Carta IEDI
Indústria: alavanca do crescimento
No Brasil, a importância que a indústria tem no crescimento econômico vem sendo ignorada nos últimos anos. Estamos na contramão do restante do mundo que, já há quase uma década, vem intensificando a adoção de políticas destinadas a consolidar ou revigorar o dinamismo de suas atividades industriais.
Vale lembrar o amplo levantamento realizado pela UNCTAD em 2018, que identificou nada menos do que 114 estratégias industrias adotadas desde 2000 em 101 economias que, juntas, representavam cerca de 90% do PIB mundial. Destas, 74% foram adotadas depois de 2013. Mais recentemente, o Plano Biden nos EUA, o 14º Plano Quinquenal da China e o Plano de Recuperação da União Europeia deram continuidade a este processo.
O IEDI vem alertando há muito tempo para os profundos efeitos negativos do retrocesso da indústria em nossa estrutura produtiva, que resulta da ausência de uma estratégia bem definida e contundente para romper o quadro atual e relançar a indústria, fortalecendo a economia brasileira. A indústria tem esse poder porque apresenta características que, embora não sejam de sua exclusividade, não são reunidas por outras atividades econômicas com a mesma abrangência e intensidade.
Algumas evidências ilustram isso. A indústria, embora represente atualmente cerca de 10% do PIB nacional, é responsável por 67% dos gastos privados em P&D, responde por mais de 50% das exportações do país, estabelece relações de trabalho majoritariamente formais e paga salários acima da média nacional.
Essas contribuições da indústria para a economia poderiam ser bem maiores e o país poderia ser mais inovador e desfrutar de produtividade e crescimento econômico superiores se sua indústria não fosse penalizada por políticas muito equivocadas que estão em vigor já de longa data.
Por exemplo, as distorções no sistema tributário estão entre as causas mais destacadas, pois geram uma carga tributária de 45% sobre o valor adicionado do setor, levando a indústria a responder por 26% da arrecadação total de impostos. Estes patamares são muito superiores aos demais setores da economia e muito além da expressão atual do PIB industrial no PIB brasileiro, que, como já observamos, é próxima a 10%.
A Carta IEDI de hoje, a partir de estudo realizado pelo economista Thiago Moreira, professor do Ibmec/RJ e consultor do IEDI, aprofunda um tema de fundamental importância neste momento de recuperação pós-pandemia que se avizinha com o avanço da vacinação: a significativa capacidade que a atividade industrial tem de alavancar a expansão da economia como um todo, muito acima dos demais setores econômicos. Ou seja, a indústria potencialmente se mantém como o principal motor do crescimento do PIB.
Esta capacidade é o que os economistas chamam de “efeito multiplicador”, o qual quantifica o poder que determinado setor tem, ao produzir bens e/ou serviços, de induzir o crescimento dos demais setores produtivos, por meio de suas demandas de insumos.
Assim, tão ou mais importante do que sua participação no PIB, a relevância de um setor para o crescimento econômico é condicionada por seus efeitos multiplicadores. Nem todos que possuem elevada participação no PIB são capazes de impulsionar e liderar trajetórias de crescimento econômico.
Nesta perspectiva, os números da indústria são muito ilustrativos. O autor estima que o multiplicador da indústria de transformação brasileira, em 2019 e 2020, foi de 2,14, o que significa que cada R$ 1 produzido por ela induz um aumento de R$ 2,14 na produção total da economia. É o único setor com multiplicador acima de dois.
Outros segmentos da indústria, segundo a ótica das Contas Nacionais, também estão entre os maiores multiplicadores: 1,85 para a indústria extrativa e 1,87 para a indústria da construção e para a indústria de eletricidade, gás e água, referente ao ano de 2020.
Na maioria destes ramos industriais, houve aumento do multiplicador nos últimos cinco anos, segundo os dados do estudo. No caso da indústria extrativa, foi de +0,12, na construção de +0,07 e na indústria de transformação +0,03, devido sobretudo a mudanças de preços relativos.
Quanto aos demais setores, os serviços, cuja participação no PIB do Brasil chega a 63%, têm uma capacidade de dinamizar a economia muito menor do que a indústria de transformação. Nesse caso, um aumento de R$ 1 na produção encadeia uma elevação de R$ 1,46 no nível geral de atividade econômica, segundo estimativa para 2020.
O multiplicador dos serviços é o menor entre os grandes setores da economia e seria ainda mais baixo não fossem os serviços de transporte (1,85) e comércio (1,56). Entretanto, as atividades de transporte e comércio, como o estudo chama a atenção, não ocorrem de forma autônoma, estando atreladas a algum bem comercializado e/ou transportado, oriundo da produção industrial e agropecuária nacional ou da sua importação.
Por isso, os serviços de transporte e comércio tendem mais a potencializar os efeitos dinamizadores da indústria e da agropecuária do que impulsionar eles próprios o crescimento. Ademais, é importante frisar que o principal vetor de estímulo vem da indústria, já que a venda de bens agropecuários é responsável pela geração de apenas 8,6% no valor de produção do comércio e de 20% no valor da produção da atividade de transporte.
Já a agropecuária, cujo crescimento foi destaque positivo no 1º trim/21, seu efeito de puxar a produção do restante da economia também é inferior, ficando bem abaixo daquele da indústria de transformação. Seu multiplicador foi calculado por Moreira em 1,67 em 2020, menor do que em 2015, devido ao avanço de insumos importados.
Ou seja, a agropecuária tem capacidade mais limitada de irradiar crescimento. Isso ajuda a explicar, por exemplo, porque em 2017 o PIB deste setor, segundo o IBGE, avançou nada menos do que +14,2% e o PIB total do Brasil cresceu apenas +1,3%, ou então porque a alta de +5,2% no 1º trim/21 não produziu um crescimento do PIB total maior do que 1%.
Estes dados sugerem que uma avenida a ser trilhada para que o Brasil cresça mais e gere mais empregos está no revigoramento da indústria. Para isso teremos que adotar uma estratégia de desenvolvimento industrial moderna, à semelhança do que as potências mundiais, como EUA, Europa e China, estão fazendo. O preço de abrirmos mão de nossas competências industriais tende a ser elevado.
A perda de competitividade da produção da indústria nacional, devido aos diversos fatores do Custo Brasil, tem comprometido o adensamento do setor e favorecido a crescente penetração de insumos importados, como mostrou a Carta IEDI n. 929, sem contrapartidas na ampliação de nossas exportações de manufaturas, tornando o multiplicador do setor menor do que poderia ser.
A indústria de transformação dos EUA, cuja composição é mais homogênea e densa do que a nossa, possui um multiplicador de 2,35 vis-à-vis 2,14 do Brasil. Efeitos multiplicadores mais elevados estão associados a presença mais robusta de setores produtores de bens intermediários, os quais são capazes de amplificar os impactos positivos sobre o produto decorrentes de um período expansivo da renda e da demanda agregada.
Introdução
O objetivo principal deste estudo é tratar da importância dos efeitos multiplicadores de produção para a alavancagem e sustentação de trajetórias de crescimento econômico, destacando que o um dos aspectos cruciais de diferenciação do setor industrial em relação às demais atividades corresponde justamente ao fato de apresentar os maiores efeitos multiplicadores da economia.
Com foco na economia brasileira, buscou-se clarificar o conceito do multiplicador de produção e de que forma ele opera, apresentando e discutindo a evolução recente de seus valores, destacando os potenciais impactos que podem ser desencadeados pelas diferentes atividades econômicas do país.
Para o cálculo dos efeitos multiplicadores, faz-se necessário o uso de dados relativos à estrutura produtiva, mais especificamente das chamadas tabelas da Matriz Insumo-Produto (MIP), oficialmente elaboradas e divulgadas pelo IBGE. A última MIP oficial é referente a 2015. No entanto, o IBGE divulga outras bases de dados setoriais da estrutura produtiva correspondentes às chamadas tabelas de Recursos e Usos (TRU), as quais estão disponíveis para os últimos anos, o que nos permitiu estimar as MIPs para 2019 e 2020. Portanto, os parâmetros da MIP de 2015 foram utilizados para a estimação das MIPs de 2019 e 2020 a partir dos dados oficiais das TRUs.
A importância dos efeitos multiplicadores de produção para a análise de crescimento
Uma das importantes linhas de pesquisa na área macroeconômica e que aproximam a discussão teórica e acadêmica da prática e da realidade econômica empresarial se baseia no desenvolvimento de análises que não se limitam apenas ao uso de variáveis e parâmetros em níveis meramente agregados.
Trata-se de uma abordagem sistêmica e, portanto, multissetorial, que incorpora diferenciações entre os distintos setores econômicos, destacando características intrínsecas a cada setor produtivo e de que forma estes setores impactam o restante da economia, assim como de que forma são afetados pelas demais atividades.
Nesta temática, uma das abordagens que propiciam uma quantificação da importância de setores ou atividades para a economia como um todo diz respeito aos chamados “efeitos multiplicadores da produção”. Em linhas gerais, trata-se da quantificação da capacidade que os setores, ao produzir bens e/ou serviços, têm de estimular a expansão dos demais setores produtivos.
Cada setor econômico específico para produzir necessita adquirir insumos provenientes de outras atividades, que por sua vez, também requerem insumos em seus respectivos processos produtivos, e assim sucessivamente. Em outras palavras, é uma estimativa que utiliza os diversos fluxos dos insumos e matérias-primas na forma de bens agropecuários, industriais e/ou serviços que compõem as diversas cadeias produtivas de uma economia. Do ponto de vista teórico, estes efeitos também são conhecidos como resultantes dos “encadeamentos produtivos para trás” ou “backward linkage” (HIRSCHMAN, 1958).
Em termos práticos, o efeito multiplicador da produção de um segmento específico refere-se ao valor monetário que a produção de R$ 1 deste segmento gera para toda a economia. A título de exemplo, um efeito multiplicador hipotético de R$ 1,50 de uma dada atividade significa que esta mesma geraria R$ 1,50 de valor na economia como um todo a cada R$ 1 produzido.
Assim, tão ou mais importante do que o simples cálculo da participação das atividades no PIB, para a determinação da relevância dos setores para o crescimento econômico é fundamental que se leve em consideração tais efeitos multiplicadores. Neste sentido, nem todos os setores que possuem elevada participação no PIB são atividades capazes de impulsionar e “liderar” trajetórias de crescimento econômico.
É de conhecimento amplo que no atual estágio de desenvolvimento das grandes economias, as atividades que predominam na maioria delas pertencem ao setor de serviços. No caso brasileiro, os serviços representaram 63% do PIB em 2020. Nas economias avançadas, este percentual se aproxima de 70%. O gráfico abaixo traz a participação no PIB em anos recentes de atividades consolidadas em agregados macroeconômicos convencionalmente utilizados.
A soma dos percentuais apresentados acima não totaliza 100%. A diferença está nos chamados impostos indiretos, os quais incidem sobre os preços dos bens e serviços (ICMS, IPI, PIS/Cofins, ISS etc.). Nos três anos analisados, a participação se manteve praticamente constante em 14%.
Depois dos serviços, a atividade mais relevante em termos da participação do PIB ainda é a indústria de transformação, a despeito de ter perdido espaço ao longo dos últimos anos. Somando todas as atividades industriais, que abrange além da transformação, a extrativa mineral, a construção civil e a produção e distribuição de eletricidade, gás e água, segundo o critérios das Contas Nacionais empregado pelo IBGE, chega-se a 17,7% do PIB em 2020, ainda assim, bem aquém do setor de serviços.
No entanto, quando tratamos dos efeitos multiplicadores, o panorama é bastante distinto. Apesar da predominância no PIB, verifica-se que o setor de serviços tem “baixo poder de encadeamento produtivo”, com efeitos multiplicadores de produção significativamente menores do que os apresentados pelas demais atividades.
Na análise dos multiplicadores de produção, o grupo de atividades que de longe mais se destaca é a indústria de transformação. A despeito de ter apresentado perda de participação no PIB no período recente, este segmento industrial apresentou aumento em seu efeito multiplicador nos últimos 5 anos, chegando a R$ 2,14 a cada R$ 1 produzido por ela em 2019 e 2020. Vale destacar que os demais segmentos que compõem a indústria também apresentaram efeitos multiplicadores superiores quando comparados aos dos serviços e da agropecuária.
Em suma, estes números deixam claro a relevância da atividade industrial para alavancar e sustentar trajetórias de crescimento econômico. Os segmentos industriais são os grandes compradores de matérias-primas e serviços requeridos para os processos produtivos, sendo capazes de estimular o crescimento da produção de diversas atividades do sistema econômico.
Os elevados efeitos multiplicadores correspondem, assim, a uma das principais marcas da atividade industrial, o que nos permite afirmar que a indústria deve ser entendida como o principal “motor” do crescimento da economia brasileira.
Em geral, a análise sobre o processo de desindustrialização se costuma fazer em torno do acompanhamento da participação da indústria no PIB agregado. Sem dúvida alguma, a forte queda na participação da indústria no PIB brasileiro ocorrida nas últimas décadas merece destaque, uma vez que ocorreu de forma aguda e muito precoce, considerando o ainda reduzido nível de renda per capita.
No entanto, não se pode deixar de atentar para a evolução dos efeitos multiplicadores. A força da atividade industrial também deve ser medida pela sua capacidade de “transbordar” crescimento para outras atividades.
À título de comparação, o peso atual da indústria de transformação dos EUA no PIB norte-americano é de 10,8%, ligeiramente superior à participação da indústria de transformação no PIB brasileiro. No entanto, o efeito multiplicador da indústria norte-americana é significativamente maior, de 2,35 contra 2,14 no caso brasileiro.
Considerando os valores observados de produção da indústria de transformação dos EUA e Brasil, bem como seus respectivos efeitos multiplicadores, é possível realizar alguns exercícios contrafactuais interessantes, como por exemplo a simulação do que ocorreria na hipótese de termos o efeito multiplicador invertido (o brasileiro na indústria norte-americana e o norte-americano na indústria brasileira).
Caso apenas o efeito multiplicador da indústria norte-americana fosse de mesma magnitude da brasileira (mantendo os demais iguais aos observados), a produção total estimulada pela indústria de transformação nos EUA seria US$ 1,3 trilhão menor do que a observada. Já no caso contrário, alterando somente o efeito multiplicador da indústria brasileira de modo a ser equivalente ao da indústria dos EUA, o valor da produção impulsionado pela nossa indústria de transformação seria R$ 746 bilhões maior do que o observado.
Vale destacar que o valor do multiplicador deve ser calculado sempre na unidade monetária do país em questão. Este tipo de exercício comparativo não deve fazer uso de nenhuma conversão monetária com base em taxas de câmbio, uma vez que se trata do efeito multiplicador de cada unidade monetária, independentemente de qual seja.
Os fatores determinantes dos efeitos multiplicadores de produção
Vale destacar os principais fatores que determinam a magnitude dos efeitos multiplicadores e, em linhas gerais, identificar as razões que estão por detrás da evolução recente dos multiplicadores na economia brasileira.
Um primeiro aspecto importante a ser destacado refere-se ao fato de que o efeito multiplicador é consequência direta do perfil da estrutura produtiva. Neste sentido, trata-se de um valor estrutural, que não costuma apresentar oscilações muito significativas de um ano para o outro. Portanto, níveis muito diferentes para o valor do multiplicador das atividades costumam estar associados a estruturas produtivas muito distintas entre si.
O efeito multiplicador da indústria nos EUA é expressivamente maior que o brasileiro na medida em que possui um parque industrial mais homogêneo e integrado, ou seja, com elos produtivos internos mais robustos. Quando se trata de um parque industrial estruturalmente mais heterogêneo, como no caso do caso brasileiro, o grau de integração tende a ser menor e, por conseguinte, a dependência do fluxo de insumos e matérias-primas importados em etapas-chave do processo produtivo é maior.
Podemos entender as etapas-chave como aquelas vinculadas à produção dos chamados bens intermediários, ou seja, os insumos e matérias-primas, em particular aqueles de uso generalizado na própria economia. Dentre estes, podemos destacar desde segmentos de alto valor agregado e conteúdo tecnológico, tais como componentes elétricos, eletrônicos e química fina, até segmentos de menor valor agregado e intensidade tecnológica, como produtos siderúrgicos e resinas termoplásticas.
Dessa forma, efeitos multiplicadores mais elevados estão associados a estruturas produtivas com uma presença mais robusta dos setores produtores de bens intermediários, os quais são capazes de amplificar os impactos positivos sobre o produto decorrentes de um período expansivo da renda e da demanda agregada.
Neste sentido, a desintegração de uma estrutura industrial e produtiva está fundamentalmente associada a “rupturas” nestes segmentos intermediários que cumprem a função de conectar os bens primários (situados no início das cadeias produtivas) aos bens finais (situados no final das cadeias produtivas). À luz da experiência recente da economia brasileira, verifica-se claramente que este processo de desintegração produtiva está em curso. De 2015 a 2020, enquanto o volume produzido de bens intermediários sofreu retração, em termos acumulados, de 7,9%, o volume de bens intermediários expandiu 10,5%.
Vale destacar um exemplo importante e emblemático do real significado da “desintegração produtiva” que vem ocorrendo no país. A atividade agropecuária, entendida por alguns como um possível “motor” de crescimento da economia brasileira a partir da expansão do agronegócio, vem contribuindo para tal desintegração.
Como já mencionado, no ano passado a atividade foi a única dos macrossetores a registrar crescimento, o que permitiu uma importante expansão em sua participação relativa no PIB (de 4,4% em 2019 para 5,9% em 2020). No entanto, o valor do multiplicador desta atividade caiu de R$ 1,75 para R$ 1,67. Esta queda está diretamente relacionada com a elevação do conteúdo importado dos insumos demandados pela atividade agropecuária, entre os quais se destacam diversos bens intermediários industriais (defensivos agrícolas, fertilizantes, combustíveis, autopeças etc.).
Segundo o Boletim de Comércio Exterior do IBRE/FGV (ICOMEX), o volume de bens intermediários de uso na agropecuária cresceu surpreendentes 11% em 2020, ano em que, em função da recessão econômica, a importação total de bens intermediários retraiu 3,6%. Estes resultados reforçam a tese de que o agronegócio não tem condições de ser a base sobre a qual a economia brasileira poderá sustentar trajetórias expansivas.
Voltando ao multiplicador da indústria de transformação, os números apresentados mostram que o pequeno aumento do efeito verificado entre 2015 e 2019/2020 não está associado a qualquer adensamento mais significativo de cadeias produtivas.
A despeito do importante componente estrutural na determinação do valor absoluto do efeito multiplicador, mudanças de caráter mais conjuntural no valor do multiplicador podem ocorrer em função de variações nos chamados preços relativos. No caso da indústria de transformação, quando os preços dos insumos produzidos pelas demais atividades, tais como produtos agropecuários, minerais ou serviços, crescem mais do que os preços de venda dos próprios bens industriais, alterando assim os preços relativos, o efeito multiplicador da indústria de transformação sobe. Em outras palavras, trata-se de um impacto meramente nominal a partir do qual a atividade industrial paga mais caro pelos insumos a cada unidade monetária produzida.
A análise do impacto dos preços relativos requer a abertura setorial do efeito multiplicador. É importante lembrar que o efeito multiplicador agregado da indústria é a soma dos impactos distribuídos entre os vários setores, inclusive dentro da própria indústria. Antes de analisarmos os principais determinantes das modificações setoriais do efeito multiplicador da indústria de transformação brasileira nos últimos anos, convém apresentar a evolução deste detalhamento setorial do multiplicador.
Os dados indicam que cerca de 70% do efeito multiplicador se concentra na própria indústria de transformação, o que se associa diretamente ao grau de integração do parque industrial. Verifica-se, ainda, que o valor do multiplicador que estimula a própria a indústria de transformação está praticamente estagnado no período em análise.
Aqui vale a ressalva de que mudanças de preços relativos também ocorrem dentro do próprio setor de transformação (intraindustrial). Aqui não trataremos destas mudanças, o que requereria desagregar as diversas atividades no âmbito da indústria de transformação. De todo o modo, há evidências de que alterações nos preços relativos intraindustriais tenham contribuído para que não houvesse retrações mais significativas no efeito multiplicador direcionado à própria indústria de transformação.
No entanto, na análise do multiplicador da indústria de transformação voltado aos demais setores, denota-se variações importantes. Com base nos detalhamentos setoriais, verifica-se que a diferença entre os multiplicadores da indústria de transformação recai essencialmente sobre a atividade agropecuária, em particular na passagem entre 2015 e 2020.
Praticamente toda a diferença de R$ 0,03 entre os multiplicadores agregados (R$ 2,14 em 2020 menos R$ 2,11 em 2015) pode ser explicada pela maior expansão dos preços agrícolas, em particular no ano de 2020.
Com base no IGP-DI calculado pela FGV, o Índice de Preço ao Atacado dos produtos agrícolas (IPA-DI Agrícola) cresceu 32,4% apenas no ano passado. Já o IPA-DI Industrial cresceu em velocidade bem menor, de 13%.
Essa discrepância entre preços agrícolas e industriais provocou uma importante alteração nos preços relativos, aumentando os custos dos insumos agropecuários utilizados pela indústria em magnitude muito maior que os preços dos produtos industriais. A maior parte deste impacto recaiu sobre o setor de alimentos, que é o principal responsável da indústria pela demanda de insumos agropecuários
Vale também ressaltar que em uma perspectiva de mais longo prazo, o avanço tecnológico também deve ser considerado como fator importante para a dinâmica dos multiplicadores, tanto no que se refere aos valores totais quanto setoriais.
Por um lado, o progresso técnico tende a levar a ganhos de eficiência produtiva, o que significa produzir uma mesma quantidade de bens ou serviços a partir de uma menor quantidade de insumos e matérias-primas. Neste sentido, pode-se dizer que o avanço tecnológico pode, em alguma medida, atuar como redutor do efeito multiplicador. No entanto, é importante destacar que neste caso, uma queda do multiplicador de produção deve ser contrabalançada por outro efeito, o efeito multiplicador do investimento.
O avanço tecnológico está diretamente associado a maiores dispêndios na forma de investimentos, ou seja, à aquisição de máquinas, equipamentos ou mesmo gastos com pesquisa e desenvolvimento (P&D). Os multiplicadores do investimento captam os efeitos que a demanda por tais itens provocam sobre a expansão da produção das atividades econômicas fornecedoras dos bens de investimento. Infelizmente, os dados relativos ao perfil setorial dos investimentos realizados pelas atividades econômicas ainda não são oficialmente elaborados pelo IBGE. Para obtenção destes dados, é necessário adotar alguma abordagem metodológica de estimação da chamada Matriz de Absorção de Investimento (MAI).
Ademais, o progresso técnico também pode criar conexões até então inexistentes ou pouco significativas, o que pode levar a mudanças não apenas no valor total do multiplicador, mas principalmente em sua composição setorial. Podemos citar como exemplo os impactos da digitalização que vem ocorrendo em várias atividades econômicas, cujos processos produtivos passam a depender cada vez mais da demanda por serviços de tecnologia da informação (TI).
Em função deste movimento, o efeito multiplicador da indústria direcionado aos serviços tende a ser intensificado. No entanto, ao invés de serviços tradicionais e de baixa produtividade, tais como comércio e transporte, o multiplicador industrial direcionado ao setor de serviços passaria a estar crescentemente calcado em serviços modernos e de produtividade mais elevada, tais como os serviços de TI.
Na próxima seção, veremos que no caso brasileiro os serviços de baixa produtividade ainda predominam na estrutura do setor de serviços e, consequentemente, nos estímulos que a atividade industrial gera sobre este setor.
Papel dos Serviços e sua relação com a atividade industrial
O gráfico do detalhamento setorial dos efeitos multiplicadores da indústria sinaliza que a produção de R$ 1 da indústria de transformação estimulou a geração de R$ 0,41 a R$ 0,42 na produção do setor de serviços no período analisado.
Vale lembrar que o setor de serviços se caracteriza também por uma elevada heterogeneidade estrutural, isto é, compreende segmentos diversos, modernos e obsoletos, tanto de alta como de baixa produtividade, conforme mencionado no fim da seção anterior. A MIP utilizada neste trabalho tratou dos serviços de forma agregada, sem considerar as referidas diferenças.
Não pretendemos aqui discutir de forma mais aprofundada a complexidade do setor de serviços, mas apenas destacar alguns aspectos mais gerais que caracterizam a economia brasileira. Do efeito total desencadeado pela indústria de transformação sobre os serviços, chama atenção que, no caso estimado para 2020, a maior parte (58,1%) está voltado às atividades tradicionais de comércio e transporte.
Se novamente compararmos com o caso dos EUA, verifica-se que desagregando setorialmente o efeito multiplicador da indústria sobre os serviços norte-americanos, comércio e transporte aparecem como responsáveis por 39,2% do efeito total. Ou seja, diferentemente do Brasil, nos EUA, a indústria tem conseguido estimular segmentos prestadores de serviços de maior sofisticação tecnológica, com impactos mais relevantes sobre a produtividade do país.
Outro aspecto importante diz respeito aos próprios efeitos multiplicadores gerados pelo setor de serviços. Conforme já discutido, o agregado dos serviços apresenta os menores valores para os efeitos multiplicadores de produção da economia.
Na análise que desagrega os serviços, verifica-se que as atividades predominantes no caso brasileiro (comércio e transporte) apresentam efeitos multiplicadores significativamente acima da média. Em 2020, o efeito multiplicador estimado para o comércio foi de R$ 1,56 e do transporte, de R$ 1,85, ao mesmo tempo em que a média global dos serviços foi de R$ 1,46.
Isso significa que se excluíssemos as atividades tradicionais de comércio e transporte, o efeito multiplicador dos serviços seria ainda menor. Esta constatação é importante para a presente análise, uma vez que as atividades e comércio e transporte possuem especificidades e que merecem ser brevemente aqui destacadas.
São segmentos cuja produção não ocorre de forma autônoma, ou seja, atuam de forma “passiva” no processo produtivo, na medida em que necessitam estar atrelados a algum bem comercializado e/ou transportado. Sendo assim, deve-se ter cautela na análise isolada do efeito multiplicador do comércio e serviços, uma vez que em função das referidas características, devem estar atreladas a fluxos de outras atividades.
Grosso modo, há duas possibilidades para que o comércio ou transporte consigam gerar seus respectivos multiplicadores de produção: ou estão associados a alguma produção interna ou a alguma importação.
No caso da produção interna, os efeitos multiplicadores dos serviços e transporte funcionam como potencializadores de uma expansão prévia da produção agropecuária ou industrial. A venda de bens agropecuários é responsável pela geração de apenas 8,6% no valor de produção do comércio e de 20% no valor da produção da atividade de transporte. Dessa forma, a venda de bens industriais é o que de fato é capaz de sustentar o crescimento destes serviços tradicionais.
No entanto, ao invés de produção interna, tais serviços podem crescer com base na distribuição e comercialização de bens importados. Neste caso, comércio e transporte, em tese, seriam capazes de crescer de forma desvinculada da atividade industrial nacional.
No entanto, além deste tipo de crescimento baseado na expansão da venda de bens importados, ter pouca tração para impulsionar o crescimento, há uma outra importante limitação associada à chamada restrição externa. O aumento da dependência das importações pressiona as contas externas, podendo gerar o acúmulo de déficits comerciais e de transações correntes, os quais podem gerar problemas de insolvência externa e restringir o ritmo crescimento.
Do ponto de vista teórico, este ponto foi tratado e equacionado pela “Lei de Thirwall” (1979), a qual, em linhas gerais, preconiza que no longo prazo o crescimento deveria ser compatível com um saldo em transações correntes equilibrado, ou seja, com os saldos de exportações e importações de igual valor.
Em síntese, embora as atividades de comércio e transporte apresentem efeitos multiplicadores relativamente maiores quando comparados às demais atividades que compõem o segmento de serviços, o que confere alguma capacidade de “puxar” crescimento, trata-se de um crescimento que não se sustenta no tempo. Uma trajetória robusta e sustentável de crescimento ocorre quando as atividades de comércio e transporte operam como potencializadores de uma expansão liderada pela indústria.
Um modelo de crescimento apoiado nestes serviços acoplados às importações, não apenas tem menor potência para alavancar o crescimento econômico, em função dos encadeamentos produtivos mais frágeis que os da indústria, como tem “fôlego curto”.
Ademais, sob a ótica da restrição externa, o enfraquecimento da indústria restringe o crescimento de longo prazo tanto pela via da redução da capacidade exportadora quanto pela via da maior penetração dos bens importados no atendimento da demanda interna, em detrimento da produção doméstica.
Vale brevemente destacar que o último ciclo expansivo da economia brasileira (2006-2013) se encaixa exatamente na hipótese do modelo de crescimento “puxado” por serviços associados às importações e que, portanto, não conseguiu consolidar bases robustas de sustentação.