I, a partir do Plano Brasil Maior (PMB) e da Estratégia Nacional de CT& (ENCTI), que definiu nove setores estratégicos para C,T&I: tecnologia de informação e comunicação, complexo industrial de saúde e farmacêutica, petróleo e gás, complexo industrial de defesa, aeroespacial, economia verde (fontes de energia renováveis, mudança climática, biodiversidade, oceano e zonas costeiras), desenvolvimento social, tecnologia nuclear, biotecnologias e nanotecnologias. Também em 2011, foi lançado o Plano Conjunto BNDES-Finep de Apoio à Inovação Tecnológica Industrial dos Setores Sucroenergético e Sucroquímico (PAISS) para a promoção de desenvolvimento tecnológico e produção e comercialização de novas tecnologias industriais de processamento de biomassa oriunda da cana de açúcar (bioetanol de segunda geração).
Outra iniciativa importante foi a criação, em 2013, da Empresa Brasileira de Pesquisa Industrial e Inovação (Embrapii), organização social, patrocinada pelo Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e pelo Ministério de Educação (ME), que tem como missão unir universidades e institutos de pesquisa com o setor industrial em projetos de cooperação para inovação. Em 2014, o governo Dilma lançou outro programa de política explícita, o Programa Nacional de Plataformas de Conhecimento, cujo arranjo institucional conecta pesquisadores-líderes nas áreas de energia, agricultura e saúde com instituição gestoras e empresas industriais.
No que se refere às políticas implícitas, no Brasil, vigora desde 1999, o denominado tripé macroeconômico: metas de inflação, superávit primário e taxa de juros flutuantes, cujo objetivo primordial é assegurar a estabilidade dos preços e, assim, manter um ambiente atrativo para os investimentos produtivos. O estudo sublinha que o regime macroeconômico brasileiro tem sido incapaz de promover a estabilidade de preços e menos ainda o crescimento econômico, que se tornou bastante volátil. De um lado, as altas taxas de juros e o câmbio sobrevalorizado prejudicam as empresas domésticas e a indústria. De outro lado, a busca de superávits primários pelo governo central restringe a capacidade de investimento do setor público, com efeito adverso sobre o investimento doméstico. A adoção de uma política de austeridade em 2015, que acarretou corte de gasto e de investimento público em todas as áreas do governo federal, só agravou os efeitos deletérios da política macroeconômica para a efetividade das políticas explícitas industriais e de inovação.
Os autores analisaram igualmente políticas complementares que podem atuar como estímulo às iniciativas de política explícita de C,T&I. As políticas complementares e/ou facilitadoras identificadas no caso do Brasil são as políticas de saúde, defesa, inclusão socioeconômica, educação, clima, meio ambiente e energia.
O setor de saúde merece especial destaque, dado que novas oportunidades de C,T&I foram criadas pelas políticas industriais adotadas nos últimos quinze anos com vistas ao fortalecimento das empresas farmacêuticas domésticas, à garantia de acesso universal a medicamentos e cuidados médicos e ao estímulo a produção de drogas biológicas e criação da indústria de biotecnologia. Os autores ressaltam que, diferentemente do que se observa em outros setores, a estratégia brasileira de saúde é uma política bem desenvolvida e que tem sido capaz de promover parcerias entre governo, academia e empresas e de mobilizar uma variedade de atores públicos e privados para o desenvolvimento de inovações baseadas em ciência e tecnologia.
A partir das entrevistas realizadas com representantes do setor público, institutos de pesquisa e do setor empresarial, o estudo mapeou os principais pontos fortes e, igualmente, as principais debilidades do sistema brasileiro de inovação. Os pontos fortes identificados são os seguintes:
- Presença de todos os elementos de um desenvolvido sistema de inovação;
- Substancial fortalecimento do subsistema de pesquisa científica nas últimas décadas, com produção na fronteira do conhecimento em algumas áreas-chave, com ilhas de excelência produtiva em setores como óleo e gás, aviação, agricultura, saúde e, em menor medida, automação bancária;
- Ativos naturais estratégicos, tais como recursos minerais e hídricos, biodiversidade dos seis biomas terrestres e do bioma marítimo, os quais, com avanço do processo de inclusão econômica nas economias emergentes, serão crescentemente demandados no longo prazo;
- Multifacetado aparato estatal de agências de promoção e execução de ciência, tecnologia e inovação e de politicas de inovação, incluindo uma repleta panóplia de instrumentos de oferta e demanda;
- Forte mercado doméstico para consumo de massas, o qual tem crescido como resultado das políticas de inclusão social;
- Disponibilidade de recursos financeiros públicos para pesquisa e desenvolvimento (P&D) e inovação que, em princípio, não é afetada por restrições orçamentárias e cortes, tais como os fundos setoriais e o funding do BNDES que não origina no Tesouro;
- Exemplos positivos de iniciativa de política sistêmica orientada à missão, explícita ou implicitamente focada em inovação;
- Existência de políticas complementares que podem funcionar como facilitadoras de programas orientados à missão em áreas como defesa e segurança nacional, meio ambiente, clima e energia.
No que se refere às debilidades percebidas do sistema brasileiro de inovação, o estudo destaca os seguintes aspectos:
- Ausência de uma visão estratégica consistente de longo prazo que confira coerência às políticas públicas executadas pelas distintas instituições públicas e dê direção à pesquisa científica e aos agentes privados em seus esforços de inovação;
- Existência de fragmentação, e mesmo antagonismo, entre os subsistemas de pesquisa e educação e de produção e inovação, em razão da auto-orientação da pesquisa científica e da falta de demanda por parte das empresas do conhecimento produzido na academia;
- Baixa propensão a inovar do subsistema de produção e inovação, expressa no baixo investimento empresarial em P&D, o qual em 2013 alcançou apenas 0,5% do PIB;
- Ineficiências diversas no subsistema de política e regulação: sobreposição de responsabilidades; competição por uso não estratégico de recursos; descontinuidade dos investimentos e programas; burocracia excessiva, controle e auditoria de programas e políticas de inovação que não consideram suas especificidades;
- Impactos negativos do complexo sistema tributário brasileiro e da regulamentação dos negócios no país tornam necessária a realização de importantes reformas institucionais nessas duas áreas;
- Efeitos negativos frequentes das políticas implícitas e, em particular, da agenda macroeconômica, baseada no tripé meta de inflação, câmbio flutuante e superávit primário, e das recentes políticas de austeridade.
Os pontos fortes e as debilidades do sistema brasileiro de inovação têm sido foco de políticas públicas ao longo dos anos. Todavia, sucessivas políticas explícitas de inovação conduzidas pelo MCTI, as quais ganharam ímpeto a partir de 2003, fracassaram em seus intentos.
Na interpretação dos autores, isso se deve ao fato dessas políticas terem sido formuladas a partir da perspectiva restritiva de falhas de mercado. A abordagem de falha de mercado adotado nos planos de política de ciência, tecnologia e inovação do MCTI conduziu, com raras exceções, a projetos ad hoc e não sistêmicos, e, em sua maioria, com claro viés prol ciência. Tais políticas de impulso à ciência (criação de parques tecnológicos, por exemplo) têm, todavia, pouco impacto positivo sobre a estrutura produtiva ou sobre a propensão das empresas para inovar.
O estudo identificou, contudo, como já mencionado, alguns exemplos positivos de iniciativas de política públicas orientadas à missão adotadas no Brasil entre 2008 e 2014. São os casos das políticas públicas na área de saúde e do programa Inova (em particular o Inova Saúde), e em menor medida, iniciativas lideradas pela Petrobrás e pela Embrapa.
Nas políticas de saúde, os autores ressaltam a presença das seis capacidades cruciais ao sucesso das iniciativas orientadas à missão:
i) capacidade científico-tecnológica: excelente base de conhecimentos científicos e tecnológicos criados pela Fiocruz, por laboratórios universitários e departamentos de P&D das empresas;
ii) capacidade de demanda: demanda com base no poder de compra do SUS e na necessidade do Brasil de medicamentos e equipamentos;
iii) capacidade produtiva: existência de um número crescente de empresas domésticas que se beneficiaram do suporte do BNDES por meio do Profarma;
iv) capacidade das organizações governamentais: base apropriada de conhecimento no interior das organizações públicas, tais como Ministério da Saúde, Fiocruz, Anvisa e BNDES, e nas universidades;
v) capacidade de políticas: leque de instrumentos de políticas: compras públicas, incentivos financeiros, intermediação de informação, regulação e normas; estabelecimento de redes específicas através de Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs);
vi) capacidade de previsão: missão unificadora de melhoria do sistema brasileiro de bem-estar mediante a promoção de acesso a serviço de saúde e medicamentos e visão de acesso universal à saúde, com indicadores específicos de sucesso.
Já o Programa Inova, lançado em 2012, é destacado pelos autores como exemplo de uma iniciativa de política sistêmica orientada à missão, completamente distinta da tradição brasileira de política de inovação de estímulo à oferta. No Inova, além de direcionamento de recursos financeiros, foram estabelecidas redes setoriais com instituições públicas, privadas e científicas para o desenvolvimento de tecnologias voltadas à resolução de desafios específicos. Dentre os seus subprogramas, o de Saúde, estabelecido em 2013, tem foco na indústria farmacêutica, de equipamentos médicos e biotecnologia. Esse subprograma reúne as seis características favoráveis ao êxito identificadas nas políticas de saúde. Esse também seria o caso do PAISS, no qual, entretanto, a capacidade de demanda não é representada pelo poder de compra do setor público, mas pela demanda potencial dos mercados de combustível flex por etanol de segunda geração e pela necessidade de aperfeiçoar as fábricas existentes.
Outros subprogramas do Inova alcançaram, contudo, somente sucesso parcial. Casos, por exemplo, do Inova Defesa, Inova Petros e Inova Energia. Em todos esses subprogramas, faltava pelo menos uma das seis capacidades cruciais para o sucesso de políticas orientadas à missão. No Inova Defesa, o interesse inicial da indústria brasileira de defesa não prosperou em razão da ausência de compromisso firme por parte do governo para aquisição das tecnologias e produtos que seriam desenvolvidos. Problema semelhante de falta de capacidade de demanda afetou o Inova Petros, uma vez que a Petrobrás não pôde garantir em última instância a aquisição das tecnologias inovadoras. Já no subprograma Inova Energia foram identificadas falhas na capacidade de política, em razão da ausência de coordenação com outras políticas, bem como na capacidade de demanda, em particular no caso dos veículos elétricos e híbridos, e também na capacidade de previsão, expressa na realização de diagnóstico incompleto sobre as cadeias de oferta global das tecnologias de energia eólica e solar. Enquanto no subprograma Inova Sustentabilidade, o de menor sucesso, objetivos amplos e muito gerais em termos de visão, missão e metas tecnológicas atraíram uma vasta gama de projetos fracos, que nem o BNDES nem a Finep puderam filtrar adequadamente.
De acordo com os autores, três tipos de mecanismos, mais ou menos presentes nas experiências recentes bem-sucedidas de política orientada à missão, poderiam facilitar a criação de capacidade durante o próprio processo de política orientada à missão. Esses seriam: i) mecanismos de promoção de cooperação entre, por exemplo, os laboratórios de pesquisa, entre os consórcios de pesquisa e de empresas; ii) mecanismos competitivos tais como chamadas públicas para propostas de projetos; iii) mecanismos para avaliação e prestação de conta, que, além de prevenir potenciais desvios do programa, permitiriam o aprendizado e a acumulação de conhecimento.
Recomendações para uma Agenda Alternativa de Políticas. De acordo com os autores, para um país como o Brasil, que conta com elevada dotação de recursos naturais estratégicos e já possui um sistema nacional de inovação bem desenvolvido, com presença de instituições-chave em todos seus quatro principais subsistemas, e um amplo conjunto de instrumentos variados de política, a adoção de um programa estratégico de inovação orientado à missão nas áreas de segurança nacional, energia e meio ambiente, infraestrutura urbana, infraestrutura pública, agronegócio e agricultura familiar permitiria superar as debilidades do atual sistema de inovação e ajudaria a gerar crescimento inclusivo e sustentado.
Contudo, tal transformação exigiria enfrentar um desafio considerável: assegurar uma clara articulação e coordenação entre a política de inovação e as demais políticas públicas, em especial com a política econômica. Segundo o estudo, estreita coordenação das políticas públicas poderia evitar que esforços de política industrial e política de inovação explícita sejam minados por políticas macroeconômicas restritivas como aconteceu no período recente com iniciativas relativamente bem-sucedidas, como a Embrapii, o fundo de capital semente CRIATEC e o PAISS.
O estudo destaca que, não obstante a existência de algumas iniciativas bem sucedidas de política orientada à missão, nas quais ocorreram interações virtuosas entre o estado, a academia e o setor empresarial, ainda falta ao país uma agenda estratégica consistente de longo prazo que oriente a pesquisa científica e os agentes privados em seus esforços da inovação.
Os autores reconhecem que a atual situação política e econômica no Brasil impõe sérios obstáculos no curto prazo à adoção de uma agenda positiva para o desenvolvimento e longo prazo e ao lançamento das bases para a transformação do sistema nacional de inovação em um sistema orientado à missão. Todavia, consideram que as linhas de ações propostas no estudo permitiriam ao Brasil, não somente, resolver problemas persistentes, como também tornar-se líder em novos campos tecnológicos.
Nesse sentido, fazem oito recomendações:
1ª Recomendação – As políticas macroeconômicas e as políticas complementares poderiam ser mais favoráveis aos programas de política explícita de inovação.
2ª Recomendação – Não obstante as dificuldades em promover agenda legislativa nas circunstâncias políticas atuais, ação legislativa é necessária para solucionar as ineficiências do subsistema de política e regulação: reforma do complexo sistema tributário e remoção das barreiras à adoção de compras governamentais para inovação.
3ª Recomendação – Mecanismos de concorrência, cooperação e prestação de conta devem ser estabelecidos e reforçados em programas orientados à missão, de modo a assegurar o equilíbrio nos papéis do governo, setor empresarial e academia.
4ª Recomendação – A habilidade das organizações públicas em experimentar, explorar e aprender é elemento central para o sucesso do estado empreendedor. Por essa razão, deve ser realizada uma detalhada reavaliação dos experimentos brasileiros de políticas orientadas à missão, que representam uma fonte bastante rica de aprendizado institucional para as agências públicas envolvidas.
5ª Recomendação – Características de organizações de aprendizado bem sucedidas deveriam ser emuladas por outras agências públicas para criar redes e parcerias orientadas à missão, levando em conta os pontos fortes de cada parceiro.
6ª Recomendação – As missões escolhidas devem refletir as melhores práticas. Ou seja, devem ser factíveis, desenhadas a partir de recursos públicos e privados disponíveis, conforme os instrumentos existentes e devem contar com amplo e contínuo apoio político. É necessário que as missões criem uma agenda de longo prazo para as políticas de inovação, atendando as demandas e necessidades da sociedade e aproveitando o elevado potencial do sistema brasileiro de ciência e tecnologia para desenvolver inovações;
7ª Recomendação – Além de dar prosseguimento, aperfeiçoando e expandindo, às bem-sucedidas iniciativas de política orientadas à missão, como as políticas de saúde e o programa Inova, sugere-se a realização de detalhado diagnóstico e prognóstico para outras missões potenciais, em áreas como infraestrutura urbana, infraestrutura pública, agronegócio e agricultura familiar, segurança nacional, energia e meio ambiente. Desse modo, seria possível identificar as capacidades existentes e aquelas que necessitam ser criadas.
8ª Recomendação – As missões deveriam, sempre que possível, contribuir para o combate às desigualdades. Algumas missões farão isso diretamente e outras indiretamente. Em alguns casos, será necessário investimento complementar em infraestrutura e capacitação para que as políticas de inovação possam efetivamente contribuir para a redução da desigualdade.
O estudo sugere ainda uma caracterização do que seriam boas missões e do que se deve fazer ou não em políticas de inovação orientada à missão:
- Missões devem ser definidas a partir de processo democrático, de modo que sejam percebidas como legítimas pelas partes interessadas. Isso requer o envolvimento bottom-up das empresas e da academia e da sociedade como um todo.
- Missões devem ser formuladas levando em consideração as vantagens, capacidades, expertises e competências tanto científica como produtiva do país. Igualmente, devem permitir o desenvolvimento do potencial criativo e intelectual da população.
- Devem se combinar missões de médio prazo para solução de problemas com missões de longo prazo voltadas à liderança tecnológica. Algumas missões geram conhecimento que é crucial para resolver desafios e problemas da sociedade, enquanto outras devem possibilitar que um país como o Brasil se transforme em líder tecnológico no longo prazo. Missões mais estratégicas são aquelas que combinem os dois objetivos.
- Como as missões devem motivar e providenciar incentivos para o setor empresarial privado, também é necessário que especifiquem contrapartidas. Isso inclui definir como os riscos e recompensas (por exemplo, direito de propriedade intelectual) do processo de inovação serão compartilhados entre os participantes.
- Missões devem ser definidas de forma menos abstrata possível. Uma definição mais pormenorizada das mudanças tecnológicas facilita tanto o estabelecimento de metas intermediárias e de entrega de resultado como o processo de monitoramento e prestação de conta.
- Uma missão não deve incluir um único projeto de P&D ou de inovação, mas sim um portfólio de projetos. Em razão da elevada incerteza da atividade de P&D e de inovação, alguns projetos irão fracassar enquanto outros poderão ser bem-sucedidos. Todos os envolvidos precisam ser capazes de aceitar fracassos e utilizá-los como aprendizado.
- Missões devem resultar em efeito gotejamento (trickle-down effect), de modo que as prioridades sejam transladadas em ações políticas concretas e instrumentos sejam empregados em todos os níveis pelas instituições públicas envolvidas. Uma vez que as missões envolvem uma grande diversidade de instituições públicas é crucial que haja uma divisão estratégica de trabalho entre elas, com responsabilidades bem definidas e acompanhamento pela coordenação.