Carta IEDI
A regressão industrial a curto e longo prazo
A pandemia de Covid-19 impactou negativamente a atividade econômica do Brasil e do mundo em 2020. O choque foi sentido de diversas formas em todas as atividades econômicas – lockdowns, suspensão de atividades menos essenciais e interrupção das cadeias internacionais de suprimento –, inclusive na indústria de transformação.
Os países adotaram pacotes robustos de medidas fiscais, monetárias e sanitárias almejando manter empregos e sustentar uma demanda mínima, mantendo os mercados funcionando e evitando falências em série.
As respostas econômicas, embora na direção certa, não conseguiram, entretanto, evitar que a crise econômica da Covid-19 fosse a mais grave em cem anos, provocando perdas substanciais do PIB total e da indústria em diversos países.
O Brasil não foi uma exceção, como tem mostrado vários estudos do IEDI nos últimos meses, ainda que o quadro não tenha sido tão catastrófico como muitos esperavam no início da pandemia.
Esta Carta IEDI avalia o desempenho da atividade manufatureira do Brasil e do mundo em 2020, estimando o impacto da Covid-19 na queda de participação relativa da indústria na estrutura produtiva do país, pelo qual temos passado nas últimas décadas. Deste modo, atualiza muitos dados da Carta IEDI n. 940 “Um ponto fora da curva”, de 02/08/2019, que já havia mostrado que a retração industrial do Brasil é prematura e uma das mais intensas do mundo.
No presente estudo, foi contrastada a evolução da indústria no Brasil vis-à-vis à do restante do mundo. Isso porque, diferentemente do caso brasileiro, até a pandemia ocorrer, a indústria mundial não só não vinha apresentando perda de participação no PIB global, como na verdade dava sinais de elevação. Ou seja, o retrocesso industrial não é um fenômeno visto em toda parte.
Em 2020, embora o PIB da manufatura tenha caído muito no Brasil, chegando a -4,3%, segundo o IBGE, foi menos do que no restante do mundo (-8,4%). As razões disso incluem a adoção de medidas emergenciais eficazes, a exemplo do auxílio pago às famílias, que somou 4,0% do PIB e contemplou 67,8 milhões de pessoas ou 45% dos lares brasileiros.
Mas também há outros fatores menos nobres, como o fato de não termos conseguido implementar períodos de lockdown tão rígidos quanto em outros países para evitar o espalhamento do coronavírus, e o timing distinto da pandemia no mundo, com a segunda onda da Covid-19 vindo ocorrer no Brasil só em 2021, mas em outros países, como os europeus, ainda em 2020.
No Brasil, como a indústria caiu em linha com o PIB total (-4,1%), sua participação pouco se alterou, mas ainda assim não estancou o retrocesso da manufatura em nossa estrutura produtiva, que passou de 11,92% do PIB em 2019 para 11,88% do PIB em 2020 a preços constantes de 2015.
No âmbito mundial, devido à crise da Covid-19, a participação da indústria no PIB recuou de 17,25% para 16,56% entre 2019 e 2020, a preços constantes de 2015, interrompendo uma trajetória de moderada elevação desde os anos 1990, ensejada pela industrialização chinesa.
Se for considerado o total mundial exceto China, o declínio industrial foi mais acentuado, passando de 14,81% do PIB em 2019 para 13,97% em 2020, também a preços constantes de 2015.
A despeito do recuo menos intenso da indústria brasileira em 2020, para melhor compreensão do quadro industrial do país, os efeitos da pandemia devem ser inseridos em uma trajetória de longo prazo.
Em 1980, o Brasil apresentava um grau de industrialização superior ao total mundial, isto é, a manufatura respondia por uma parcela de nosso PIB de 21,1%, superior aos 15,6% da média mundial. Em 2020, a situação se inverteu e, como vimos anteriormente, esta participação no Brasil ficou 4,7 p.p. abaixo da média global e 2,1 p.p. abaixo se excluirmos a China do agregado mundial.
Se olhar para trás não serve de alento, para frente também não traz sinais promissores. Os últimos dados do PIB brasileiro mostram crescimento de +1,2% para o PIB total no 1º trim/21, mas declínio de -0,5% da indústria de transformação. Com isso, a parcela da manufatura recuou novamente, para 11,5% do PIB neste início de ano, quando comparado ao resultado de 2020 como um todo.
É um retrocesso industrial quase contínuo nas últimas décadas que está levando a manufatura a contribuir diretamente com um décimo do PIB. Cabe lembrar, contudo, que direta e indiretamente, os produtos industriais continuam a apresentar uma contribuição muito acima de qualquer outro setor da economia em termos de ramificações produtivas (conexão com múltiplos setores), gastos com atividades tecnológicas e arrecadação tributária.
Indústria em 2020: continuidade do retrocesso industrial
A pandemia do COVID-19 tem impactado negativamente a atividade econômica do mundo inteiro, direta ou indiretamente. Países adotaram várias medidas para conter o movimento das pessoas e a dispersão do vírus, como lockdowns, fechamento de escolas e suspensão de atividades menos essenciais tais como turismo, comércio (lojas, bares, restaurantes e shoppings) e serviços pessoais. Essas medidas reduziram profundamente a demanda dos países e os fluxos do comércio internacional. Com a menor demanda interna e externa, a indústria desacelerou-se.
No Brasil há o agravante da ausência de planejamento nacional para combater a pandemia. As sucessivas trocas de ministros da saúde, desde o início da pandemia, têm enfraquecido a estratégia de enfretamento da pandemia. Com 2,7% da população mundial, o Brasil responde por 10% dos casos confirmados e 12% das mortes por Covid-19. São dados que mostram que a pandemia impactou e continua impactando profundamente a sociedade e a atividade produtiva.
O gráfico a seguir mostra uma série de 74 anos do produto manufatureiro do Brasil. Os anos finais da série mostram que a indústria ainda não havia recuperado o pico recente de produção industrial obtido em 2013. A pandemia atingiu a indústria com significativa capacidade produtiva ociosa devido as perdas industriais de 2014-2016 e a crise político-institucional aguda de 2015 e 2016. Apesar da recuperação no triênio 2017-2019, o produto manufatureiro em 2019 ainda era 14% inferior ao de 2013.
Em 2020, a manufatura recuou -4,3% em relação a 2019. Esse recuo superou o da economia total em 0,3 ponto percentual conforme exibe a tabela a seguir. Com isso, a parcela da manufatura no PIB a preços constantes de 2015 diminuiu marginalmente entre 2019 e 2020 de 11,92% para 11,88%. A maior diminuição ocorreu na parcela da manufatura a preços correntes, de 11,79% para 11,30% no mesmo período.
A diferença entre a parcela da manufatura no PIB mensurada a preços correntes e a preços constantes é a inflação setorial – entre a manufatura e a economia total –, que é eliminada na série a preços constantes. Em 2020, a inflação da manufatura foi menor que da economia total (1,2% contra 5,2%), por isso, a manufatura perdeu mais peso no PIB na série mensurada a preços correntes.
A perda de peso no PIB da manufatura brasileira já é bem conhecida, conforme abordado em outros trabalhos do IEDI (ver Cartas IEDI No 920 e 940). A parcela da manufatura – mensurada a preços correntes ou constantes – vem diminuindo consistentemente desde a década de 1980, conforme mostra o gráfico a seguir. É um retrocesso quase contínuo que está levando a manufatura a contribuir diretamente com um décimo do PIB.
Direta e indiretamente, os produtos industriais continuam a apresentar um desempenho muito acima de qualquer outro setor da economia em termos de ramificações produtivas (conexão com múltiplos setores), gastos com atividades tecnológicas e arrecadação tributária.
Em 2020, já era esperado uma taxa de crescimento da manufatura menor que da economia total, pois a indústria produz bens elásticos em relação à renda, ou seja, que tendem a retrair mais nos períodos de crises – como na Crise Financeira de 2008. Em 2009, o peso da manufatura diminuiu a preços correntes e a preços constantes, respectivamente, -1,25 e -1,42 ponto percentual (p.p.) do PIB. Em 2020, a diminuição foi de -0,04 e -0,49 p.p. do PIB.
Na crise atual, foi empregado o “aprendizado” da Crise Financeira de 2008 com reedição de políticas monetárias e creditícias e a e implementação de várias políticas fiscais similares ou inéditas, como a introdução de um abrangente programa de renda mínima – o auxílio emergencial pago às famílias.
Em 2020, o auxílio emergencial custou aproximadamente 4,0% do PIB e alcançou 67,8 milhões de pessoas. Cerca de 45% dos lares brasileiros receberam o auxílio emergencial nos meses de crise mais severa no ano passado. O programa de ajuda foi vital para manter uma demanda mínima e funcionamento dos mercados, reduzindo a incerteza e beneficiando indiretamente as atividades produtivas de bens e serviços de consumo, sobretudo a indústria de transformação. Com isso, o impacto sobre a manufatura não foi tão menor que aquele no restante da economia, apesar de significativo.
Peso da manufatura no PIB nas últimas 5 décadas: economia mundial e Brasil
Na comparação com a economia mundial ou com o mundo excluído a China, a parcela da manufatura no PIB do Brasil teve uma performance melhor em 2020. Em 2020, a manufatura mundial encolheu -0,69 p.p., passando de 17,25% para 16,56% do PIB a preços constantes de 2015 conforme mostram as figuras abaixo. Na última crise global, a manufatura mundial havia perdido -0,80 p.p. do PIB (passou de 16,76% para 15,96% do PIB entre 2008 e 2009).
Embora a crise pandêmica de 2020 tenha sido mais grave que a anterior, os países adotam pacotes mais robustos de estímulos fiscais e monetários. Com isso, a parcela da manufatura no PIB reduziu-se menos na crise atual, tanto na economia mundial quanto no Brasil.
O desempenho da manufatura brasileira foi bem inferior ao PIB nas duas últimas crises mundiais, mas foi menos intensa agora na pandemia de 2020. O valor adicionado da manufatura e da economia total do Brasil (ambos a preços básicos) caíram, respectivamente, -9,3% e -0,1% na crise de 2008 e -4,3% e -3,9% na crise pandêmica. Ou seja, o setor industrial sofreu mais na crise de 2008 que na crise atual e o contrário ocorreu com o PIB.
Note que em 2008 a economia brasileira vinha embalada (ao contrário da crise atual) com um crescimento de 4,7% do PIB e 4,1% da manufatura, portanto, a queda da indústria em 2008 foi ainda mais abrupta. O auxílio emergencial pode ter sido fator importante que evitou uma queda maior da indústria em 2020.
Como a China industrializou-se num ritmo muito intenso nas últimas décadas, sendo atualmente o maior parque industrial do planeta, foi criada a região “Mundo sem China” para avaliar o grau de industrialização – isto é, parcela da manufatura no PIB – do mundo sem a influência desse país.
Note que a parcela da manufatura do mundo sem a China reduziu-se em -0,84 p.p. do PIB em 2020, enquanto a queda para mundo (com China) foi de -0,69 p.p. do PIB. Essa diferença de 0,15 p.p. do PIB deve-se exclusivamente a China. Logo, o efeito China amenizou a redução da manufatura no PIB mundial em cerca de um quinto.
Devido ao crescimento expressivo acumulado nas últimas três décadas do século XX, a economia chinesa tem influenciado crescentemente a economia global. Nas últimas cinco décadas a produção industrial chinesa cresceu cerca de 10% ao ano. Muitos países, principalmente Estados Unidos, transferiram plantas industriais de diversos setores produtivos para a China.
Atualmente, além de deter o maior parque industrial do planeta, a China é líder nas exportações manufatureiras, deixando para trás Estados Unidos, Japão e Alemanha que ocuparam as primeiras três posições nas últimas décadas. Tamanho gigantismo faz da economia chinesa um caso à parte, capaz de elevar o grau de industrialização da economia mundial.
Com a China ganhando maior dimensão na economia mundial, sobretudo a partir de 1990, sua capacidade de influenciar o grau de industrialização da economia mundial vem aumentando paulatinamente. O grau de industrialização do mundo sem a China diminuiu de aproximadamente 16% nos anos iniciais para 14,4% do PIB em 1993 – recuperando parte dessa diminuição ao obter 14,8% do PIB em 2019. No entanto, quando se inclui a China, o grau de industrialização da economia mundial aumenta nas últimas cinco décadas alcançando 17,2% do PIB em 2019.
Até início dos anos 1990 o grau de industrialização do mundo com ou sem China eram semelhantes, como mostraram as figuras acima. Após esse período, há um notável aumento no grau de industrialização da economia mundial de 2,4 p.p. até 2019, passando para 2,6 p.p. em 2020. Portanto, a China tem aumentado o grau de industrialização da economia mundial em 2,6 p.p. – isso equivale a um grau de industrialização 19% maior.
Os Gráficos anteriores mostram um profundo retrocesso industrial do Brasil que começou desde os anos 1980. Entre 1980 e 2020, a parcela da manufatura no PIB do Brasil a preços de 2015 recou de 21,1% para 11,9% do PIB, ou seja, reduziu-se 9,2 p.p. do PIB (ou 43,8%).
A Carta IEDI No 940 já havia mostrado que a retração industrial do Brasil é uma das maiores do mundo e a maior entre os países em desenvolvimento. Quando se compara a série do Brasil com a mundial nota-se um movimento antagônico. Por um lado, há um mergulho profundo da manufatura brasileira e, por outro, expansão (industrialização) na economia mundial, conforme mostra o Gráfico 3.
O grau de industrialização do Brasil costumava ser superior ao do mundo. Em 1976 e novamente em 1980 registraram-se os maiores picos, quando o grau de industrialização brasileiro superou o mundial em 5,6 p.p.. Contudo, desde 1981 essa diferença vem se reduzindo praticamente ano a ano.
Desde o início do século XXI, o grau de industrialização brasileiro tem sido menor que da economia mundial e essa diferença vem aumentando. Em síntese, é um retrocesso de longo prazo que reforça a tese de que se trata de um problema estrutural com vários componentes – entre eles o Custo Brasil – e não circunscrito a apenas um Governo.
As Tabelas a seguir mostram a evolução real do valor adicionado bruto (VAB) da manufatura e do grau de industrialização para o mundo, mundo sem China, Brasil, China e Estados Unidos entre os anos de 1980, 2008, 2014 e 2020. A escolha dos anos seguiu os seguintes critérios: 1980 foi o pico da industrialização brasileira, 2008 houve a crise internacional, 2014 marca o fim de um ciclo de crescimento moderado iniciado em 2004 no Brasil e antecede a profunda crise de 2015-2016, já 2020 é o último ano disponível.
A China foi considerada por se tratar da potência industrial emergente e os Estados Unidos, por se tratarem da maior economia avançada – em geral, o ritmo de crescimento industrial das economias avançadas é menor que aquele das em desenvolvimento.
No período 1980-2008, o crescimento real do VAB manufatureiro foi de 147,4% para o mundo, 107,8% para o mundo sem China, 128,3% para os Estados Unidos, 44,5% para o Brasil e a manufatura chinesa aumentou quase 20 vezes. A taxa de crescimento do VAB do Brasil foi apenas 30% da mundial, 41% da mundial sem a China, 35% da dos Estados Unidos e 2,2% da obtida pela China.
O grau de industrialização brasileiro no período retrocedeu -26,5%. Além do Brasil, apenas o mundo sem China teve diminuição no grau de industrialização (de -0,5%). O grau de industrialização mundial aumentou 7,9%, o americano 8,3% e o chinês 51,9%.
No período de 2008 a 2014, o Brasil teve desempenho inferior tanto no grau de industrialização quanto na evolução real do VAB manufatureiro para os países e regiões avaliados. Isso se repetiu para o período 2014 a 2020, com exceção do grau de industrialização dos Estados Unidos, em que ambos tiveram performance negativa, porém a brasileira foi ligeiramente menos ruim. Isso se deve ao maior efeito da crise de 2020 sobre os Estados Unidos, em que o percentual da manufatura no PIB diminuiu de 11,48% para 10,61% entre 2019 e 2020 enquanto no Brasil, como vimos, caiu de 11,92% para 11,88%.
A evolução real do VAB manufatureiro do Brasil no período 1980-2020 foi de 21,3% (ou 0,47% anual); quando se compara com outros países e regiões nota-se que o VAB da economia mundial evoluiu num ritmo 10 vezes mais acelerado que o do Brasil, o mundo sem China cresceu 5,6 vezes mais rápido, os Estados Unidos progrediram 5,7 vezes mais acelerado e a China se expandiu 2,16 centenas de vezes mais veloz que o Brasil.
Quando se compara com o crescimento da população brasileira, nota-se que a expansão industrial brasileira foi fraca. Entre 1980 e 2020, a população do Brasil aumentou 74% (crescimento anual de 1,36%), quase 3 vezes maior que a expansão real do VAB manufatureiro. Quando se observa o grau de industrialização no período de 1980 a 2020, fica realçado a pífia performance da manufatura brasileira no contexto internacional e que o Brasil está ficando para trás.
O progresso na industrialização é considerado a chave para alcançar maiores taxas de crescimento do PIB e níveis elevados de desenvolvimento. A manufatura possui longas cadeias produtivas capazes de carregar o crescimento de toda a economia à medida que ela cresce.
Ela também é o setor da economia que mais gasta com pesquisa e desenvolvimento (P&D) com a finalidade de gerar inovações, desde as mais simples como um sapato mais confortável até as mais sofisticadas como smartphones, medicamentos e drones. São as inovações que transformam qualitativamente uma sociedade.
Entre várias outras características notáveis da manufatura no Brasil, já realçadas muitas vezes pelo IEDI, os produtos industriais também contribuem com cerca de 30% da arrecadação tributária e poderiam contribuir mais com a inovação se parcela expressiva dos insumos e componentes tecnológicos não fossem importados, conforme exibido na Carta IEDI No 929. Devido a essas características promissoras ao desenvolvimento, o retrocesso industrial brasileiro é ruim para toda a sociedade.
Como veremos a seguir, a redução da parcela industrial do Brasil ocorre com incrementos limitados de PIB per capita quando comparado a países avançados – como os Estados Unidos – em que a manufatura foi central para levar a um elevado padrão de vida.
Manufatura e evolução do PIB per capita no longo prazo
Existe um padrão documentado na literatura econômica sobre a participação da manufatura no PIB e a renda per capita dos países, que se relacionam na forma de “U invertido”. Isso significa que a parcela da indústria de transformação tende primeiro a aumentar e depois a cair à medida que a renda per capita se eleva, assim, geralmente segue uma trajetória exibida a seguir.
A parcela da manufatura aumenta quando o país se encontra em níveis baixos de PIB per capita até atingir o pico de aproximadamente 25% do PIB na série mensurada a preços correntes. Neste pico, a renda per capita alcança um patamar de US$ 20 mil (em PPC de 2017), nível em que o país começa a reduzir a parcela da manufatura no PIB. Portanto, é esperado que a sequência de um país seja se industrializar e, a partir desse nível, se desindustrializar. Na série mensurada a preços constantes, a parcela industrial só começa a cair após o país superar um nível ainda mais elevado de renda per capita.
A curva de U invertido exibida na figura feita pelo economista Dani Rodrik a partir de uma simulação que utilizou informações de 42 países – de todos os continentes, somando ¾ da economia mundial – cobrindo desde fins da década de 1940 até 2011.
Repare que a curva a seguir é bem aberta, isso significa que tanto a fase de industrialização quanto a de redução da parcela manufatureira ocorrem com ganhos substanciais de renda per capita (ponto importante para contrapor o caso dos países desenvolvidos e do Brasil).
A literatura qualifica a regressão industrial como normal ou positiva quando a indústria de transformação começa a perder participação no PIB a preços correntes após o país atingir um nível de renda per capita, apontado como o ponto de inflexão da curva da figura acima, no patamar dos US$ 20 mil.
A partir deste ponto, a perda de participação da indústria se deve ao aumento na participação, principalmente, de setores de serviços destinados a uma população com poder aquisitivo elevado (que acessam mais serviços como turismo e lazer, serviços de informação, serviços financeiros, serviços pessoais, saúde privada e educação superior). No entanto, quando a manufatura encolhe bem antes de o país atingir a renda per capita do ponto de inflexão, a regressão industrial é qualificada como prematura.
O gráfico abaixo exibe o grau de industrialização a preços correntes e o seguinte a preços constantes, além da evolução do PIB per capita do Brasil e dos Estados Unidos ao longo das últimas sete décadas, de 1947 a 2019. Ressalte-se que Brasil e Estados Unidos têm suas similaridades, pois são países populosos, continentais, ricos em recursos naturais, foram colônias e tiveram períodos de escravidão.
Esses gráficos sintetizam o argumento da regressão no grau de industrialização normal versus prematura.
Caso 1: a indústria estadunidense começou a perder participação no PIB a preços correntes após os americanos alcançarem renda per capita de US$ 25,4 mil em PPC de 2019 – note que durante a redução no grau de industrialização a renda per capita aumentou bastante e alcançou o patamar de US$ 65 mil em PPC de 2019 no último ano.
Caso 2: a indústria brasileira começou a perder participação no PIB quando o país tinha uma renda per capita de US$ 11,4 mil em PPC de 2019 e durante a regressão industrial a renda per capita do Brasil aumentou para US$ 15,1 mil em PPC de 2019.
O primeiro caso ilustra a regressão industrial normal ou positiva, pois a redução na parcela industrial, na série a preços correntes, iniciou-se após o país superar a barreira dos US$ 20 mil em PPC de 2019 e a renda per capita aumentou substantivamente à medida que a parcela industrial se reduzia.
O segundo caso representa a regressão industrial prematura; dado que o grau de industrialização do Brasil começou a se reduzir num nível de renda per capita de 58% em relação ao ponto de inflexão da curva “U invertido” da figura anterior e durante a regressão a renda per capita evoluiu pouco.
Note também que na série mensurada a preços constantes, a indústria de transformação dos Estados Unidos manteve o peso no PIB durante todo o período, ou seja, ela cresceu no mesmo ritmo do PIB. No Brasil, de modo oposto, a manufatura perde peso no PIB muito precocemente a preços constantes pois cresceu menos que o PIB na maioria dos anos desde 1981.
Além do nível de renda per capita em que a manufatura começou a encolher na série a preços correntes, também é interessante observar a duração da fase de industrialização no pico. O penúltimo gráfico mostra o momento em que o grau de industrialização dos Estados Unidos fica próximo ao pico e começa a diminuir, ou seja, a segunda metade da curva em forma de U invertido.
Como a manufatura americana começou a perder participação no PIB em 1966 na série a preços correntes, o grau de industrialização dos EUA ficou próximo do pico por duas décadas (1947-1966) – provavelmente tenha ficado no pico por um período maior, porém não há dados anteriores a 1947.
Entre 1947 e 1966, a manufatura representou, na média do período, 26,2% do PIB dos Estados Unidos. Ou seja, a duração do grau de industrialização próximo ao pico foi longa e nesse período a renda per capita atingiu US$ 25,4 mil (em PPC de 2019) em 1966. Isso possibilitou aos Estados Unidos escapar da armadilha da renda média.
O Brasil é um país de industrialização tardia – intensamente, a partir da década de 1950. Além disso, a duração do grau de industrialização brasileiro no pico foi curta. A parcela da manufatura no PIB aumentou rapidamente, e logo em seguida diminuiu tão rápido quanto cresceu. Tanto o aumento quanto a queda ocorreram num curto intervalo de tempo e em níveis de renda per capita inferiores ao padrão exibido na curva “U invertido” de Rodrik.
Pode-se considerar que a curva brasileira tem um formato próprio, mais próximo de um “V invertido”, principalmente porque a duração no pico foi curtíssima, além de ser bem menos aberta (com pouca ampliação da renda per capita) que o padrão internacional.
Comparativamente, a redução da parcela industrial no Brasil foi mais rápida que nos EUA. Em apenas 12 anos (1986-1998) o país perdeu 13,5 p.p. do PIB (de 27,3% para 13,8%), enquanto os EUA demoraram 42 anos para perder os mesmos percentuais no PIB (de 26,1% para 12,3%, entre 1966 e 2008).
Os Estados Unidos (assim como vários países desenvolvidos exibidos na Carta IEDI No 940) conseguiram administrar melhor o ritmo da regressão no grau de industrialização, o que gerou consequências duradouras para a continuidade do desenvolvimento.
Enquanto no Brasil o PIB per capita aumentou apenas 30% na fase de regressão industrial, nos Estados Unidos ele se multiplicou por 2,55. Em 2019, Brasil e EUA alcançaram a praticamente a mesma participação da manufatura no PIB (11,8% e 10,9%, respectivamente), porém com níveis de renda per capita muito distintos.
Em síntese, a regressão no grau de industrialização dos Estados Unidos e de vários países desenvolvidos inicia-se num patamar elevado de renda per capita e durante o processo de regressão a renda per capita se expande muito. Nesses países, a mudança estrutural é bem-sucedida em direção aos serviços que continuam elevando o padrão de vida da população, permitindo que a renda per capita seja crescente.
Apesar de a manufatura continuar importante para a inovação, sobretudo de alta e média-alta tecnologia, ela deixa de ditar o ritmo do crescimento econômico, função transferida para os serviços. Alguns segmentos, como serviços de informação e intensivos em conhecimento, passam por expressiva expansão neste caso bem-sucedido de mudança estrutural normal ou positiva.
Já no caso do Brasil, a regressão industrial é prematura, a mudança estrutural para os serviços não ocorre de forma bem-sucedida pois os serviços que ganham bastante participação no PIB empregam profissionais de baixos salários e possuem baixo crescimento da produtividade.
Assim, a economia reduz seu principal motor do crescimento sem que nenhum outro setor dinâmico assuma essa posição, armadilhando o país numa trajetória de baixo crescimento. A presença de segmentos de serviços de informação e intensivos em conhecimento que pagam salários elevados é ínfima, eles representam ilhas num mar de serviços pouco sofisticados e de baixos salários.