Carta IEDI
Digitalização e as Cadeias Globais de Valor
A Carta IEDI de hoje trata das implicações da digitalização, associada à indústria 4.0, das discussões realizadas no artigo “The ‘lightness’ of Industry 4.0 lead firms: implications for global value chains", de autoria dos professores da Duke University (EUA), Lukas Brun e Gerry Gereffi, e de James Zhan, Diretor da Divisão de Empresas e Investimentos da Unctad.
Nesse artigo, que integra o livro Transforming Industrial Policy for the Digital Age: Production, Territory and Structural Change, os autores mostram que, ao viabilizar o avanço das empresas multinacionais (EMNs) de tecnologia digital em setores da indústria de transformação e de serviços, a digitalização está modificando o funcionamento das cadeias globais de valor (CGV).
As EMNs digitais operam com menos ativos físicos localizados no exterior do que as EMNs tradicionais, indicativo de uma estratégia competitiva que valoriza formas mais “leves” de ativos de produção internacional.
Para os autores, a tendência à digitalização é a mais recente das quatros principais forças que vêm modificando a dinâmica das CGVs desde a crise financeira global de 2008-09. As demais são racionalização (redução do número de fornecedores), regionalização (com crescimento dos fluxos comerciais sul-sul) e resiliência (via diversificação geográfica e aumento de estoques).
É possível que alguns destes fatores, sobretudo digitalização e resiliência, venham a ganhar força adicional após a crise do covid-19, que interrompeu o fluxo de mercadorias de muitas cadeias globais.
A tendência à digitalização é resultado dos avanços da indústria 4.0, que, na definição empregada no estudo, é um conjunto de tecnologias e recursos aprimorados que, quando combinados, devem mudar a maneira como produtos e serviços são criados, produzidos e entregues. Seus principais viabilizadores são big data, análise avançada, interface homem-máquina e transferência digital para físico, como robótica avançada e impressão em 3D.
O avanço da digitalização está conduzindo a três grandes mudanças nas CGVs, de acordo com os autores:
• A primeira delas é a desintermediação das cadeias de suprimentos, uma vez que a digitalização permite que os produtores de bens e serviços produzam e entreguem seus produtos diretamente aos usuários finais, contornando as redes de suprimento, distribuição e vendas.
• A segunda mudança é o aumento o papel dos serviços como modelo de negócios para as CGVs, tendência conhecida como “servitização”. A captura dos dados da produção e do uso dos produtos é uma forma cada vez mais comum de “servitização”.
• O terceiro efeito da digitalização nas cadeias é a substituição do trabalho por capital devido à automação. À medida que o investimento em automação e robótica aumenta, a intensidade de capital da produção aumenta, alterando o tipo e a quantidade de atividades realizadas pelo trabalho humano.
Na avaliação de Brun, Gereffi e Zhan, as empresas multinacionais digitais são os atores que estão liderando as forças de disrupção e desintermediação que caracterizam a mudança nas CGVs industriais e de serviços devido à adoção das tecnologias da indústria 4.0.
As EMNs digitais incluem empresas digitais “puras”, que dependem inteiramente da Internet para realizar negócios, bem como players “mistos”, como empresas de comércio eletrônico e conteúdo digital, que têm uma presença proeminente on-line, mas retêm parte de seus negócios em formas não digitais.
Uma característica distintiva das EMNs digitais é o fato de operarem internacionalmente com maior taxa de “leveza” do que EMNs dos setores tradicionais, expressa em vendas externas elevadas em comparação com a proporção de ativos físicos mantidos no exterior.
Os autores destacam que o avanço da digitalização nas CVGs pode resultar em mudanças no comércio exterior e no comportamento do investimento estrangeiro das EMNs, especialmente se os modelos de negócios com ativos estrangeiros “leves” se tornarem prevalecentes. Isto porque os incentivos para investir em ativos relacionados à produção no exterior diminuem à medida que as empresas conseguem produzir competitivamente mais perto dos mercados de demanda final, ainda amplamente localizados no mundo desenvolvido.
Os autores exploram três cenários de como a governança das empresas líderes das CGVs pode mudar em função da digitalização:
• Complementariedade. Nesse cenário, as EMNs da economia digital criam um novo valor adicionado significativo na economia global, gerando emprego e investimento entre as indústrias, mas não substituem as empresas líderes existentes.
• Descolamento. Nesse cenário, as EMNs da economia digital perturbam os setores existentes, desafiando os modelos de negócios das principais empresas existentes, com deslocamento rápido ou gradual.
• Adaptação. Nesse cenário, as tecnologias da indústria 4.0 são adotadas com sucesso pelas empresas líderes existentes para melhorar a eficiência da produção e alcançar níveis mais elevados de competitividade.
De acordo com os autores, o cenário que emergirá como dominante é atualmente incerto, principalmente porque existem evidências para apoiar todos os três acima identificados.
Em resumo, os autores consideram que a digitalização, além de influenciar a decisão de onde e como os bens e serviços são produzidos na economia mundial, está permitindo a entrada de novas de empresas multinacionais de tecnologia digital de alta capacidade nos setores da indústria e de serviços. Essas empresas são únicas por operarem no mercado externo com menos ativos físicos e funcionários, “leveza” que tem implicações para o comércio exterior, investimento estrangeiro e desenvolvimento das regiões.
As empresas com uma presença “mais pesada” no exterior fornecem, segundo os autores, um conjunto maior de benefícios macroeconômicos para os países anfitriões do que as empresas com modelos de negócios “mais leves”. Na medida em que a digitalização aumentar a “leveza” de outros setores da economia, o impacto sobre trabalhadores, regiões e governos pode ser significativo e até disruptivo.
Introdução
A Carta IEDI de hoje retoma o tema das implicações da digitalização da economia, viabilizada pelas tecnologias associadas à indústria 4.0 ou Quarta Revolução Industrial, a partir das ideias principais do artigo “The ‘lightness’ of Industry 4.0 lead firms: implications for global value chains", de autoria de Lukas Brun, Gerry Gereffi, professores da Duke University (EUA), e de James Zhan, Diretor da Divisão de Empresas e Investimentos da Unctad.
Neste artigo, que integra o livro Transforming Industrial Policy for the Digital Age: Production, Territory and Structural Change, organizado por Patrizio Bianchi e outros, os autores procuram mostrar que ao viabilizar o avanço das empresas multinacionais (EMNs) de tecnologia digital em setores da indústria de transformação e de serviços, a digitalização está modificando o funcionamento das cadeias globais de valor e desafiando o caráter extensivo da produção no espaço geográfico e a densidade de interações entre compradores e fornecedores.
As EMNs digitais operam com menos ativos físicos localizados no exterior do que as EMNs tradicionais, o que indica uma estratégia competitiva que valoriza formas mais “leves” de ativos de produção internacional. A “leveza” dessas empresas da economia digital tem implicações importante para comércio exterior, investimento estrangeiro e desenvolvimento das cadeias regionais.
Tendências recentes nas cadeias globais de valor
As cadeias globais de valor (CGVs) tornaram-se uma característica dominante do sistema de produção industrial e comércio no pós-Guerra Fria, representando atualmente 80% do comércio mundial. Acelerando a tendência de deslocalização e de terceirização da produção, iniciada nos anos 1970, as cadeias globais de valor, organizadas por fabricantes e marcas globais, separaram, cada vez mais, na década de 1990, a produção de componentes e a montagem final em diferentes locais de produção, para aproveitar as vantagens comparativas e competitivas de cada local.
Todavia, de acordo com os autores, após a crise financeira global de 2008-2009, tem ocorrido importantes mudanças na dinâmica das cadeias globais de valor. A primeira delas é a racionalização. As empresas líderes globais, sejam elas de cadeias de produtores ou de cadeias dirigidas aos compradores, estão consolidando suas cadeias de suprimentos para incluir fornecedores mais capazes em menor número.
As empresas líderes reduzem o número de fornecedores devido à percepção de que, em primeiro lugar, apenas alguns fornecedores estavam fornecendo a maioria dos componentes valiosos; e em segundo lugar, que os requisitos de auditoria poderiam ser feitos com mais eficiência e frequência se existisse um número menor de fornecedores altamente capazes. Brun e seus coautores destacam que a auditoria é importante para as empresas como um meio de certificar que os produtos atendem às especificações técnicas, mas também como um mecanismo de conformidade para garantir que os produtos atendam aos requisitos de responsabilidade social e ambiental.
Uma segunda tendência nas cadeias globais de valor é a regionalização. Em vez de ampliar as cadeias de suprimentos globalmente, a tendência recente tem sido as empresas da América do Norte, Europa e Ásia buscarem áreas de produção de baixo custo em sua própria região. De acordo com Brun, Gereffi e Zhan, na América do Norte, as cadeias de suprimentos se estendem ao México; na Europa, as cadeias de suprimentos estão se estendendo aos países da Europa Oriental; e na Ásia, as cadeias de suprimentos estão mudando para fora da China, se dirigindo a países como Vietnã, Indonésia e Mianmar.
Outro aspecto da regionalização da cadeia de suprimentos ressaltado pelos autores é o crescimento do comércio Sul-Sul. O padrão geral de comércio ao longo dos séculos XX e XXI ocorreu entre países do hemisfério norte e entre países dos hemisférios norte e sul. No entanto, os corredores comerciais que mais crescem estão nas regiões do hemisfério sul, principalmente entre a Ásia e o Oriente Médio e o norte da África, a Ásia e a África Subsaariana e a Ásia e a América Latina.
O foco na resiliência tem sido uma terceira ação dinâmica nas cadeias globais de valor. A resiliência da cadeia de suprimentos é, segundo os autores, importante devido ao potencial de eventos perturbadores que dificultam a capacidade das empresas de produzir bens e fornecer serviços. A resiliência da cadeia de suprimentos pode ser reforçada aumentando o número de locais de produção dos principais fornecedores e aumentando o estoque para reduzir o risco de interrupção. Por exemplo, a principal fornecedora da Apple, a empresa chinesa Foxconn, diversificou as localizações de suas fábricas devido não apenas ao desejo de produzir fora da China, mas também para a atender à demanda local na América do Sul. A racionalização e regionalização podem contribuir também para a resiliência da cadeia de suprimentos.
A quarta e mais recente tendência identificada nas CGVs é a digitalização da cadeia de suprimentos, definida como o uso de ferramentas analíticas avançadas de dados e tecnologias físicas para melhorar a conectividade digital e os recursos tecnológicos das cadeias de suprimentos. As ferramentas analíticas avançadas de dados incluem visualização, análise de cenários e algoritmos de aprendizado preditivo, que são normalmente chamados de tecnologia da informação (TI).
As tecnologias físicas avançadas incluem robótica, drones, manufatura aditiva (impressão tridimensional - 3D) e veículos autônomos, normalmente chamadas de tecnologia de operações (OT). Na avaliação dos autores, a combinação de TI e OT, possibilitada por recursos aprimorados de processamento, maior poder computacional e custos reduzidos de computação, armazenamento e largura de banda desde 2001, permitiu o acesso em tempo real a dados, análises e otimização nos sistemas de produção.
Para Brun e seus coautores, a tendência à digitalização é resultado dos avanços da indústria 4.0, que, na definição empregada no artigo, é um conjunto de tecnologias e recursos aprimorados que, quando combinados, devem mudar a maneira como produtos e serviços são criados, produzidos e entregues. Seus principais instrumentos são big data, análise avançada, interface homem-máquina e transferência digital para físico, como robótica avançada e impressão em 3D.
De acordo com os pesquisadores, a visão geral dos sistemas da indústria 4.0 é automatizar e integrar linhas de produção e projetar e produzir de forma colaborativa e virtual. Como resultado das tecnologias da indústria 4.0, os processos de produção se tornarão mais automatizados e flexíveis para permitir tamanhos de lotes menores e para aprendizado, auto-otimização e ajuste, enquanto a logística automatizada usará veículos e robôs autônomos para se ajustar automaticamente às necessidades de produção.
Efeitos da digitalização nas cadeias globais de suprimento
Na avaliação dos autores, o avanço da digitalização está conduzindo a três grandes mudanças nas cadeias globais de valor: desintermediação, “servitização” e produção flexível. Juntas, essas três forças estão remodelando as cadeias de suprimentos e afetando o papel dos fornecedores nas CGVs.
A digitalização viabiliza a desintermediação das cadeias de suprimentos ao permitir que os produtores de bens e serviços fabriquem e entreguem seus produtos diretamente aos usuários finais, contornando as redes de suprimento, distribuição e vendas. Por exemplo, nas transações empresa-a-empresa (B2B), a desintermediação a jusante é exemplificada pela capacidade de uma empresa ignorar as funções de atacado e distribuição executadas por provedores de serviços externos e realizar ela própria essas funções. Segundo Brun e seus coautores, a digitalização pode mudar a decisão da empresa de “comprar” para “produzir”, resultando em cadeias de suprimentos mais curtas.
No que se refere às interações entre empresas e consumidores (B2C), a desintermediação da cadeia de suprimentos em razão da digitalização é exemplificada pela prestação direta de serviços. Por exemplo, quando as empresas de mídia se tornaram empresas de mídia digital com serviços de transmissão de dados, os canais de distribuição tradicionais foram completamente evitados, permitindo que os consumidores acessassem diretamente o conteúdo digital. Da mesma forma, empresas líderes na “economia compartilhada”, empresas como Uber e Airbnb, pressionam as empresas tradicionais de serviços de táxi, hotel e leasing imobiliário de curto prazo, conectando os proprietários de ativos diretamente àqueles que precisam de serviços a curto prazo. Essas empresas também têm um potencial notável para criar efeitos de rede que trazem empresas muito pequenas para as cadeias de valor.
Além disso, a digitalização também está conduzindo à desintermediação nos setores de suporte, principalmente serviços financeiros e outros provedores de serviços de verificação e dados de "terceiros confiáveis", pois a tecnologia permite que as partes verifiquem instantaneamente as transações. À medida que as transações entre empresas passam da verificação de terceiros para transações digitais instantâneas diretas (ou seja, tecnologia blockchain), o papel dos intermediários financeiros e outros atores confiáveis de terceiros muda.
A digitalização está aumentando o papel dos serviços como modelo de negócios para as GVCs dos setores da indústria e serviços, uma tendência denominada “servitização”. A “servitização” ocorre em três formas: separação dos equipamentos de capital em um serviço fornecido por provedores externos, separação das atividades relacionadas à produção manufatureira em serviços prestados por provedores externos e captura dos dados da produção e do uso do produto em um serviço de elevado valor agregado.
A separação do equipamento de capital em um serviço prestado por fornecedores externos está se tornando cada vez mais comum. Os serviços de pagamento por uso e de assinatura tornaram-se mais comuns devido às rápidas mudanças nos requisitos de tecnologia e serviço dos equipamentos de capital da indústria 4.0, transformando gastos de capital em gastos operacionais. O modelo significa que alguns fabricantes não possuem mais seus equipamentos de produção, mas pagam um custo fixo de assinatura ou uma taxa variável “por uso” aos fabricantes de equipamentos para usar e manter o equipamento.
Como exemplo dessa tendência, os autores destacam a empresa norte-americana General Electric (GE), produtora de motores de aeronaves, que depois de perceber que os motores eram apenas um meio de obter o fluxo de receita de serviços mais valioso, mudou seu modelo de negócios de fornecedor de produtos e componentes para fornecedor de energia e propulsão, no qual aluga equipamentos com uma “base na hora de energia". A mudança na maneira de pensar o equipamento como um custo de capital para um custo de operação é uma grande mudança na maneira como produtores e compradores de equipamentos de capital em vários setores se relacionam. Também pode alinhar os incentivos de compradores e produtores para tornar os produtos mais confiáveis, duráveis e simples de consertar.
A desagregação das atividades relacionadas à indústria em serviços se deve à fragmentação das cadeias de valor em tarefas separadas, que revelaram que as atividades industriais na cadeia de valor, incluindo a produção, são na verdade atividades de serviço (“indústria como serviço”). A digitalização permite que esses serviços sejam desmembrados como entidades comerciais separadas ou terceirizados para contatar os fabricantes. Por exemplo, serviços de suporte técnico, incluindo manutenção e serviço de máquinas de produção, diagnósticos especializados e testes de qualidade são cada vez mais terceirizados para empresas de serviços especializadas nas cadeias de valor da indústria de transformação.
A captura da produção e do uso de dados de produção em um serviço de valor agregado também é, segundo os autores, uma forma cada vez mais comum de “servitização”. O licenciamento da propriedade intelectual pode se tornar um fluxo de receita mais importante para muitas empresas, pois monetizam dados relacionados à produção e uso de seus produtos. Como os sensores e os recursos de comunicação são incorporados aos produtos, eles podem ser usados para criar plataformas de sistema de produtos similares, otimizar seu uso individual ou combinado ou ser vendidos para desenvolver novos produtos de informação para novos clientes.
Por exemplo, dados sobre a eficiência de combustível de um veículo sob diferentes condições operacionais e as condições atuais de condução nas estradas podem ser valiosos para vários clientes em potencial, incluindo outros motoristas, empresas de transporte e logística e seguradoras. Dados sobre como, quando e onde o produto é usado podem ser valiosos para os fabricantes de produtos segmentarem clientes, personalizarem recursos e fornecerem planos de serviços especializados ou descontos para produtos adicionais a clientes de nicho altamente específicos.
O terceiro efeito da digitalização nas cadeias de suprimentos é a substituição do trabalho por capital devido à automação, permitindo o surgimento de uma produção flexível. Os ganhos de produtividade esperados incentivam a automação da produção. À medida que o investimento em automação e robótica aumenta, a intensidade de capital da produção aumenta, alterando o tipo e a quantidade de atividades realizadas pelo trabalho humano. Em geral, espera-se que a produtividade geral aumente entre 5% e 8% devido à adoção das inovações do setor 4.0, embora isso varie de acordo com o setor.
À medida em que a adoção das tecnologias da indústria 4.0 se disseminar, algumas tarefas realizadas rotineiramente nas indústrias atuais serão substituídas pela tecnologia, afetando a natureza do trabalho. Espera-se que até 2025 os robôs industriais afetem de 36 a 60 milhões de empregos em tempo integral equivalentes (ETI) dos 355 milhões de trabalhadores industriais aplicáveis e aumentem a produtividade em 75% para cada ETI.
A digitalização reduz os custos de transação para operações de negócios internas e externas, afetando todos os estágios das cadeias de valor. A Tabela abaixo sumariza as implicações potenciais em diversos setores industriais.
Os relacionamentos com fornecedores ou a montante são afetados por leilões, estoques gerenciados pelo fornecedor e design colaborativo de produtos ou processos de produção. Os serviços digitais B2B que afetam os relacionamentos a montante incluem mercados habilitados digitalmente que conectam compradores a fornecedores, como mercados de pedidos/oferta ou leilões digitais, pagamentos digitais e software digitalizado de planejamento de recursos empresariais.
Embora os leilões eletrônicos reduzam os custos de transação das operações comerciais externas devido aos modelos de parceria, resultando em suprimentos dispersos e sob demanda, seus impactos nos fornecedores não são nítidos. Por um lado, os leilões eletrônicos podem permitir que novos entrantes e empresas menores concorram em pé de igualdade com as empresas maiores e já estabelecidas. Por outro lado, se as plataformas de fornecedores são complexas, exigem capacidades ou certificações qualificadas ou são fechadas por projeto, podem reduzir as oportunidades para novos participantes em favor de fornecedores estabelecidos.
O estoque gerenciado pelo fornecedor e o design colaborativo de produtos e processos também aumentam a eficiência da cadeia de suprimentos da empresa devido à digitalização. Os processos internos de produção serão mais eficientes com a automação digitalizada das operações da fábrica (ou seja, processamento contínuo) e tecnologias de fabricação que permitem uma produção mais próxima do consumo, como a impressão 3D.
As relações a jusante ou com os clientes são afetadas pela conectividade entre fabricantes e clientes, permitindo vendas diretas e personalização em massa. Relacionamentos adicionais, a jusante, afetados pela digitalização da cadeia de suprimentos são os serviços digitais B2C, incluindo publicidade, vendas, pagamento e atendimento ao cliente fornecidos por meio de mídia social ou outros meios eletrônicos. Como os meios eletrônicos fornecem uma conexão direta com os clientes, a função de distribuição pode ser fornecida pelo fabricante ou terceirizada para novas empresas especializadas que fornecem serviços de distribuição digitalizados.
A “leveza” das empresas líderes da economia digital e suas implicações
Na avaliação de Brun, Gereffi e Zhan, as empresas multinacionais digitais são os novos atores que estão liderando as duas forças de disrupção e desintermediação, que caracterizam a mudança nas CGVs industriais e de serviços devido à adoção das tecnologias da indústria 4.0. A arquitetura da economia digital pode ser dividida em duas categorias principais: multinacionais digitais e multinacionais de tecnologia de informação e comunicação (TIC).
Caracterizadas pelo uso da Internet como modelo central de operação e entrega de serviços, as EMNs digitais incluem empresas digitais “puras”, tais como as empresas de plataformas da Internet e empresas de soluções digitais (por exemplo, empresas de pagamento eletrônico,) que dependem inteiramente da Internet para realizar negócios. Incluem também players “mistos”, como empresas de comércio eletrônico e conteúdo digital (por exemplo, mídia digital e jogos), que têm uma presença proeminentemente on-line, mas retêm parte de seus negócios em formas não digitais, casos em que o conteúdo ou produção é tangível.
Já as EMNs de TIC incluem provedores de telecomunicações tradicionais, fabricantes de dispositivos e componentes e empresas de desenvolvimento de software. Esse grupo de empresas fornecem a infraestrutura que permite o acesso à Internet de empresas e pessoas. As empresas de telecomunicações possuem a infraestrutura pela qual os dados da Internet são transportados. Os fabricantes de dispositivos e componentes produzem hardware de TIC e os componentes necessários para executá-los. As empresas de software desenvolvem o código de programação e entregam o software aos clientes, cada vez mais por meios digitais. As empresas de serviços de software oferecem assistência e consultoria sobre tópicos técnicos e do mercado digital.
Os autores ressaltam que uma característica distintiva das novas EMNs da economia digital é a preferência por operar com poucos ativos físicos localizados no estrangeiro. As empresas multinacionais podem ter vendas externas como resultado de ter uma parcela significativa de seus ativos produtivos no exterior (“ativos pesados”) para alcançar clientes estrangeiros, ou podem atingir o mesmo nível de vendas externas com poucos ativos no exterior (“ativos leves”) e menor número de funcionários.
A Tabela abaixo mostra que, em comparação às EMNs não digitais, as EMNs da economia digital possuem menos ativos no exterior, indicando uma estrutura física internacional reduzida, mesmo que elas obtenham uma parcela significativa de suas vendas no exterior. A implicação de possuir um volume menor de ativos no exterior é uma necessidade reduzida de EMNs da economia digital para realizar atividades de produção industrial e de serviços fora do país de origem para obter vendas externas. Em vez disso, elas podem ser executadas pela própria empresa (internalização) no país de origem (relocalização), revertendo as tendências das CGVs que ocorrem desde a década de 1970 e se aceleraram na década de 1990.
O grau de “leveza” varia significativamente também entre as EMNs da economia digital. Por exemplo, embora as plataformas da Internet sejam a categoria “mais leve” das empresas, a eBay tem uma proporção de 8,87 entre vendas externas e ativos (muito leve), enquanto o Alphabet e o Facebook têm proporções de leveza de 2,25 e 2,51, respectivamente, próximas aos níveis médios de “leveza” da categoria de plataforma da Internet.
Segundo os autores, as grandes variações nessas taxas de “leveza” indicam diferenças na importância dos ativos no estrangeiro usados no nível da empresa para obter vendas externas. Embora a eBay consiga atingir uma parcela das vendas externas semelhantes às do Facebook e Alphabet (58% versus 53% a 54%), a empresa possui menos de um terço da sua participação em ativos no exterior.
As diferenças de localização dos data centers (fazendas de servidores), operações, pesquisa e desenvolvimento e centros de atendimento ao cliente localizadas em países estrangeiros ajudam a explicar os motivos da variação entre essas empresas. Por exemplo, a Alphabet mantém data centers nos EUA, Europa e Ásia e possui grandes escritórios na Irlanda e na Suíça. Da mesma forma, o Facebook possui operações e escritórios importantes no exterior, enquanto a presença da eBay no exterior é amplamente limitada à equipe de relações governamentais.
Os autores destacam que as empresas com uma presença “mais pesada” no exterior fornecem, presumivelmente, um conjunto maior de benefícios macroeconômicos para os países anfitriões do que as empresas com modelos de negócios “mais leves”.
A crescente digitalização das cadeias de suprimentos e o surgimento de novas empresas líderes na vanguarda da mudança na economia digital podem sinalizar uma nova era na economia global. Na medida em que a digitalização aumentar a “leveza” de outras indústrias, o impacto sobre trabalhadores, regiões e governos pode ser significativo e até disruptivo.
Na avaliação dos autores, a capacidade das EMNs da economia digital de penetrar em outros setores de produtos e serviços provavelmente será uma função do potencial de automação das indústrias. Os efeitos estimados de emprego da automação são impressionantes e variam consideravelmente.
Estudos realizados em 2013 estimaram que entre 47% e 57% das ocupações são suscetíveis à automação e que 47% das ocupações nos EUA estavam em alto risco de automação nos próximos 10 a 20 anos. Três anos depois as estimativas indicavam que 57% dos empregos nos países da OCDE, 69% dos empregos na Índia e 77% dos empregos na China poderiam ser automatizados. Outros estudos mencionados no artigo constataram que as atividades tecnicamente automatizáveis afetam 1,2 bilhão de trabalhadores em todo o mundo e US$ 14,6 trilhões em salários, com China, Índia, Japão e EUA contribuindo para mais da metade desses números.
O impacto da digitalização nas CVGs também pode resultar de mudanças no comportamento do investimento estrangeiro realizados por EMNs, especialmente se os modelos de negócios com ativos estrangeiros “leves” se tornarem mais prevalentes para as multinacionais da economia digital e não digital. Para Brun, Gareffi e Zhan, à medida em que as empresas conseguem produzir competitivamente mais perto dos mercados de demanda final, ainda amplamente localizados no mundo desenvolvido, os incentivos para investir em ativos relacionados à produção no exterior diminuem.
No lugar de investimentos relacionados à produção das EMNs ou de seus fornecedores, outras formas de investimento podem, contudo, se tornar mais importantes para empresas com modelos de negócios com ativos “leves” no exterior, incluindo investimentos em busca de conhecimento e investimentos orientados às finanças e/ou às vantagens fiscais. Porém, essas formas de investimento estrangeiro se traduzem em menores impactos macroeconômicos benéficos para o país destinatário do que os investimentos de empresas-líderes ou de seus fornecedores em ativos físicos relacionados à produção.
Cenários possíveis para as CGVs na economia digital
Os autores discutem três possíveis cenários para o avanço das multinacionais da economia digital na governança das cadeias de valor. No primeiro cenário, o de complementariedade, as EMNs digitais criam, de forma considerável, novo valor adicionado na economia mundial, melhorando os níveis existentes de emprego e investimento entre as indústrias, mas não substituem as empresas líderes existentes. Nesse cenário, as novas empresas de economia digital criam novos produtos, novos empregos e novos investimentos, que ampliam a estrutura mundial de comércio, investimento e desenvolvimento existente desde a década de 1970.
No segundo cenário, o de deslocamento, as EMNs da economia digital perturbam os setores existentes, desafiando os modelos de negócios das principais empresas existentes. O deslocamento pode ser rápido ou gradual. Na versão de deslocamento rápido, a mudança tecnológica desafia o modelo de negócios da empresa líder incumbente, a tal ponto que ela não tem tempo para realizar as mudanças organizacionais necessárias para se adaptar.
Na versão de deslocamento gradual, as EMNs da economia digital se tornam o ponto de interconexão ou “hub digital” cada vez mais poderoso entre clientes, fabricantes e fornecedores, devido à sua capacidade de usar as tecnologias da indústria 4.0 para sincronizar compras, produção e entrega. Devido à sua capacidade de obter vendas externas com ativos reduzidos no exterior, as EMNs da economia digital nesse cenário acabam substituindo as empresas líderes “mais pesadas” existentes.
No terceiro cenário, o de adaptação, as tecnologias da indústria 4.0 são adotadas com sucesso pelas empresas líderes das CGVs de produtores e compradores existentes para melhorar a eficiência da produção. Nesse cenário, os ganhos de eficiência devido às tecnologias da indústria 4.0 são utilizados pelas empresas líderes para alcançar novos níveis de eficiência e competitividade.
Na avaliação dos autores, o cenário que emergirá como dominante é atualmente incerto, principalmente porque existem evidências para apoiar todos os três caminhos apontados anteriormente.
Por exemplo, em relação ao cenário de complementariedade, o estado atual do varejo nos Estados Unidos suporta tanto os modelos “clássicos” de negócios como o de comércio eletrônico. Os varejistas tradicionais, com lojas físicas, como a Sears, a JC Penney e os varejistas com descontos, como o Walmart, coexistem com sites de comércio eletrônico como a Amazon, embora haja dúvidas sobre suas capacidades de manter suas participações no mercado e nos lucros à luz dos desafios do comércio eletrônico a longo prazo.
Também existem evidências para o cenário de deslocamento. A rápida perturbação da posição de empresas existentes devido à digitalização ocorreu em vários setores, como exemplificado pela Kodak, Polaroid e Blockbuster. Nesses três casos, as mudanças tecnológicas rápidas prejudicaram os modelos de negócios dessas empresas. Sem tempo suficiente para se adaptar, essas empresas foram colocadas para fora dos negócios. Segundo Brun e outros, o principal desafio para as empresas líderes incumbentes é garantir que elas estejam na vanguarda da antecipação de mudanças disruptivas em tecnologia e no modelo de negócios, mantendo a liderança em tecnologias de mudança mais incrementais que provavelmente atrairão uma demanda mais imediata de produtos e serviços dos clientes.
Há igualmente evidências de deslocamento gradual de empresas líderes existentes pelas empresas de economia digital. Algumas grandes empresas de economia digital estão se expandindo agressivamente por meio de aquisições e desenvolvimento de produtos para se tornarem atores importantes em outras áreas da economia, obscurecendo as fronteiras tradicionais da indústria.
Por exemplo, a Apple está expandindo suas atividades para além de sua experiência principal em projetar, comercializar e vender dispositivos eletrônicos de consumo, visando se tornar uma empresa de mídia digital por meio da plataforma iTunes. Já a Alphabet, empresa controladora do Google, tem divisões em biotecnologia (Verily), pesquisa em inteligência artificial (Deepmind) e carros autônomos (Waymo).
Os autores ressaltam que uma dinâmica interessante do ponto de vista das cadeias de valor é que algumas dessas empresas digitais são novos fornecedores poderosos nas indústrias tradicionais e lideram empresas em seus próprios mercados principais.
Por exemplo, na indústria automobilística, o Google tem o seu sistema operacional Android adotado pela GM, Hyundai, Honda e Audi como parte da Open Automotive Alliance e da tecnologia de carros autônomos, devido à sua capacidade de integrar sensores, software e dados com o teste físico e desenvolvimento de produtos. Da mesma forma, a Uber está passando de uma empresa de transporte sob demanda para uma empresa de entrega de alimentos, além de desenvolver sua própria tecnologia de carro autônomo.
Ao mesmo tempo, os fabricantes de automóveis tradicionais estão investindo mais fortemente nas novas tecnologias que afetam a produção e o uso de seus produtos (tal como no cenário de adaptação). Fabricantes de automóveis tradicionais, como a GM, também estão entrando em novos mercados voltados para o consumidor, pois veem a mudança iminente de veículos autônomos e a concorrência de empresas de uso compartilhado, como a ZipCar, como uma oportunidade de mudar de um fornecedor de produtos para um fornecedor de capacidade. O que permanece incerto é quem assumirá a liderança desse mercado: se o fabricante automotivo tradicional (tal como GM ou Ford) ou se empresa da economia digital (como Uber, Lyft, ZipCar ou Google).
Em resumo, os autores consideram que a digitalização, em grande parte devido ao conjunto de tecnologias comumente referido como “indústria 4.0”, está mudando a fronteira entre as tarefas que podem ser executadas por máquinas e as que devem ser realizadas por humanos, modificando o funcionamento das cadeias de valor e desafiando o caráter extensivo da produção no espaço geográfico e a densidade de interações entre compradores e fornecedores.
Além de influenciar a decisão de onde e como os bens e serviços são produzidos na economia global, a mudança tecnológica em curso está permitindo a entrada das EMNs digitais de alta capacidade nos setores de manufatura e serviços. Essas empresas são únicas por operarem mercado externo com menos ativos físicos e funcionários, “leveza” que terá importantes implicações para o comércio exterior, investimento estrangeiro e desenvolvimento das regiões, à medida em se disseminar por outros setores da economia.