Carta IEDI
O Brasil diante das empresas multinacionais e das Cadeias Globais
No âmbito do V Encontro Nacional de Economia Industrial e Inovação (V ENEI), foi realizada, no dia 10 de maio de 2021, por videoconferência, a Mesa IEDI “Futuro da Indústria no Brasil: impactos da reestruturação das empresas multinacionais e da dinâmica das cadeias globais”, cuja discussão resumimos nesta Carta.
Organizado pelo CEDEPLAR/UFMG, o evento contou com a exposição dos professores Afonso Fleury, da Poli-USP, e Maria Thereza Fleury, da EAESP-FGV, e comentários de João Emílio Gonçalves (CNI), João Furtado (USP) e Pedro Wongtschowski, vice-presidente do IEDI. O material completo está disponibilizado no site do IEDI e o vídeo pode ser acessado aqui.
Recentemente, têm se tornado mais frequente notícias sobre o encerramento ou a redução das atividades no Brasil de multinacionais estrangeiras de diferentes setores industriais (Ford, Mercedes-Benz, Sony, LG, Roche, LafargeHolcim etc.). Muitas destas decisões foram certamente influenciadas pelos efeitos da pandemia de Covid-19 e refletem especificidades de cada empresa, mas também podem ter raízes mais profundas.
Não podem ser descartados o papel negativo do acúmulo de distorções da economia brasileira, que comprometem a competividade e a evolução futura dos negócios destas empresas, nem a reconfiguração das cadeias globais de valor frente ao avanço das tecnologias digitais e das estratégias de desenvolvimento industrial adotadas nos últimos anos por países desenvolvidos e por emergentes com economias dinâmicas, a exemplo da China.
Por isso, os estudos dos professores Fleury são bastante oportunos, pois nos ajudam a compreender as mudanças estruturais por trás do desinteresse pelo Brasil de algumas empresas multinacionais e subsidiam o debate a respeito de qual será nosso lugar no “mundo industrial” de amanhã. São contribuições importantes para a definição de uma estratégia industrial brasileira, capaz de tornar o setor 4.0 e mais sustentável.
O trabalho dos professores Fleury parte de uma análise com três eixos – a presença e atuação no país de multinacionais estrangeiras e suas subsidiárias, o posicionamento do Brasil nas cadeias globais de valor (CGV) e a presença das multinacionais brasileiras nestas cadeias –, apontando desafios e oportunidades, isto é, nosso espaço de manobra no sistema industrial global.
Segundo Afonso Fleury, o avanço da digitalização, muito estimulada pelos governos de países desenvolvidos, abre uma nova etapa de reorganização das empresas multinacionais. Isso porque tem consequências importantes sobre a integração das atividades destas empresas, permitindo que se controle virtualmente o que quer que seja de qualquer lugar do mundo (digital twin), e sobre sua relocalização (re-shoring ou back-shoring), possibilitando instalar a produção próximo a mercados consumidores realmente relevantes, sem necessariamente enfrentar grandes desafios logísticos.
Ao estudarem filias de multinacionais no Brasil constatam que a transformação digital enseja a fragmentação dessas empresas, com cada função podendo ser localizada em um nó da rede onde seja mais conveniente. Há exemplos em que a produção brasileira e de outros países da região é feita em tempo real por um centro de controle e planejamento instalado na Colômbia. Por isso, a atratividade de um país está cada vez mais apoiada não apenas no tamanho de seu mercado, mas também na capacitação tecnológica e risco do país.
Os professores Fleury acreditam que a presença no Brasil de multinacionais em setores tradicionais será reduzida a um nível mínimo necessário para atendimento dos mercados locais, ou então serão simplesmente fechadas. Já em setores onde o país tem ou pode ter protagonismo internacional (agroindústria, bioeconomia, óleo e gás, energia, extração de metais raros etc.), serão mantidas as subsidiárias com inteligência, mais agregadoras de valor.
Quanto às CGV, em 2020, devido à pandemia de Covid-19, houve um processo de disrupção total e geral, segundo os professores. Atualmente as empresas líderes destas cadeias estão analisando como se reorganizarão. O elemento importante a ser considerado, segundo eles, é que existe uma clara interferência governamental neste processo. Vale lembrar, por exemplo, que os EUA, desde o Plano Nacional Estratégico de Manufatura Avançada (Carta IEDI n. 820), de 2012, e agora novamente com o Plano Biden (Carta IEDI n. 1083), vêm considerando o desenvolvimento de sua indústria como questão de segurança nacional.
A tendência, segundo Afonso Fleury, é que as CGV se reorganizem de modo a ficarem mais curtas e cada vez mais nacionalizadas. O Brasil, por sua vez não tem papel relevante nessas cadeias. Estamos limitados à presença de subsidiárias de multinacionais em setores intensivos em tecnologia, produzindo para o mercado doméstico; com grande dependência de importação de partes e componentes de alto conteúdo tecnológico, e inovação sediada nos países da OCDE. Por isso, defende que nosso progresso nas CGV deve levar em conta o papel das multinacionais brasileiras.
Maria Thereza Fleury enfatiza a existência de multinacionais brasileiras, muitas vezes em posição de liderança nas CGV e em ecossistemas de inovação, em diferentes setores: no ramo extrativo, como Vale e Votorantim, de insumos básicos, como Oxiteno e Braskem, na manufatura, como Iochpe-Maxion, Natura e Coteminas, na integração de produtos complexos, como Embraer e WEG, na operação de serviços, como Algas, etc.
São empresas com diversas parcerias: com outras empresas multinacionais, com seus fornecedores e, cada vez mais, com startups, o que segundo a professora, traz algum otimismo para nosso tecido produtivo, pois é importante em termos de inovação. Há exemplos de parcerias com startups no agronegócio (AgTechs), em serviços (FinTechs) e na manufatura, a exemplo da Gerdau, que juntamente com a Brasil Cubo, está entrando no setor de construção modularizada.
Algumas multinacionais brasileiras, a partir de sua presença em países desenvolvidos, realizam o que pode ser chamado de “trampolim de conhecimentos”. Isto é, aproveitam de sistemas de inovação maduros para acumular e transferir competências tecnológicas da subsidiária para o país de origem, produzindo um círculo positivo de aprendizagem e inovação.
Com estes elementos em mente, os professores Fleury mencionam aspectos para uma estratégia industrial brasileira. Primeiro, em setores tradicionais as multinacionais já definiram seus focos (NAFTA, União Europeia e Ásia) e a América Latina, por enquanto, não é considerada. Isso direciona suas operações latino-americanas para atender aos mercados locais, com pouco investimento em competências tecnológicas. Há pouca chance de elas integrarem o Brasil a CGV.
Segundo, nos setores em que o Brasil é protagonista internacional, existem condições de empresas nacionais assumirem uma posição de comando na gestão das cadeias e de multinacionais estrangeiras promoverem spillovers tecnológicos. Um modelo de sucesso, para os professores, é a estrutura que a Petrobras criou na Ilha do Fundão para exploração de águas profundas.
Em terceiro lugar, no caso das multinacionais brasileiras, elas podem explorar oportunidades nas cadeias de produção fazendo upgrade, se dirigindo cada vez mais para posições a jusante, mais agregadoras de valor, através da internalização de avanços tecnológicos, obtidos com parcerias com startups ou acumulados em suas filiais no exterior.
Já que multinacionais estrangeiras não têm sinalizado interesse pela América Latina, abre-se uma oportunidade para que as multinacionais brasileiras expandam suas operações na região e tentem compreender melhor a dinâmica das cadeias globais de valor.
Afonso e Maria Tereza Fleury – USP e FGV
Propomos um diagnóstico da situação atual da indústria no Brasil, que acredito ser diferente de “indústria brasileira”, em que tentamos condensar o que aprendemos em pelo menos 40 anos de estudos, pesquisa e vivência corporativa.
Algumas notícias acenderam luzes amarelas de que as coisas estão ficando muito complicadas, como o fechamento da fábrica da Ford. Há também a saída das empresas farmacêuticas do Brasil, há cerca de um ano e meio. Por outro lado, há notícias que vão na contramão dessa tendência: aumento de investimento da produtora de caminhões Scania; John Deere (empresa de agronegócios) ampliou fábricas e iniciou a produção de motoniveladoras no Brasil. Ou seja, há um cenário de notícias no país que, a princípio, é difícil de ser amarrado.
Assim, surgem propostas e alarmes. Em 07 de março de 2021, um editorial do Estadão diz que “É hora de reindustrializar”. Uma coluna de opinião no jornal O valor, falando sobre competências digitais para o Brasil, diz: “Nada sugere que o governo vá desenvolver algum tipo de programa. O setor privado também não se propõe a internalizar os custos associados. Caberá ao terceiro setor e à academia criar competências digitais”. Em 01 de fevereiro de 2021, uma coluna assinada por Dan Ioschpe, presidente do IEDI, traz a visão e propostas do Instituto.
Gostaríamos de propor um quadro que traga alguma articulação para esse tipo de notícias recentemente veiculadas. Há um ponto que consideramos que ainda está mal trabalhado: quem são os atores diretamente envolvidos em uma possível reindustrialização? Quem são os atores que serão objeto da agenda? E quais serão os portadores de novas competências?
Há algum tempo estamos estudando esses eixos que serão trabalhados hoje: as multinacionais estrangeiras com subsidiárias no Brasil; as empresas brasileiras – especialmente as multinacionais – que estão operando num contexto de Cadeias Globais de Valor (Global Value Chains - GVCs).
Nosso objetivo é entender suas trajetórias (o passado explica o futuro); que papel elas desempenharam e ainda desempenham; quais são as tendências; quais lições podemos tirar em termos de estudos e pesquisas, formulação de políticas públicas e estratégias empresariais.
O trabalho parte de uma agenda que tem três preocupações, apontando desafios e oportunidades, isto é, nosso espaço de manobra:
1. Multinacionais estrangeiras e subsidiárias – presença e atuação no país;
2. Cadeias globais de valor – o posicionamento do Brasil;
3. Presença das multinacionais brasileiras nas GVCs;
As multinacionais estrangeiras no Brasil
Antes de tudo vale menciona um problema conceitual: no Brasil, as empresas estrangeiras que têm sede no país acabam se tornando empresas brasileiras. Isso traz uma série de distorções nas análises, sobretudo as estatísticas. É difícil imaginarmos uma empresa brasileira subsidiária na China sendo considerada uma empresa chinesa. É preciso analisarmos isso em nosso quadro.
Há uma frase importante de Jofrey Jones que diz: “The nationality of global companies may actually have become clearer and more important in recent decades.” (Jones in Harvard Business Review, 2006). Ou seja, a questão da nacionalidade da empresa, já em 2006, estava se tornando cada vez mais importante e isso recrudesceu ainda mais em 2008, época da primeira crise financeira, e mais ainda em 2020. Recentemente, foi publicada uma edição da revista Economist cuja capa dizia “The political CEO”. Onde está, hoje, a fronteira entre as empresas e as demandas do próprio país? Há uma dificuldade começando a se materializar nesse sentido.
Consideraremos, nesta apresentação, que a Volkswagen do Brasil é uma empresa alemã que tem subsidiária no Brasil. Que a State Grid é uma empresa chinesa subsidiária no Brasil. Ambas respondem, prioritariamente, às suas matrizes localizadas nos países de origem.
O segundo ponto é que faremos uma análise da cronologia da evolução da indústria brasileira, de 1910 a 2010, desde as primeiras instalações das multinacionais, a industrialização em 1930, a industrialização acelerada em 1950 etc.
Para nós, é fundamental saber como integramos essas datas e esses momentos da indústria brasileira com a evolução das multinacionais, com a formação das cadeias globais de valor e com a evolução das multinacionais brasileiras. Nossa ideia fundamental é mostrar que o que avaliamos hoje como uma grande dificuldade tem origem em decisões e articulações que ocorreram há algum tempo.
No caso das multinacionais estrangeiras operando no Brasil, há três momentos principais:
• 1950: expansão das multinacionais no pós-guerra;
• 1990: primeira reestruturação das multinacionais;
• 2020: segunda reestruturação.
Em 1980, houve a formulação das Global Value Changes; em 2008, a primeira reestruturação devido à crise financeira global; em 2020, uma disrupção e uma nova estruturação.
Começando com as multinacionais estrangeiras no Brasil, é importante destacar o período de 1950 a 1980, quando o Brasil viveu a política industrial de JK “50 anos em 5”. As multinacionais se instalaram no país, especialmente nos setores de alta tecnologia, que são mais orientados para inovação, mais dinâmicos e que foram considerados durante esse tempo como as locomotivas da indústria brasileira.
É interessante observar que, nesse período, as multinacionais, em geral, “nadavam de braçada”. Era um período pós-guerra, havia um mercado dito produtor, ou seja, a oferta era menor que a demanda, e, portanto, as multinacionais tinham uma latitude de trabalho e de expansão quase ilimitada. Apesar de elas se instalarem em países como o Brasil, suas subsidiárias trabalhavam de um modo extremamente autônomo. Isso porque não havia problemas, a operação sempre daria certo. As subsidiárias recebiam, em geral, o nome de multidomésticas.
Nosso papel de desenvolvimento industrial, nesse período, foi de liderança, tínhamos um pouco de desenvolvimento de fornecedores locais, e um ponto fundamental é a questão dos spillovers (transbordamento). Ao contrário de países como a China, como o Japão e a Coreia, aqui no Brasil os spillovers não foram gerenciados. As multinacionais chegavam, instalavam-se e, se houvesse condições de haver transbordamento/spillover, ele acontecia. Esse não é o caso de outros países em que a entrada das multinacionais foi selecionada, monitorada e avaliada. Na China, a política industrial foi pautada por estudos sobre spillover. O abre e fecha, permite/não permite, orienta/não orienta, foi determinado por estudos de spillovers: com o que as multinacionais têm que contribuir quando abrimos o mercado para elas. No caso brasileiro, essa passagem foi quase gratuita.
Se as multinacionais “nadavam de braçada” até 1980, de repente o cenário mudou. As multinacionais dos países asiáticos começaram a entrar, aumentar o nível da competição, e as multinacionais tradicionais tiverem que se reinventar, que se reestruturar para se tornarem mais competitivas – em geral, inspiradas no modelo japonês de produção. Nesse caso, elas começaram a focar as atividades e a colocar para fora as de rotina ou menos agregadoras de valor (as mais básicas).
No Brasil, isso coincidiu com as políticas de abertura dos mercados para competição internacional. Em 1990, as multinacionais mudaram a forma de operar suas subsidiárias no mundo inteiro – e no Brasil em particular. Elas foram racionalizadas, reorganizadas, extirpadas daquelas funções que não precisavam ser feitas no Brasil e passaram a trabalhar com estruturas mais enxutas. Então, as subsidiárias antigas perderam autonomia, funções, ou seja, reduziram as competências locais. Quanto as subsidiárias novas, como as automobilísticas Renault, Peugeot, Honda, Kia etc., já entraram com essa estrutura mais enxuta. Não eram multidomésticas que tinham todas as suas funções replicadas no contexto local. Elas tinham seus centros de decisão e de inovação em seus países de origem ou em outros países onde a empresa tinha operações de maior nível.
Em relação ao papel das multinacionais no desenvolvimento industrial, ao mesmo tempo que as multinacionais reduziram suas estruturas e funções no Brasil, elas tiveram sua liderança aumentada porque houve uma desnacionalização das empresas na indústria brasileira, provocada pela política de abertura dos mercados para competição internacional. Nessa época, perdemos grandes líderes da indústria brasileira, como eram Metal Leve, Cofap, Gradiente etc.
Ou seja, ao mesmo tempo que as indústrias se reestruturaram, a possibilidade de elas continuarem liderando e fazendo spillover diminuiu, mas como desnacionalizamos, as multinacionais tiveram sua liderança aumentada nesse contexto.
Há um texto da revista Oxford University, de João Carlos Ferraz, David Kupfer e Franklin Serrano, que é fundamental para entender esse momento, quando eles analisam as micro e macro relações para o desenvolvimento da indústria brasileira.
Esse é o primeiro momento de transformação das multinacionais, e acredito que continuamos trabalhando com ele até hoje, embora tenha havido, depois, uma série de mudanças.
Como, então, analisar as multinacionais? Entra a questão das tipologias, que são fundamentais. A primeira: como as multinacionais criam diferentes tipos de subsidiárias?
Esta primeira tipologia foi proposta por Bartlett e Goshal em 1989, e diz que o perfil das subsidiárias depende de duas coisas: da importância estratégica do local e do nível de competência que essa subsidiária tem. A partir daí, tem-se diferentes tipos de estratégia, desde as empresas que são líderes estratégicas, até a empresa que tem o chamado “buraco negro”, quando há um baixo nível de competências e uma alta importância estratégica do local. É preciso investir muito nela.
Em nosso trabalho, empregamos outra tipologia bastante parecida. Usamos os mesmos eixos, mas com uma tipos um pouco diferentes, analisando como evoluem de um estágio mais baixo para outro mais alto.
Em relação a essa tipologia, é importante quando ele considera que as multinacionais não estavam aqui por conta do custo do Brasil, nem por causa de conhecimento (já que não somos geradores de conhecimento tecnológico), mas por conta do mercado. As antigas entraram como contribuidores e as demais, mais recentes, como servers. Isso nos ajuda a entender a transformação que está acontecendo hoje.
Entraremos agora no terceiro momento das multinacionais, que é o da digitalização. Por que ela se torna tão importante? Mais uma vez, a competição aumentou, as empresas japonesas e coreanas já estavam no mercado e, então, começam a surgir as chinesas e indianas, e também as brasileiras.
A digitalização foi uma estratégia muito bem articulada por governos e empresas. Não foi só a empresa que decidiu que a digitalização era importante, os governos também acharam que se as empresas locais se digitalizassem elas teriam melhores vantagens competitivas para brigar contra os novos entrantes que, teoricamente, teriam mais dificuldades para capturar essas novas tecnologias digitais.
A transformação digital traz algumas principais consequências. Entre elas, a integração, que engloba a coordenação, em tempo real, entre funções e unidades de negócio. Hoje é possível criar o que se chama de digital twin, que é, no virtual, um sistema de informação real para controlar o que se quer no mundo inteiro. É também o caso da relocalização, que abriu possibilidades de se relocalizar as funções organizacionais nas redes subsidiárias e fazer o que se chama de re-shoring e back-shoring, ou seja, colocar a produção do lado dos mercados que são realmente importantes, e não necessariamente ter grandes desafios logísticos.
Fizemos um trabalho com um orientando de acompanhamento das empresas para saber como é que evoluiu a transformação digital em seis subsidiárias de empresas estrangeiras no Brasil. Hoje, o que acontece é a fragmentação da subsidiária. Cada função dela pode ser localizada em um nó da rede onde seja mais conveniente.
Por exemplo, algumas empresas multinacionais colocaram, a partir de certos critérios, centros de controle da produção na Colômbia. Esse centro de produção na Colômbia coordena toda a produção na América Latina, inclusive no Brasil. Então, a função local de controle e planejamento da produção está sendo realizada na Colômbia de forma direta e em tempo real.
Essa fragmentação permite que as multinacionais tenham novos critérios de localização de sites. Acreditamos que os dois determinantes básicos mudam. Ainda se tem o tamanho do mercado do país/região, que é importante e sempre vai ser, mas há também a mistura entre capacitação tecnológica e risco país. Dependendo dessa composição, tem-se diferentes nós das redes sendo localizados em um ou outro país. Acreditamos que, no caso do Brasil, ficaremos fundamentalmente com centros de distribuição, de serviço e de produção. Mesmo a ideia integral de subsidiária, provavelmente, desaparecerá.
Para fechar esse quadro das multinacionais, nossa ideia é que a presença delas no Brasil, nos setores tradicionais, vai ser reduzida. As competências serão diminuídas a um nível mínimo necessário para atendimento dos mercados locais, ou então serão simplesmente fechadas. Por exemplo, na indústria automobilística, haverá, necessariamente, uma reorganização e restará somente o mínimo.
Nos setores onde o Brasil tem protagonismo internacional, o quadro é diferente. Serão mantidas as subsidiárias com inteligência dos tipos que são mais agregadoras de valor, que podem ser contribuidoras ou líderes. Por exemplo, o Brasil é o maior mercado de caminhões do mundo e tem o maior campo de testes que existe. Por isso a Scania diz que continuará investindo aqui, assim como a John Deere, que trabalha com a agroindústria, pois somos o ponto forte desse setor no mundo.
O papel previsto do desenvolvimento industrial será neutro nos setores tradicionais. Não aportaremos inovações e ele será contributivo em setores com protagonismo internacional: agroindústria, bioeconomia, óleo e gás, energia, extração e metais raros. Essa é a nossa conclusão quando analisamos o primeiro eixo, que é a multinacional.
O Brasil nas Cadeias Globais de Valor
O segundo eixo a ser analisado, são as Global Value Chains (GVC), formadas a partir de 1980, quando as multinacionais começam a se reestruturar. Elas mudam a rede interna de subsidiárias e começam a externalizar atividades por fora da estrutura organizacional, criando o que depois foi chamado de GVC.
No Brasil, elas começaram a se configurar em 1980 e, como as multinacionais já estavam instaladas nos setores hightech, não tiveram interesse em abrir novos setores. Elas vieram então para puxar GVC em setores ligados ao varejo – que são os buyer-driven value chains. Os setores convidados a participar foram calçados, vestuário, cama, mesa e banho. Em geral, não houve interesse das empresas e o Brasil ficou um pouco à parte.
Novamente, o Brasil apresentou três períodos: a expansão das cadeias globais de valor até 2008; depois, com a crise financeira, elas sofreram um processo de contestação – foram julgadas culpadas por uma série de problemas que estavam acontecendo no mundo inteiro: desigualdade, sustentabilidade etc. –, e começaram a operar em novas bases; em 2020, houve um processo de disrupção total e geral. As GVC estão vendo como vão se reorganizar depois de tudo o que ocorreu com a pandemia. Nesse novo caso existe uma clara interferência governamental, uma tendência das GVC de se reorganizarem, ficarem cada vez mais nacionalizadas e as cadeias cada vez mais curtas.
Se analisarmos, o Brasil não tem um papel relevante nas GVCs. Segundo um report do MIT para a CNI em 2021, o engajamento do Brasil com GVCs é limitado a subsidiárias de multinacionais em setores intensivos em tecnologia, produzindo para o mercado doméstico; a produção nesses setores depende de importação de partes e componentes de alto conteúdo tecnológico; nesse setores a inovação está sediada nos países da OECD.
Ou seja, ainda estamos à margem das GVCs. Chegamos em um ponto em que devemos mudar o olhar e entender qual é o papel das multinacionais brasileiras em GVCs.
As Multinacionais brasileiras
O terceiro eixo refere-se às empresas multinacionais brasileiras, criadas nos anos 1970-1980, mas que se expandiram a partir dos anos 1990 – inicialmente para América Latina, Europa e Estados Unidos e, posteriormente, Ásia (China). Hoje há aproximadamente 1.300 multinacionais que têm subsidiárias no exterior, ou seja, que não são somente exportadoras – número que alcança os milhares.
Se olharmos para o modelo analítico de uma GVC e como as empresas se situam dentro desse modelo, veremos que existem empresas multinacionais brasileiras em todas as posições, que são: empresas extrativas (Vale e Votorantim), produtoras de insumos básicos (Oxiteno e Braskem), manufatureiras (Iochpe Maxion, Natura e Coteminas), integradoras de produtos complexos (Embraer e WEG) e operadoras de serviço (Algar).
Essas empresas, além de estarem em diferentes segmentos, se colocam à frente no comando das GVCs e dos ecossistemas de inovação. Ao analisá-las, podemos ver que possuem diversas parcerias com outras empresas multinacionais, com seus fornecedores. Há um outro elemento, sobre o qual precisamos jogar luz para olhar com mais otimismo o nosso tecido produtivo, que é a relação dessas empresas com as startups, o que pode ser muito interessante em termos de inovação.
Podemos observar tanto no setor do agronegócio – as AgTechs – no setor de serviços – as FinTechs – e no setor de manufatura, que tem empresas que desempenham papeis extremamente importantes para a inovação. Um exemplo desses é de uma empresa muito tradicional, a Gerdau, que está trabalhando com o grafeno e, juntamente com a Brasil Cubo, está entrando no setor de construção modularizada. Isso significa movimento, mudança.
Eu gostaria de mencionar alguns estudos que fizemos a respeito dessas empresas, não limitados a estudos de caso, mas utilizando também surveys, que mostraram, por exemplo, que em 2006 as nossas preocupações eram triviais: queríamos saber que empresas eram essas, de que setores vinham, por que e para onde estavam se internacionalizando, compreender o papel da subsidiária para a matriz brasileira, se era simplesmente busca de mercado ou se vão progredindo.
Fomos percebendo que elas iam mudando, principalmente quando se dirigiam a países desenvolvidos, avançados tecnologicamente, onde começaram a realizar o que chamamos de “trampolim de conhecimentos”, do país onde estava a subsidiária para o país de origem. Isso produziu um círculo positivo de aprendizagem de inovação.
Essas pesquisas foram feitas em 2006, 2010, 2015, e a última começando em 2019 e terminando em 2020, sobre a qual eu gostaria de comentar a respeito da motivação: nós fomos convidados por David Kupfer e Luciano Coutinho para participar do grupo que fazia um diagnóstico da indústria 4.0 no Brasil.
Eles fizeram uma pesquisa que mostrava que a indústria brasileira estava, em geral, muito pouco envolvida com o processo de transformação digital. A partir do diagnóstico, eles mostraram que apenas 2% delas poderiam ser classificadas como indústria 4.0 e cerca de 28% como indústria 3.0. A questão era a seguinte: nós temos mercado, não temos condições de investir no momento, portanto o cenário permanecerá igual. Nós integramos as discussões, fomos ao lançamento do report em 2019, e percebemos que haviam empresas “se mexendo”.
Propusemos, então, a realização de uma pesquisa com as nossas empresas multinacionais, que estão mais expostas à competição, para verificar em que medida elas estariam mais envolvidas na economia digital. Esse foi o ponto de partida para nossa quarta survey, para a qual utilizamos o referencial do Instituto Fraunhofer-acatech (Alemanha) para tentar mensurar o nível de maturidade digital dessas empresas.
Nessa proposta da acatech existem quatro dimensões: recursos computacionais e gestão de dados; capacitação de pessoas para a era digital; cultura organizacional digital; estrutura e gestão para agilidade e ambidestria. É interessante observar que há, nessa proposta, destaque não apenas para os aspectos técnicos, mas também para outros aspectos relevantes para o processo de transformação das empresas. O resultado desse survey foi bastante interessante: das 92 empresas pesquisadas, as que tiveram melhor desempenho foram as do agronegócio e, obviamente, aquelas chamadas de born digital (como o Nubank); em terceiro e quarto lugares ficaram as dos setores de serviços e manufatura.
O projeto continua e, neste momento, estamos estudando as capacidades que essas empresas desenvolveram. Um ponto muito importante que podemos observar é o movimento de inovação digital e formação de novas competências que elas têm adotado para enfrentar esse desafio. Sobre esse movimento, retomo a fala de um investidor que dizia que “as startups são como um vírus que deve contaminar positivamente as empresas mais tradicionais”.
Como vírus e contaminação são palavras hoje carregadas de significados negativos, os profissionais das próprias startups utilizam, para descrever o seu papel, o termo trim tab, importado do universo naval: um leme de pequenas embarcações, que é capaz de movimentar até grandes embarcações sem muito esforço. Esse é um ponto muito interessante sobre o qual precisamos pensar: como trabalhar as pessoas, desenvolver recursos e movimentar essas grandes empresas de modo a fazer frente aos novos desafios.
Indicações para uma agenda de reestrututação industrial
A conclusão do nosso diagnóstico trouxe a percepção de que há três aspectos para analisar o que seria recomendável para pensar a agenda da reestruturação industrial.
Primeiro, as empresas de setores tradicionais controlados por multinacionais têm subsidiárias no Brasil com menos inteligência, menos foco em inovação e são muitas vezes controladas à distância por centrais de controle e P&D, mantendo apenas alguns centros de serviço locais. Em geral, essas multinacionais já definiram que têm três focos: NAFTA (Acordo de Livre Comércio da América do Norte), União Europeia e Ásia. A América Latina por enquanto não é considerada. Isso produz toda uma configuração na América Latina para atender aos mercados locais com pouco investimento em competências.
Segundo, nos setores comandados por empresas locais, nos quais o Brasil é protagonista internacional, existem condições de assumir uma posição ativa na gestão de cadeias fornecedoras, especialmente estrangeiras, através de gerenciamento de spillovers. Precisamos compreender como é possível explorar esse transbordamento de tecnologia e buscar a formação de ecossistemas de inovação. Um modelo fantástico é a estrutura que a Petrobras criou na Ilha do Fundão para exploração de águas profundas – aquele é um ecossistema bem claro, mas temos vários outros que garantem nosso protagonismo nessas áreas com um certo aporte das multinacionais estrangeiras.
Terceiro, no caso das multinacionais brasileiras, elas podem explorar oportunidades nas cadeias de produção fazendo um upgrade, se dirigindo cada vez mais para posições a jusante, mais agregadoras de valor, através da internalização de avanços tecnológicos. E também fazendo a repatriação de conhecimentos, que são absorvidos e aperfeiçoados em ecossistemas de inovação locais, buscando o desenvolvimento das cadeias locais de produção, com o envolvimento de startups e a expansão da atuação em espaços que ainda não são contestados – já que as multinacionais tradicionais não se preocuparão com a América Latina o que se mostra uma ótima oportunidade para expandir e tentar compreender melhor a dinâmica das cadeias globais de valor.
Se esse diagnóstico faz sentido, algumas ações poderiam ser tomadas. Primeiramente, acreditamos que a formulação de políticas públicas está mirando alvos errados. Precisa haver uma reformulação a partir da identificação dos agentes que são potencialmente contribuintes para o desenvolvimento da indústria no Brasil. É preciso enfatizar que não estamos necessariamente propagando uma volta ao sistema de campeões nacionais, como foi feito há alguns anos.
Em segundo lugar, os estudos da indústria sobre o Brasil precisam seguir novos quadros de referência, precisamos mudar de lógica e tentar entender os outros atores, sair do quadro antigo, de 1950. Outra ação é a mudança dos conceitos de definição primária, como por exemplo empresa brasileira e empresa estrangeira. Ter uma indústria no Brasil é uma coisa, indústria brasileira é outra. As empresas brasileiras são aquelas que respondem a alguma instância localizada no Brasil, enquanto as estrangeiras respondem a centros de decisão localizados no exterior. É esse o quadro que elaboramos.
Pedro Wongtschowski – IEDI
No ambiente em que estamos, acredito que não seja necessário ressaltar a relevância da indústria para o desenvolvimento do Brasil. Mas, talvez, valha a pena reforçar que o setor de serviços e a agricultura não existem sem uma indústria forte, moderna, competitiva e desenvolvida. A indústria brasileira, a despeito da redução do seu papel na economia, continua sendo o setor que mais recolhe impostos; é responsável por 75% da atividade de pesquisa, desenvolvimento e inovação do setor privado; paga os melhores salários e tem o índice mais alto de formalização do trabalho.
Portanto, essa é a relevância da nossa presença e do papel que podemos ter para fortalecer a indústria brasileira e garantir, quiçá, sua sobrevivência e seu crescimento ao longo do tempo.
O momento específico desta reunião também me parece oportuno porque temos assistido, com certa preocupação, à saída de um grande número de empresas multinacionais do Brasil, que estão deixando de ter atividades produtivas no país. Esse é um claro sintoma do ambiente inóspito que a indústria tem no Brasil.
Vemos também, com alguma preocupação, um avanço extraordinário na industrialização do Paraguai abrigando empresas brasileira que migram para lá para atender o mercado brasileiro, fazendo uso dos benefícios do Mercosul. Trata-se de uma espécie de Zona Franca do Brasil, e o próprio governo paraguaio explicita isso conferindo, por 30 anos, o status de Zona Franca às empresas que se estabelecem por lá. Gozam de energia barata; acesso pleno a insumos exportados do Brasil e, portanto, em tese, sem tributos; acesso ao mercado brasileiro, mandando produtos de volta para o país em função do Mercosul; salários mais baixos; regulamentação trabalhista menos rigorosa; demandas ambientais menos rígidas etc. O Paraguai está se transformando então em uma Zona Franca do Brasil, e essa expansão pode, sem dúvida, começar a reduzir o papel e a presença da indústria no país.
Falo também em nome do IEDI, que é um dos apoiadores deste evento. O Instituto tem repetido sua posição formal de que o crescimento do Brasil tem algumas pré-condições: um certo equilíbrio macroeconômico; uma tranquilidade institucional; a redução da desigualdade social; a adoção de uma sustentabilidade ambiental mais firme e determinada. O Brasil não anda bem em nenhum desses quatro quesitos.
Por outro lado, temos defendido que existem algumas condições adicionais para o Brasil se desenvolver industrialmente. A primeira é a demanda por uma reforma tributária, que sabemos que não vai reduzir a carga tributária – o que é inviável por conta das questões fiscais –, mas o grau de complexidade tributária no país, que é absolutamente gigantesco. As empresas que atuam em diversos estados do Brasil se deparam com regulamentações complexas de ICMS diferentes, por exemplo, em cada estado, e os princípios dessa reforma tributária já foram enunciados diversas vezes pelo IEDI, especialmente os de imposto sobre consumo; a ideia de um IVA nacional, econômico, abrangente, com cobrança de destino, devolução de créditos gerados, imposto sobre a renda.
A segunda questão é a melhoria e aceleração da infraestrutura no país – o que é um dos poucos itens positivos, que está em andamento –, redução da insegurança jurídica, que tem sido um problema de todo o setor empresarial brasileiro, já que ela gera um contencioso tributário que chega a 75% do PIB. Não há empresa industrial que não tenha em seu balanço gigantescas provisões por conta de infindáveis disputas tributárias. Finalmente, a questão da transformação digital da indústria, que teria que andar de maneira mais rápida; a integração do Brasil na economia mundial e uma atividade mais intensa de pesquisa, desenvolvimento e inovação.
Vemos com imensa preocupação a redução do apoio do governo às atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação, com redução dramática de orçamento da Capes, do CNPq, da Finep, e redução também do volume de recursos que o BNDES tradicionalmente coloca no setor de inovação.
João Emílio P. Gonçalves – CNI
O estudo apresentado trata de um contexto com quatro pilares complexos: um é a própria base industrial brasileira e a origem de capital; o segundo são as políticas públicas, tanto hoje quanto no passado; o terceiro é o contexto das cadeias globais de valor e; o quarto é a questão da digitalização. O esforço é de saber de onde viemos, quem somos hoje e para onde vamos.
Identifico algumas questões importantes: uma dos principais pontos é quem são os atores da uma reindustrialização no Brasil. Há questões, como a origem de capital, que são importantíssimas, pois a experiência e a literatura demonstram que as empresas de nacionalidades distintas são diferentes e isso tem impacto no comportamento da empresa e na inovação tecnológica. Não se trata de xenofobia, como alguns erroneamente dizem.
Temos feito vários estudos sobre o processo de desenvolvimento da indústria 4.0 no Brasil, e uma coisa que chama muita atenção quando visitamos empresas multinacionais – ou suas filiais operando no Brasil – é que algumas das vantagens que se espera ao ter uma empresa como estas em solo nacional, que seria a operação na fronteira tecnológica, trazendo inovações rapidamente, não são verificadas. Em muitos casos, empresas de grande porte têm um padrão tecnológico no Brasil muito inferior ao que elas têm no exterior, demonstrando que o "atalho" adotado por nós é ilusório, pois tratamos a atração de dinheiro estrangeiro como algo que produziria resultados automáticos para o desenvolvimento industrial.
Existe um problema de fundo no país, que é a falta de diagnóstico para esse elemento, não há um consenso claro sobre quais são as razões de fato da situação de desenvolvimento da indústria tecnológica brasileira e da situação de competitividade quando olhamos para esses aspectos – à exceção do "custo Brasil", para o qual o consenso é maior. Sem um diagnóstico, é difícil avaliar o que queremos e o que é necessário para alcançá-lo. Ou seja, é difícil conseguir fazer uma discussão sobre a política industrial, quais são seus objetivos e os instrumentos que ela precisa mobilizar.
No caso do investimento direto estrangeiro, acredito que seja um dos exemplos em que isso fica mais claro. O Brasil, historicamente, teve uma política “preguiçosa” para esse tipo de investimento, mensurando-o em termos de valor – uma espécie de fetiche, ou seja, se o investimento de um ano foi maior que o do anterior, automaticamente isso faz um ano melhor que o outro, sem considerar a qualidade desses investimentos, do encadeamento que ele produz e menos ainda olhando para os spillovers.
Na verdade, tivemos em um momento o objetivo de substituição de importações, mas depois disso, pelo menos ao longo dos últimos 20 anos, o objetivo parece ser mais macroeconômico, no sentido de avaliar a importância da atração de investimento estrangeiro para o balanço de pagamentos, em vez de realmente olhar os impactos que isso gera, como esses investimentos interagem com a base industrial e como contribuem para objetivos microeconômicos.
Outro elemento que julgo ser um problema histórico, é o processo de industrialização brasileiro, que tenta sempre pular etapas. Em algum momento, essa foi uma escolha entre tentar desenvolver competências no país ou simplesmente promover a atração de investimento estrangeiro, mas hoje é um pouco pior, pois o debate se restringe a tentar desenvolver as competências das empresas que estão aqui ou reduzir tarifas de importação e importar tudo.
Temos enfrentado essa visão que percebe a indústria brasileira como um fardo para a sociedade, que acredita que a redução de tarifas promoveria um choque de competitividade ou simplesmente viabilizaria o acesso a insumos, máquinas, equipamentos e à tecnologia – como se o problema de inovação no Brasil fosse a simples aquisição de tecnologia importada.
Avançando sobre o tema das cadeias globais de valor, me preocupa do que escutamos na CNI, que, em muitos momentos, as cadeias globais de valor tenham sido "vendidas" como uma solução, uma promessa de que nelas todas as empresas teriam seu lugar, bastaria procurá-lo. Partia-se da premissa de que, ao encontrar esse lugar, ele seria necessariamente bom para a empresa, que não fariam muita diferença os atributos da empresa para o seu papel estratégico.
Recentemente, em algumas conversas, inclusive com representantes de outros países, de entidades empresariais estrangeiras, percebo o ressurgimento de uma esperança com o fenômeno de reshoring e de cadeias regionais de valor (ou até nacionais, no caso de países grandes como o nosso).
Isso realmente cria oportunidades para o país ou apenas se apresenta como um cenário em que as empresas multinacionais atuam na esfera regional? Se a conclusão é esta, na prática não teremos novas oportunidades para empresas entrantes ou locais, mas simplesmente uma reorganização entre empresas que já lideram cadeias globais de valor e as relações que elas têm com fornecedores locais. Esse movimento todo de GVCs cria alguma oportunidade adicional ou mantém o mesmo tipo de barreira à entrada?
A questão da digitalização traz uma outra pergunta: a digitalização e a flexibilização da produção, isto é, a possibilidade de ter eficiência em escalas menores, criam oportunidades relevantes para o Brasil? Sempre ouvimos muito que é difícil entrar em mercados de maior tecnologia porque as escalas mínimas são muito altas. A digitalização com a flexibilização cria novas oportunidades de sermos eficientes em áreas mais avançadas?
Também vejo que falta pensarmos um pouco mais a fundo no tipo de política que deveríamos ter para conseguir promover o desenvolvimento industrial nesse contexto: o ponto em que estamos de desenvolvimento de competências, de base industrial à luz desses novos desenvolvimentos de GVCs e da digitalização.
Um último comentário que gostaria de fazer é com relação à política de campeões nacionais. Esse conceito foi muito utilizado, principalmente, por pessoas que sempre questionaram o papel do desenvolvimento industrial e das próprias instituições do fomento, especialmente do BNDES. Em um determinado momento começamos a aceitar que realmente existia essa política de campeões nacionais, mas todas as vezes em que eu pedi para alguém citar mais de 5 exemplos, ninguém conseguiu. Alguns dos geralmente citados, vale observar, mostraram que, tendo apoio de financiamento, teriam capacidade de se tornar campeões de verdade. Eu arrisco dizer que, se pegarmos a lista de empresas financiadas pelo BNDES nesse período, teremos mais campeões estrangeiros do que nacionais.
Eu questiono, portanto, esse termo, porque ele serviu de material para o questionamento, crítica e enfraquecimento. Um dos poucos instrumentos de política pública que temos no Brasil para o desenvolvimento industrial, que é o BNDES, um banco que não faz nada além do que fazem os grandes bancos internacionais de desenvolvimento, hoje, faz cada vez menos. Atualmente é quase um pecado falarmos de o BNDES financiar o comércio exterior brasileiro – e é praticamente impossível imaginar a participação de forma virtuosa em cadeias globais de valor sem ter um banco que financie o comércio exterior e investimentos estrangeiros.
João Furtado - USP
Uma das questões que o professor Fleury apresentou foi sobre a hierarquia das indústrias, e eu tomo essa hierarquia numa acepção um pouco diferente da que ele deu: ele a colocou existindo entre as diversas unidades das empresas, mas eu a tomo no sentido do artigo que todos nós conhecemos, que é o do Pavitt, sobre os padrões setoriais. Por que esse artigo é fundamental? Fazendo uma conexão com o segundo ponto da apresentação do professor Fleury, quando falamos que as empresas multinacionais ingressaram no Brasil – livremente e com vantagens que as empresas nacionais não contavam (acesso a recursos cambiais especiais, por exemplo) – elas não o fizeram com uma fronteira tecnológica, mas sim com uma vantagem tecnológica, que era o acesso a uma corporação que ainda não era global, mas já tinha uma dimensão multinacional, na qual elas tinham um acesso facilitado a vantagens tecnológicas, que nunca foram o "estar na fronteira". Nós nunca tivemos essa vantagem, nunca estivemos na fronteira, apenas tínhamos filiais de empresas multinacionais que tinham alguma vantagem com relação a seus concorrentes locais.
Um exemplo: temos em casa geladeiras de uma empresa chamada Brastemp, que pertencia a uma empresa chamada Brasmotor, que fabricava automóveis no Brasil. A entrada de uma unidade fabril muito antiga de uma empresa multinacional foi suficiente para que essa empresa [Brasmotor] saísse dos automóveis e se implantasse na fabricação de eletrodomésticos. A vantagem com que contava a filial da empresa multinacional era suficiente para remover o concorrente nacional, e, ao mesmo tempo, muito distante da vantagem que lhe permitiria ocupar imediatamente um espaço na competição internacional. Essa vantagem é suficiente para ocupar o mercado brasileiro, mas não para dar projeção internacional à filial brasileira.
Isso é, evidentemente, algo que vai se arrastar por muito tempo, mesmo quando o mercado brasileiro era um mercado orientado principalmente por market, quer dizer, as empresas vinham para cá pensando no market e não nos assets, na eficiência, e não para construir novos fatores de eficiência global a partir da pobre matriz industrial brasileira. Portanto, mesmo no período da grande industrialização acelerada brasileira – de 1950 a 1980 –, essas empresas não vieram trazer a “crista da onda” da modernidade, mas sim o anabolizante da indústria brasileira.
O João Emílio pediu desculpas por usar a palavra "preguiçosa" com relação às políticas brasileiras para investimento direto estrangeiro e eu peço desculpas por usar a palavra "anabolizante", mas sabemos que o anabolizante produz efeitos vitais imediatos de enorme energia, mas efeitos secundários deletérios ao longo de um grande período. É isso que nós estamos sofrendo hoje: os efeitos secundários do uso intensivo de anabolizantes. Nós confiamos demais neles, que têm efeitos secundários que chegaram para "cobrar a conta" dos últimos 30 ou 40 anos.
A segunda observação que faço é sobre o uso do conceito de intensidade tecnológica. Isso pode significar muitas coisas, e eu definirei de duas formas que para mim são muito diferentes. A primeira é a barreira inicial: a Companhia Siderúrgica Nacional, por exemplo, venceu uma barreira inicial elevada. Outra coisa é o ritmo tecnológico intenso: ambas são barreiras, mas uma é estática e a outra, dinâmica.
Nós nos preparamos, e as multinacionais que entraram no Brasil até os anos 1980, em grande número e com grandes vantagens, foram "turbinadas" por uma vantagem tecnológica inicial de natureza estática, não por um ritmo de mudança tecnológica intenso. Tudo o que aconteceu na indústria, a partir do final dos anos 1980 e começo dos 1990, está muito mais vinculado ao ritmo do que à barreira inicial.
As equipes de engenharia não estavam preparadas para participar ativamente do processo de desenvolvimento tecnológico, embora o estivessem para capturar oportunidades tecnológicas que suas matrizes eventualmente lhes transferissem. Elas são boas recebedoras de tecnologia, mas não grandes desenvolvedoras – e tudo o que aconteceu na indústria a partir dos anos 1990 implicava na necessidade dessa segunda dimensão, e não da primeira.