Carta IEDI
Reativação da demanda e os dilemas do pós Covid-19, segundo a Unctad
Esta Carta IEDI retoma a discussão sobre as ações necessárias para a recuperação econômica pós-pandemia. Edições anteriores abordaram, por exemplo, a visão do FMI (Carta n. 1043), da União Europeia (Carta n. 1039), do IPEA (Carta n. 1028) e de economistas de destaque internacional (Carta n. 1026). No documento “A Crise do Coronavírus e a Estratégia Industrial”, o IEDI se posicionou sobre as condições para uma trajetória de crescimento e desenvolvimento econômico e social do país.
Hoje, sintetizamos a visão da Unctad por meio do capítulo segundo de seu relatório Trade and Development 2020, em que construiu cenários alternativos para 2021 e para próxima década, a partir do exame de como as três principais fontes de crescimento da demanda agregada – gasto público, demanda privada e expansão das exportações líquidas – funcionaram na prática nos anos que antecederam a crise da Covid-19 (2018 e 2019).
O primeiro cenário, que levaria o mundo a uma “nova década perdida”, baseia-se na continuidade de políticas que já vinham sendo adotadas nos últimos anos e na oposição, considerada injustificável pela Unctad, à política fiscal proativa frente ao ciclo econômico. Caso se concretize, o crescimento anual do PIB mundial entre 2022 e 2030 seria de apenas +2%, isto é, 1/3 menor que a média de 2010-2019 (+3,1%).
No segundo cenário, que compreenderia uma recuperação sustentada, com crescimento médio do PIB global de +3,8% ao ano em 2022-2030, a Unctad pressupõe uma reorientação da política econômica e da arquitetura financeira internacional em prol do desenvolvimento e da estabilidade financeira. Neste cenário, nem no primeiro, esperam-se ondas adicionais de contágio de Covid-19 que justifiquem novos confinamentos totais.
Na avaliação da Unctad, o contexto atual resultante da Covid-19, caracterizado por desemprego em elevação, risco de falência de empresas, cadeias de fornecimento fragilizadas, confiança abalada, demanda fraca e níveis altos de endividamento público e privado, exige dos formuladores de política uma mudança de mentalidade e ações ousadas. Ou seja, seria tempo de um “novo normal” também na política econômica.
Nas últimas quatro décadas, segundo a Unctad, a política fiscal excessivamente orientada para a geração de superávits fiscais e redução da dívida pública, ao mesmo tempo em que se adotavam esquemas fiscais favoráveis a investidores estrangeiros, levou à corrosão das receitas do governo, ao rebaixamento dos salários e à redução da demanda interna.
Para o mundo como um todo, o resultado foi o enfraquecimento significativo da demanda global e a consequente desaceleração do crescimento econômico. Isso contribuiu para que a economia global se tornasse despreparada para enfrentar qualquer choque sério, em particular um da natureza e escala da Covid-19.
Para a Unctad, desta vez, é hora de aprender com os erros do passado. Na crise anterior, a ênfase na austeridade fiscal fez com que os países retirassem prematuramente os estímulos fiscais introduzidos em resposta à grande crise financeira internacional de 2008-09.
O receio da Unctad é que políticas que não incorporem os ensinamentos da última década possam desencadear novos choques adversos sobre o crescimento do PIB mundial, não apenas prejudicando a integral recuperação da crise da Covid-19, como também resultando em uma outra década perdida para a economia global.
Para os países em desenvolvimento, cuja capacidade de responder à crise sanitária e econômica da Covid-19 foi prejudicada por anos de políticas fiscais restritivas equivocadas, volumes insustentáveis de dívidas, altos níveis de informalidade e espaço político restrito pelas regras escolhidas para gerenciar a globalização, a ameaça de “década perdida” é ainda mais grave.
Na avaliação da Unctad, a reativação robusta do crescimento pós-crise da Covid-19 exige uma estratégia macroeconômica global sustentável que articule objetivos de médio prazo, tais como industrialização e desenvolvimento produtivo, inclusão, emprego, estabilidade financeira e, sobretudo, mitigação das mudanças climáticas.
No plano doméstico, serão essenciais o planejamento econômico e as políticas industriais, bem como os esforços para tornar o crescimento econômico mais inclusivo. No âmbito internacional, a coordenação de políticas será fundamental para a redução dos desequilíbrios financeiros e para a mitigação das mudanças climáticas.
Contudo, a Unctad defende que a prioridade imediata da política econômica é garantir uma recuperação efetiva da expansão econômica. Isso exige colocar as pessoas de volta no trabalho, restaurar o crescimento da renda e, ao mesmo tempo, garantir a reparação dos desequilíbrios financeiros deixados pela Covid-19, já que governos, empresas e famílias devem sair da crise mais endividados.
Assim, como já pontou o FMI, em razão dos seus fortes efeitos multiplicadores sobre a demanda agregada, o gasto do setor público é, também para a Unctad, o candidato óbvio para reativar, de forma sustentada, a capacidade produtiva global que hoje se encontra ociosa.
Para a Unctad, somente uma forte expansão fiscal pode reduzir rapidamente o desemprego, embora reconheça que para os países em desenvolvimento o recurso a tal instrumento seja mais complexo. A adoção de uma estratégia de mitigação das mudanças climáticas também é vista como meio de criação de empregos, mesmo considerando as perdas de vagas relacionadas à descarbonização da economia.
Além disso, a Unctad enfatiza também que esses estímulos fiscais devem ser mantidos enquanto durar o surto de Covid-19 e até que ocorra a plena recuperação da demanda do setor privado.
No caso de os governos incorrerem no mesmo erro da crise de 2008/2009 e optarem novamente por um aperto fiscal prematuro e à medida que as empresas adotarem estratégias de corte de custos, na busca de competitividade e da redução de suas dívidas, a recuperação da crise da Covid-19 provavelmente fracassará, alerta a Unctad.
Se assim ocorrer, uma nova recessão se tornaria uma possibilidade real em muitos países em 2022, ampliando os riscos de a economia mundial amargar uma nova década perdida.
O documento reconhece, contudo, que existem restrições em um caminho de crescimento impulsionado pela demanda. Uma delas é o elevado nível de endividamento, em particular do setor privado, tanto em países desenvolvidos quanto em desenvolvimento. Para as economias em desenvolvimento, também são importante o acesso a divisas e a capacidade industrial limitada.
Introdução
A Carta IEDI de hoje sumariza o capítulo 2 do relatório Trade and Development 2020, recém publicado pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad).
Nesse capítulo, intitulado “Demanda global e dilemas de crescimento após Covid-19”, os pesquisadores da Unctad discutem os desafios para a recuperação da economia em 2021, em um contexto de desemprego em elevação, risco de falência de empresas, cadeias de abastecimento fragilizadas, confiança abalada, demanda fraca e níveis altos de endividamento público e privado.
O estudo alerta que, nessa situação, medidas equivocadas de políticas, que não levem em consideração a experiência da última década, poderão desencadear novos choques que, além de prejudicar a recuperação, poderão resultar em uma outra década perdida para a economia mundial.
Segundo a Unctad, o mundo vive, desde a eclosão da grande crise financeira internacional de 2008-09, em um ciclo autoalimentado de demanda agregada fraca, baixo crescimento econômico e desigualdade crescente, que a deixou despreparada para enfrentar qualquer choque sério, em particular um da natureza e escala da Covid-19.
Para as economias em desenvolvimento, onde a capacidade de responder à crise sanitária e econômica da Covid-19 foi prejudicada por anos de austeridade combinada com volumes insustentáveis de dívidas, altos níveis de informalidade e espaço político restrito pelas regras escolhidas para gerenciar a globalização, essa ameaça é ainda maior.
Como será visto a seguir, após examinar como as três principais fontes de crescimento da demanda agregada __ gasto público, demanda privada e expansão das exportações líquidas __ funcionaram na prática nos anos de 2018 e 2019, os pesquisadores da Unctad constroem cenários alternativos para o ano de 2021 e para próxima década: o de nova década perdida e o de recuperação sustentada. Cabe ressaltar que nenhum dos dois cenários pressupõe uma segunda onda de contágio e a adoção de novos confinamentos totais.
Impulsionadores da Demanda Agregada
A pandemia da Covid-19 encontrou a economia mundial já em desaceleração em todas as regiões. O confinamento adotado para conter o espraiamento do contágio desencadeou uma série de choques de oferta, de demanda e financeiros simultâneos e mutuamente reforçados, resultando em recessão profunda, sobretudo, no mundo desenvolvido, e em contração do comércio internacional.
Porém, apesar de seu trágico custo humano, a Unctad ressalta que a capacidade global de produção não caiu substancialmente por causa da Covid-19, uma vez que não houve destruição da capacidade produtiva na extensão que as crises cíclicas costumam acarretar. Tampouco as habilidades e competências se tornam repentinamente redundantes em razão de uma mudança tecnológica profunda e permanente.
Há atualmente capacidade ociosa em muitos setores e dezenas de milhões de trabalhadores desempregados e subempregados em todo o mundo, o que oferece uma janela de oportunidade para a recuperação.
Embora o caminho para retomada seja incerto, os pesquisadores da Unctad consideram que a estrutura subjacente da demanda global é um bom guia para determinar a forma de qualquer recuperação possível no médio prazo.
Gasto governamental e posturas fiscais. Na avaliação da Unctad, o gasto do setor público, que tem fortes efeitos multiplicadores sobre a demanda agregada, seria o candidato óbvio para gerar um fluxo estável de receitas e demanda para reativar a capacidade produtiva global ociosa de forma sustentada.
Porém, em razão das prescrições macroeconômicas predominantes nas últimas quatro décadas, a política fiscal se orientou pela “austeridade”, o que se traduziu na busca excessiva de orçamentos fiscais equilibrados ou superavitários e na redução do endividamento do setor público.
No entanto, segundo a Unctad, outros aspectos macroeconômicos são importantes e precisam ser consideradas.
Em primeiro lugar, as opções de política fiscal para equilibrar o orçamento, seja corte de gasto, seja via aumento de impostos, ou de uma combinação de ambas, não são independentes de seu efeito geral sobre a economia. Qualquer uma dessas alternativas comprimirá a demanda agregada e reduzirá a receita do governo como consequência da atividade econômica mais fraca. Isso torna o equilíbrio fiscal um alvo móvel.
Em segundo lugar, o que importa para a sustentabilidade da dívida não é o nível da dívida em si, mas sua proporção em relação ao PIB. A ampliação do gasto público e seu efeito multiplicador subsequente para a demanda agregada permitem, de acordo com a Unctad, uma “expansão autofinanciável”.
Ou seja, os gastos públicos adicionais podem ser totalmente pagos a partir da combinação de aumentos moderados nos impostos e efeito mais forte da atividade econômica sobre a receita. Desse modo, maiores gastos podem resultar em uma menor proporção da dívida em relação ao PIB e não o contrário.
Em terceiro lugar, ressalta a Unctad, a capacidade do Estado em pagar o serviço de sua dívida, um estoque herdado, é independente de suas políticas fiscais e tributárias atuais. Em muitos casos, o serviço da dívida é simplesmente rolado, sem que haja qualquer impacto na demanda agregada. Porém, quando a dívida é paga com as receitas correntes, em geral por meio da redução dos gastos públicos, há um efeito prejudicial sobre a demanda agregada, o crescimento econômico e as receitas do governo, o que potencialmente conduz a um maior sobre-endividamento.
Os pesquisadores da Unctad salientam que, no atual contexto, posturas fiscais contracionistas não são opções válidas nem para os países desenvolvidos nem para os países em desenvolvimento. Contudo, destacam que o serviço da dívida é a única área em que as posições desses dois grupos de países diferem consideravelmente.
Nas economias desenvolvidas, onde a dívida pública é denominada em moeda nacional, e, portanto, não há risco de depreciação cambial, o governo pode incorrer em um déficit permanente. Isso porque, como a dívida pública é um ativo para o setor privado doméstico, a demanda por dívida pública, dinheiro e outros ativos cresce com o PIB à medida que o crescimento econômico aumenta a riqueza financeira.
Em resumo, nas economias desenvolvidas, exceto em circunstâncias excepcionais de limitações de oferta, não há restrições macrofinanceiras a uma postura fiscal expansionista, especialmente com taxas de juros baixas ou negativas, como as que vigoram desde a crise financeira internacional.
Em contraste, nos países em desenvolvimento, as restrições e os efeitos macroeconômicos líquidos são, todavia, bem mais complexos. Nesses países, o valor e o custo do serviço ou rolagem da dívida podem mudar rapidamente em função de alterações nas condições internacionais.
Flutuações nos valores dos reembolsos de serviços a credores externos ou escassez de receitas governamentais relacionadas com exportações podem aumentar o estoque da dívida dos países em desenvolvimento e tornar mais onerosas as futuras amortizações da dívida, neutralizando os efeitos positivos de uma eventual ampliação do gasto governamental.
Por essas razões, segundo a Unctad, os formuladores de políticas nos países em desenvolvimento tendem a ser mais cautelosos. Porém, uma postura fiscal contracionista afeta adversamente as fontes domésticas de crescimento, comprometendo o desenvolvimento socioeconômico. E ademais, quando ocorre realmente um choque externo, a economia tem menor capacidade reação, em virtude da debilidade relativa do setor público.
Demanda privada. De acordo com a Unctad, o crescimento insuficiente da demanda agregada devido à austeridade fiscal ou à formulação de políticas cautelosas poderia, em princípio, ser superado por um forte crescimento da demanda do setor privado na forma de gastos das famílias ou investimento empresarial.
Contudo, ainda que as fontes finais de financiamento do consumo e do investimento sejam as receitas e os lucros obtidos, as decisões privadas de gastos, tomadas com base em uma expectativa sobre as receitas futuras, não estão na alçada direta da política pública.
No passado, os formuladores de política buscavam influenciar essas decisões, direcionando crédito e promovendo o desenvolvimento industrial e a geração de emprego. Porém, ao longo das últimas quatro décadas, sob o paradigma da globalização, os formuladores de política deixaram de intervir nos mecanismos de criação de crédito, crescimento de salários e lucros e valorização de ativos. A criação do crédito privado foi deixada sozinha para sustentar a expansão dos gastos privado, que passaram a ser o principal motor do crescimento.
Na avaliação dos pesquisadores da Unctad, tanto nas economias desenvolvidas quanto nas em desenvolvimento, esse enfoque para o crescimento da demanda acarretou três problemas: instabilidade financeira, desigualdade de renda e riqueza, e letargia do investimento produtivo.
Com os Estados se abstendo de agir para coordenar as finanças e garantir o pleno emprego, a instabilidade financeira e as crises tornaram-se característica mais frequente das economias capitalistas.
Os desequilíbrios domésticos e internacionais, promovidos por um modelo que se baseia no aumento do endividamento do setor privado e de preservação de lucros, aprofundaram a instabilidade e aceleram a ocorrência de crises, cujos custos recaem sempre sobre o setor público e os assalariados.
As desigualdades de renda e riqueza foram, de acordo com a Unctad, um efeito imediato das políticas destinadas a promover o investimento. Tais políticas apoiaram a acumulação de lucro líquido e a valorização dos ativos, ao mesmo tempo em que debilitaram as relações trabalhistas.
Já o enfraquecimento dos investimentos produtivos decorre tanto da compressão da participação nos salários na renda, e consequentemente do crescimentos dos mercados consumidores, como das recompensas mais atraentes ao investimento financeiro nos mercados especulativos.
O achatamento dos salários, ao afetar a demanda das famílias, corroeu a expectativa dos empresários em gerar maior renda com o fornecimento de bens e serviços para consumo em massa.
Demanda externa líquida. Segundo a Unctad, embora um modelo de exportações líquidas, baseados em amplos acordos comerciais e de investimento, tenha sido agressivamente promovido após o aperto fiscal iniciado em 2010, essa recomendação apresenta caráter bastante problemático em âmbito global.
Dado que a economia mundial é um sistema fechado, nem todos os países podem ter superávits líquidos de exportação. Ou seja, para que alguns exportem outros necessariamente devem importar.
Porém, como vários países promoveram políticas que comprimiram os salários para reduzir custos unitários de produção e ganhar competitividade externa, o mundo passou a enfrentar uma armadilha deflacionária global.
Na busca de maior competividade externa, vários países também seguiram a recomendação de adotar esquemas fiscais favoráveis para investidores estrangeiros, potenciais portadores de avanços tecnológicos e acesso a mercados.
O efeito combinado da erosão da renda das famílias, pelo rebaixamento dos custos salariais, e das receitas do governo, devidos aos incentivos fiscais, foi a redução da demanda interna. Para o mundo como um todo, o resultado foi o enfraquecimento significativa da demanda global e consequente desaceleração do crescimento econômico.
Outro problema associado à recomendação de superávits líquidos de exportação reside no fato de que um superávit líquido equivale ao acúmulo de ativos externos, implicando em acúmulo de passivos externos em outro lugar.
À exceção é os Estados Unidos, que é o emissor da moeda-reserva internacional, os desequilíbrios externos são, na maior parte das vezes, problemáticos para os países devedores e credores.
Porém, os países em desenvolvimento devedores são os mais vulneráveis, pois, além de seu passivo externo ter custo mais elevado, sua dívida também está sujeita às flutuações das taxas de câmbio. Quando seus déficits externos se tornam insustentáveis, a única alternativa para o país devedor é a compressão da demanda interna.
Em resumo, na avaliação da Unctad, o crescimento impulsionado pelas exportações não é uma estratégia de crescimento viável para o mundo como um todo, e raramente o é mesmo para países individuais em uma economia mundial financeiramente integrada. Tal estratégia é uma receita para fragilidade financeira, crises e desigualdades crescentes.
O crescimento orientado às exportações também deprime a demanda global no médio prazo e desloca as estratégias de desenvolvimento, visto que economias relativamente menos bem-sucedidas devem destinar parcelas crescentes de sua receita ao serviço de passivos externos, ao mesmo tempo em que mantêm a demanda dos países exportadores.
Configuração da demanda pré-pandemia
Para analisar a estrutura da demanda pré-pandemia, os pesquisadores da Unctad copilaram dados da contabilidade nacional de todos os países do mundo para os quais havia informações completas disponíveis para os anos de 2018 e 2019. Na Tabela abaixo são apresentadas as taxas médias de crescimento calculadas para os países-membros do G20 individualmente e para resto do mundo, agrupados por sub-regiões.
A coluna [1] mostra, como uma referência de contribuições potenciais para o crescimento global da renda, as taxas de crescimento da renda nacional. A coluna [2] mostra a diferença entre o crescimento da demanda doméstica em relação ao crescimento da renda. Números positivos denotam que a economia está, em termos líquidos, injetando crescimento da demanda na economia mundial, tendo assim um efeito expansionista global líquido.
As colunas [3] e [4] comparam o crescimento da receita com o crescimento da demanda dos setores público e privado, respectivamente. Os resultados positivos indicam injeções líquidas e os negativos vazamentos.
Os dados da coluna [5] indicam se a economia está passando por mudanças estruturais no setor exportador. O indicador buscou estimar três elementos: (i) o grau de sucesso em ganhar participações no mercado de exportação, (ii) o grau de sucesso na substituição de importações, (iii) se a economia reduziu as importações ajustando a demanda doméstica em relação ao ritmo de demanda mundial.
A coluna [6] mostra este terceiro fator explicitamente, para verificar se o crescimento da demanda mundial é mais rápido (+) ou mais lento (-) do que o crescimento da absorção doméstica. Na coluna [7] é apresentado um índice que condensa as informações fornecidas nas colunas anteriores sobre a força e a origem do crescimento da demanda.
Os países foram organizados em quatro categorias, de acordo com suas contribuições líquidas para o crescimento da demanda global (coluna [2]) e o ritmo da absorção doméstica em relação ao mundo (coluna [6]):
•Posturas expansionistas globais absolutas. Casos da China e Indonésia, que não somente apresentam contribuição líquida positiva para o crescimento da demanda global, ao gastar em ritmo superior ao da renda auferida (valores positivos na coluna [2]), proporcionando assim demanda adicional e renda aos demais do mundo, como também injetam demanda líquida no resto do mundo em um ritmo mais rápido do que o crescimento da demanda mundial (valores negativos na coluna [6]).
• Apoiadores da demanda global de crescimento lento. Essa categoria inclui economias que também injetam crescimento líquido da demanda no resto do mundo, mas seu ritmo é mais lento do que o de seus parceiros (os valores na coluna [6] são positivos). Esses são os casos dos Estados Unidos, Brasil, Reino Unido, Rússia e Arábia Saudita, entre outros.
• Drenadores da demanda global de rápido crescimento. Essa categoria inclui países, como Índia, Malásia, Singapura, Tailândia, Argélia, Egito, Tunísia Georgia e Ucrânia, entre outros, nos quais, o crescimento da absorção doméstica é relativamente mais rápido do que o resto do mundo (valores negativos na coluna [6]), tal como no primeiro grupo, mas essa absorção não chega nem perto do crescimento de sua própria renda (valores negativos na coluna [2]). Essas economias exibem um padrão de gasto no qual seu crescimento de renda se beneficia da demanda adicional emergente das economias dos dois primeiros grupos, mas ao invés de aumentar a demanda global, é utilizado para acumular ativos financeiros externos (ou reduzir os seus passivos).
• Posturas deflacionárias globais absolutas. Nessa categoria foram classificados aqueles países que, além absorver o crescimento adicional da demanda como uma renda auferida transformada em algum tipo de ativo financeiro externo, registram um ritmo de crescimento da sua própria absorção abaixo do crescimento médio do resto do mundo (combinam os valores negativos na coluna [2] e valores positivos na coluna [6]). Essa categoria inclui, entre outros, países como Turquia, Austrália, Coreia do Sul, Japão, França, Alemanha, México e Itália.
De acordo com a Unctad, os resultados encontrados indicam que o período prévio ao choque da Covid-19 é caracterizado por uma estrutura prejudicada da demanda global. A maioria dos países desenvolvidos não conseguiu impulsionar a demanda global, em grande parte devido à adoção de uma postura fiscal contracionista.
Apenas um conjunto de poucas economias emergentes estava em condições de sustentar o crescimento da demanda acima da média global graças, em grande parte, a mudanças complementares na estrutura de suas economias.
Nos últimos dois anos, a estrutura da demanda global dependeu principalmente das contribuições líquidas dos países em desenvolvimento para o crescimento. Tal situação não é sustentável, segundo a Unctad, pois, precisamente nestas economias, as condições financeiras são cada vez mais instáveis e os governos enfrentam pressões crescentes, resultando em “espaços de política” mais estreitos.
Essa estrutura da demanda global é, segundo a Unctad, uma das duas principais fontes de ameaça para a recuperação da economia mundial após a pandemia da Covid-19, como será visto a seguir.
Ameaças à Recuperação e o Cenário de Década Perdida
Na interpretação da Unctad, há duas importantes fontes de ameaças para a recuperação da economia mundial, passado o choque inicial da crise econômica e sanitária da Covid-19.
Uma dessas ameaças reside, tal como já assinalado anteriormente, na estrutura deficiente da demanda global, cujo crescimento nos últimos dois anos dependeu quase que exclusivamente das contribuições líquidas dos países em desenvolvimento.
Nesse contexto, se as forças necessárias para lançar uma reativação da demanda global não forem fortes ou suficiente, ou pior ainda, se forem contrárias, as principais vítimas podem ser as empresas de pequeno e médio porte, que operam nos setores informais em economias em desenvolvimento e, cada vez mais, nas economias desenvolvidas, os trabalhadores autônomos e, em última instância, os trabalhadores comuns.
A outra fonte de ameaça à reativação econômica é a extensão das falências das empresas e seus efeitos adversos sobre o sistema financeiro por meio de inadimplências e balanços patrimoniais em colapso.
Dada a magnitude do endividamento corporativo nas economias desenvolvidas e em desenvolvimento, que no final de 2019 já havia atingindo níveis alarmantes, a Unctad considera quase impossível fazer uma previsão precisa acerca do alcance desse problema.
Nessas condições e dada as tendências reforçadas por décadas de política de laissez-faire e, em particular, de uma oposição injustificável à política fiscal proativa, os pesquisadores da Unctad traçam um cenário macroeconômico hipotético, mas plausível, de mais uma década perdida.
As suposições se baseiam nas experiências atuais e passadas, e levam em consideração as condições deixadas pelo choque da Covid-19 sobre a situação do emprego, geração de renda e finanças dos setores público e privado.
As estimativas para os anos de 2020, 2021 e as projeções para 2030 foram calculadas com utilização do Modelo de Política Global das Nações Unidas (GPM). Esse modelo de stock-flow da economia mundial foi desagregado para destacar os países membros do G20 e dez outros grupos com os demais países do mundo.
Esse cenário de referência pressupõe um certo grau de austeridade fiscal, especialmente no período 2021 a 2023. Para o resto da década, assume-se que a força das injeções líquidas do setor governamental será contida, com o objetivo de reduzir o peso da dívida pública.
Os principais indicadores do cenário de nova “década perdida” são apresentados na Tabela abaixo para os países agrupados nas seguintes categorias: economias desenvolvidas, com déficit ou superávit em conta corrente, e emergentes, com déficit em conta corrente, exportadoras líquidas de energia e com superávit em conta corrente.
Neste cenário de nova “década perdida”, o desempenho esperado do crescimento de médio prazo, para o mundo como um todo e para a maioria das economias individualmente, mostra uma desaceleração perceptível em relação à década 2010-2019. Em média, as taxas de crescimento do PIB serão um terço abaixo das experimentadas após a grande crise financeira internacional.
Os pesquisadores da Unctad ressaltam que, nesse contexto de crescimento fraco, a maioria das economias não apenas registrará melhorias decepcionantes em bem-estar, renda, capacidade produtiva e emprego, como enfrentará ameaças e vulnerabilidades contínuas. Isto porque os saldos financeiros não evoluirão na medida necessária para evitar choques e riscos financeiros.
Com exceção das economias emergentes com superávits em conta corrente, grupo que inclui a China e demais países do Leste da Ásia (exceto Coreia do Sul, classificada como economia desenvolvida), todas as demais registrarão crescimento débil na formação bruta de capital fixo privado. Esse resultado, já esperado, decorre o crescimento lento do produto e da combinação da austeridade fiscal, com desemprego e renda familiar relativamente mais baixa.
Nas economias desenvolvidas deficitárias, a desalavancagem das famílias seria um dos fatores explicativos do fraco investimento privado. Muito embora, nessas economias, a criação de liquidez poderia sustentar um boom de consumo. Já para economias emergentes deficitárias, entretanto, o fraco investimento seria resultado tanto dos padrões de desindustrialização quanto de restrições do balanço de pagamentos.
No que se refere ao crescimento dos gastos do governo, refletindo as premissas adotadas e os mecanismos endógenos em jogo, os resultados indicam taxas médias negativas de crescimento dos gastos do setor público em economias desenvolvidas tanto com déficit quanto com superávit em conta corrente.
Já nas economias emergentes, o ritmo de desaceleração dos gastos do governo seria menor e menos prejudicial ao crescimento econômico, e responderia, pelo menos em parte, à preocupação com os elevados encargos da dívida, mais onerosos que o das economias desenvolvidas.
Segundo a Unctad, nas economias emergentes superavitárias, haveria uma desaceleração mais vigorosa dos gastos públicos, em razão de uma estratégia que visa encorajar mais investimentos privados nas unidades exportadoras, como é o caso das economias do Leste da Ásia, e da mudança para o consumo interno no caso da China.
Essas economias, que não experimentaram um colapso severo do crescimento devido ao choque da Covid-19, desfrutam de relativamente mais espaço político para projetar suas estratégias de políticas baseadas na demanda.
No cenário de “década perdida”, as taxas de desemprego permanecerão elevadas, principalmente devido ao crescimento evidentemente fraco da atividade econômica, às baixas taxas de investimento e, para as economias em desenvolvimento, à tendência à desindustrialização. Nenhuma suposição feita neste cenário sugere que haverá ênfase no apoio à criação de empregos.
Isso se deve ao fato de que na história recente, de acordo com a Unctad, os formuladores de política preocupados com o alto desemprego priorizam as medidas do lado da oferta. Contudo, como já assinalado, as políticas de promoção do investimento, criação de empregos e atividade econômica centradas na proteção do lucro, redução de impostos e subsídios não se mostraram ineficazes.
Em conjunto com a promoção de estratégias orientadas para a exportação para gerar demanda, essas políticas arrastam a renda salarial para baixo. Além disso, a expectativa de sucesso de uma retomada do crescimento impulsionada pela exportação, na medida em que se espalha pelo mundo, desencadeia uma competição que tende a comprimir os salários em escala global.
A tendência geral na maioria dos países, com poucas exceções, é manter a demanda salarial baixa e ao mesmo tempo proteger os lucros, com o objetivo de obter vantagem competitiva nos mercados mundiais e atrair investimentos estrangeiros.
Nesse cenário, a participação salarial na renda das economias desenvolvidas acabará se aproximando dos níveis das economias emergentes, enquanto os das economias emergentes serão sucessivamente menores.
No que se refere ao desempenho da conta corrente, o cenário projetado indica também a continuidade de tendências passadas. Isso se deve ao fato de que nem todas as estratégias de ampliação das participações no mercado de exportação serão bem-sucedidas.
No entanto, os pesquisadores da Unctad salientam que a melhoria dos superávits em conta corrente para alguns, e as correspondentes deteriorações dos déficits em conta corrente para outros, será relativamente pequena ao longo do cenário de uma década.
Isso porque em uma economia mundial caracterizada pelo crescimento lento da atividade econômica global, o espaço para ganhos e perdas por meio do setor externo é limitado pelo fraco crescimento da demanda agregada geral em todos os parceiros e, mais especificamente, pela tendência de compressão da renda dos salários associada à disputa por competitividade externa.
Embora possível e provável, esse cenário de década perdida não é inevitável. Na opinião da Unctad, se políticas adequadas forem adotadas, a economia mundial se beneficiará de uma retomada sustentada, como será visto a seguir.
Políticas para evitar uma Nova Década Perdida
Na avaliação da Unctad, a reativação robusta do crescimento pós crise da Covid-19 exige uma estratégia macroeconômica global sustentável, que considere objetivos de médio prazo, tais como industrialização e desenvolvimento, inclusão, emprego, estabilidade financeira e, sobretudo, mitigação das mudanças climáticas. Todavia, algumas preocupações exigem uma resposta rápida dos formuladores de política.
A prioridade imediata da política econômica deve ser, segundo a Unctad, garantir uma recuperação efetiva da expansão econômica. Isso exige colocar as pessoas de volta no trabalho, restaurar o crescimento da renda e, ao mesmo tempo, garantir a reparação dos desequilíbrios financeiros deixados pelo choque da Covid-19.
De acordo com a Unctad, é essencial que o setor público assuma a iniciativa de ampliar os gastos para estimular a demanda. Só uma forte expansão fiscal pode reduzir o desemprego com rapidez suficiente para evitar danos permanentes aos trabalhadores e esse estímulo só pode ser reduzido, gradualmente, quando a demanda do setor privado já tiver se recuperado.
Os pesquisadores da Unctad consideram que a adoção de uma estratégia de mitigação das mudanças climáticas também contribuiria para a necessária criação de empregos. Tanto a mudança da produção para energias renováveis como as melhorias na eficiência energética podem levar ao crescimento líquido do emprego, mesmo considerando as perdas de empregos relacionadas à descarbonização da economia.
Os esforços nessa direção exigem, contudo, coordenação internacional. Investimentos internacionais e transferências de tecnologia do Norte para Sul são necessários para transformar a demanda e a oferta de energia de acordo com as metas globais de mitigação das mudanças climáticas.
Em particular, as economias em desenvolvimento exportadoras de energia devem receber apoio financeiro e tecnológico para elevar, de forma significativa, seus investimentos em eficiência energética e produção de energia renováveis.
Na avaliação da Unctad, a retomada do crescimento da economia mundial consistente com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) requer atenção simultânea a três bens públicos globais: proteção ambiental, desenvolvimento econômico de todas as nações e estabilidade financeira.
Um forte apoio à demanda doméstica em países com superávit em conta corrente é necessário para colocar a economia mundial em uma trajetória de crescimento sustentável e robusto, ao mesmo tempo em que promove a industrialização no mundo em desenvolvimento.
Combinações de apoio financeiro, transferência de tecnologia e, especialmente, ampliação do acesso aos mercados e injeções de demanda agregada podem atingir esse objetivo, que se traduziria na diminuição dos desequilíbrios financeiros externos.
Nessas circunstâncias, as economias avançadas superavitárias reduziriam seus desequilíbrios ao confiar mais fortemente no crescimento mais rápido da demanda doméstica. O esforço complementar para apoiar a industrialização das economias emergentes atuaria na mesma direção. Já as economias desenvolvidas deficitárias reduziriam seus déficits, sem, contudo, eliminá-los.
Cenário de reativação econômica
No cenário de reativação econômica robusta proposto pela Unctad, os principais motores do crescimento são o investimento privado e os gastos do setor público em bens e serviços (incluindo transição para matriz energética de baixo carbono).
A combinação de demanda do setor público e impulso de investimento privado é projetada para melhorar o fornecimento de infraestrutura, inovação e investimentos verdes no setor de energia, o que trará uma geração significativa de empregos líquida.
As estimativas e projeções realizadas pelos pesquisadores da Unctad para esse cenário de reativação de crescimento, no qual a arquitetura financeira internacional atua em prol do desenvolvimento e da estabilidade, são apresentadas na Tabela abaixo.
Os ganhos de crescimento do PIB na comparação com o cenário da “década perdida”, utilizado como referência, são consideráveis para o mundo como um todo. O mesmo ocorre para os quatro primeiros grupos de economias.
Ao promover o aumento sustentado do produto, a rápida ampliação dos gastos governamentais não acarretaria na elevação dos gastos como proporção do PIB, que se manteriam próximo aos níveis do cenário-base de austeridade. Já os coeficientes da dívida do setor público para o mundo como um todo cairiam em relação aos experimentados em 2021, e seriam consideravelmente mais baixos do que os do cenário da “década perdida”. Nas economias desenvolvidas, no entanto, esses coeficientes permaneceriam acima de 100% do PIB.
O cenário de reativação também considera, segundo a Unctad, os esforços decisivos de política para tornar o crescimento econômico mais inclusivo.
Isso inclui leis de salário mínimo, promoção da regularização de contratos de trabalho e benefícios sociais, proteção dos direitos trabalhistas, incluindo a formação de sindicatos, e a prestação de serviços de atendimento e outras medidas que contribuam para a igualdade de gênero no local de trabalho. Haveria melhorias não desprezíveis em termos de aumento da participação salarial na renda.
Para concretizar essas possibilidades indicadas no cenário de reativação sustentada do crescimento, a Unctad defende: o restabelecimento do papel proativo da política fiscal; a regulação do poder corporativo em troca de uma fonte contínua e estável de prosperidade; a reinvenção dos instrumentos de crédito para sustentar a produção, coibindo a especulação; e assegurar emprego e remunerações justas.