Carta IEDI
O Brasil no contexto da “crise tripla”
Nos últimos anos, a economia global tem sofrido choques extraeconômicos de grande magnitude, formatando um quadro que organismos internacionais qualificam de “crise tripla”, com origem na pandemia de Covid-19, na guerra na Ucrânia e em eventos climáticos extremos, cuja incidência e intensidade aumentaram significativamente, de acordo com a ONU.
Diante disso, as economias de mercado emergente e em desenvolvimento correm o risco de enfrentar uma nova década perdida. Segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), cerca de 55% dos países em desenvolvimento de renda baixa e 30% das economias de mercado emergente encontravam-se, em meados de 2022, com sobre-endividamento externo ou já em crise de dívida externa.
A nova fase de aperto monetário nas economias avançadas em resposta às pressões inflacionarias provocadas pela “crise tripla” tem agravado ainda mais esta preocupante situação dos países emergentes e em desenvolvimento.
A Carta IEDI de hoje avalia o impacto da “crise tripla” no Brasil em comparação com o agregado das economias emergentes e em desenvolvimento, mas também com o grupo de economias avançadas. Além disso, a performance brasileira também é contrastada com dois blocos regionais: América Latina e Caribe, do qual o Brasil pertence, e Ásia emergente e em desenvolvimento, área de que desponta por seu dinamismo econômico. Por fim, trazemos igualmente dados específicos para países selecionados: Alemanha, França, Estados Unidos e Japão, entre os avançados, e China, Índia, México e Argentina, entre os emergentes.
A comparação se dá por meio de indicadores gerais de desempenho econômico: taxa de crescimento do PIB, taxa de desemprego, inflação, saldo das transações correntes do balanço de pagamentos, resultado fiscal e endividamento público. Dois períodos são considerados, o triênio 2017-2019 e o triênio da “crise tripla”, de 2020 a 2022, sendo que os dados deste último ano se referem às últimas projeções do FMI, divulgadas na edição de out/22 de seu World Economic Outlook, que foi tema da Carta IEDI n. 1169 “Economia Mundial em Desaceleração”.
O efeito da “crise tripla” sobre o crescimento econômico do Brasil foi, até o momento, relativamente tênue na comparação internacional. A taxa média de crescimento de nosso PIB recuou de +1,44% em 2017-2019 para +1,18% em 2020-2022, uma perda de cerca de -0,3 p.p. no período.
Nas economias emergentes e em desenvolvimento (EMEDs) e nos países avançados (EAs), a queda da taxa média de crescimento do PIB em 2020-2022 foi da ordem de 40% a 50% do que era no triênio anterior. No primeiro caso, recuou de +4,34% para +2,82% (-1,51 p.p.) e, no segundo caso, de +2,16% para +1,07% (-1,09 p.p.) no período.
A interação de três principais fatores atenuou esse efeito no Brasil: a política monetária e, sobretudo, fiscal contracíclica durante a pandemia, com destaque para o auxílio emergencial; medidas restritivas anti-Covid-19 relativamente tímidas e a alta dos preços das commodities a partir de 2021, que ganhou impulso com a guerra na Ucrânia e favoreceu o desempenho exportador do país.
Entretanto, vale lembrar o padrão de baixo dinamismo econômico do Brasil que sucedeu à crise de 2015-2016. Antes mesmo do choque da “crise tripla”, nosso desempenho já estava muito aquém daquele das EMEDs e também das EAs. Tanto é que a taxa de desemprego brasileira apresentava dois dígitos e ficava muito acima daquela dos demais países, inclusive vizinhos que também saíam de um período de crise, como a Argentina.
No triênio 2017-2019, o Brasil registrou uma taxa média de desemprego de 12,4% ante 9,1% na Argentina e 3,4% no México. Para o agregado das economias avançadas, o patamar era de 5,2%. Assim, o choque da “crise tripla” não trouxe deterioração adicional no caso brasileiro, que, devido à reação mais forte do setor de serviços no presente ano, registrou um desemprego de 12,2% para a média de 2020-2022.
Este comportamento não chega a destoar entre aqueles países com desemprego elevado no período 2017-2019 da amostra aqui selecionada. No caso da Argentina, a taxa média de desemprego em 2020-2022 manteve-se inalterada em 9,1% e no caso da França apresentou redução bem mais pronunciada do que a brasileira, ao passar de 9,0% para 7,8%.
A “crise tripla” também veio acompanhada de fortes pressões inflacionárias. A recuperação de 2021 provocou desajustes entre demanda e oferta no mercado de matérias-primas, provocando um novo boom de preços das commodities e multiplicando os gargalos nas cadeias globais de valor, o que pressionou os preços dos produtos manufaturados. A guerra na Ucrânia prolongou e em alguns casos amplificou esses desequilíbrios.
Em tal contexto, a inflação atingiu, em meados de 2022, o patamar mais elevado desde 1982 nas economias avançadas e o mais elevado desde 1999 nas economias emergentes e em desenvolvimento. Excluindo a Argentina, o Brasil registrou o maior avanço na inflação entre os dois triênios, de +3,4 p.p., ao passar de 3,6% em 2017-2019 para 7% em 2020-2022, em média.
Ou seja, o ritmo médio da inflação chegou a praticamente dobrar de um período para outro. Mas não estamos sozinhos nesta evolução. Para o agregado das economias avançadas, a inflação mais do que dobrou, saltando de 1,7% em 2017-2019 para 3,7% em 2020-2022. No grupo das EMEDs (de 4,9% para 7,0%,) e na América Latina e Caribe (de 6,8% para 10,1%) os índices foram majorados em algo como 50%.
Outro efeito significativo da “crise tripla” se deu no resultado da conta corrente e, assim, nas necessidades de financiamento externo das EMEDs. Neste quesito, a economia brasileira, exportadora líquida de commodities, registrou uma evolução favorável: o déficit em conta corrente (DCC) recuou quase US$ 20 bilhões, equivalente a 0,8% do PIB. Adicionalmente, no acumulado de jan-set/22, o ingresso líquido de investimento direto externo (5,1% do PIB) foi mais do que suficiente para financiar esse déficit.
Contudo, o recuo do déficit em conta corrente do Brasil, quando medido como porcentagem do PIB, foi menor do que o registrado para a média da América Latina e Caribe (de 2,2% para 1,2%) e para a Argentina e México, que passaram a registrar um superávit em conta corrente equivalente a 0,6% e 0,3% do PIB, tal como o agregado das EMEDs (superávit de 0,9% do PIB em 2020-2022).
Devido às ações de combate dos efeitos econômicos da “crise tripla” e a desaceleração da atividade econômica na maioria dos países, houve deterioração das finanças públicas tanto nas economias avançadas (EAs), como nas emergentes e em desenvolvimento (EMEDs).
No Brasil, apesar da política fiscal contracíclica ter sido relativamente expressiva em 2020, a deterioração do resultado fiscal, de 6,9% do PIB em 2017-2019 para 7,9% do PIB em 2020-2022, foi menor do que na média das EMEDs e na média regional da América Latina e Caribe, cujos déficits primários em relação do PIB praticamente dobraram de um triênio para outro. O espaço fiscal brasileiro, contudo, já se mostrava bem mais estreito do que nos demais países antes da “crise tripla”.
A piora do indicador dívida pública em % PIB também não foi significativa em termos relativos. Embora com um endividamento sensivelmente superior às demais EMEDs, nossa relação dívida pública/PIB subiu de 85,7% na média de 2017-2019 para 93,3% em 2020-2022, enquanto no agregado das EMEDs e no caso dos Estados Unidos aumentou em cerca de 1/5, para 63,9% do PIB e para 128,3% do PIB, respectivamente.
A crise tripla
As economias de mercado emergente e em desenvolvimento (EMEDs) correm o risco de enfrentar uma nova década perdida. Segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), cerca de 55% dos países em desenvolvimento de renda baixa e 30% das economias de mercado emergente encontravam-se em meados de 2022 com sobre-endividamento externo ou já em crise de dívida externa (Devex, 2022).
Também de acordo com o FMI, enquanto as economias avançadas (EAs) devem recuperar a trajetória de crescimento do PIB pré-pandemia em 2022 ou 2023, as EMED não devem recuperá-la até 2024 (IMF, 2022a).
Essa situação preocupante foi provocada pelo encadeamento de três crises: a pandemia do Covid-19, a guerra na Ucrânia e os eventos extremos relacionados à mudança climática cuja incidência e intensidade aumentaram significativamente nos últimos anos (United Nations, 2022).
A nova fase de aperto monetário nas economias avançadas (EAs) em resposta às pressões inflacionarias provocadas pela “crise tripla” tem agravado ainda mais a preocupante situação dos países emergentes e em desenvolvimento.
Esta Carta IEDI avalia o impacto da “crise tripla” na economia brasileira em comparação com os principais grupos de economias (EAs e EMEDs) e regiões (América Latina e Caribe e Asia emergente e em desenvolvimento), quatro EAs (Alemanha, França, Estados Unidos e Japão) e quatro EMEDs (China, Índia, Mexico e Argentina).
A primeira seção analisa o impacto na atividade economia e no mercado de trabalho, a segunda na inflação, a terceira nas contas externas e a quarta seção nas finanças públicas. Em todas as seções, o desempenho das variáveis econômicas no triênio da “crise tripla” (2020-2022) é comparado com o registrado no triênio anterior (2017-2019). Para o ano de 2022 foram consideradas as últimas projeções realizadas pelo FMI e divulgadas no World Economic Outlook, em outubro de 2022.
Atividade econômica e mercado de trabalho
A “crise tripla” teve um maior impacto no desempenho da atividade econômica nas EMEDs do que nas EAs. Na recessão de 2020, as EMEDs foram mais afetadas em função das redes de proteção social precárias e do menor espaço fiscal, enquanto as menores taxas de vacinação contiveram a recuperação de 2021. Em 2022, a guerra na Ucrânia abortou essa recuperação, mas de forma também assimétrica entre as EMEDs.
Nas economias emergentes e em desenvolvimento, o crescimento médio recuou 1,5 ponto percentual (p.p.), de 4,3% em 2017-2019 para 2,8% no triênio 2020-2022, vis-à-vis uma queda de 1,1 p.p. nas economias avançadas.
No âmbito das EMEDs, a Ásia em desenvolvimento e emergente foi mais afetada do que a América Latina e o Caribe: recuos de 2,4 p.p no primeiro caso e alta de 0,2 p.p, no segundo, embora os asiáticos tenham mantido um patamar de crescimento bem mais alto durante em 2020-2022: 3,6% ante 1,1% na América Latina.
Essa diferença decorreu tanto do impacto mais significativo na primeira região dos distúrbios e gargalhos nas cadeias de produção global provocados pela pandemia e pela guerra na Ucrânia, como do efeito favorável da alta dos preços das commodities na segunda região, exportadora de matérias primas energéticas e, principalmente, agrícolas e metálicas.
O efeito da “crise tripla” sobre o crescimento econômico do Brasil, por sua vez, foi relativamente suave, de recuo de 0,3 p.p. frente ao triênio anterior (2017-2019), quando comparado com o grupo de economias emergentes e em desenvolvimento, bem como em relação às economias avançadas.
A interação de três principais fatores atenuou esse efeito: a política monetária e, sobretudo, fiscal contracíclica durante a pandemia; as medidas restritivas anti-Covid-19 relativamente tímidas, e; a alta dos preços das commodities a partir de 2021, que ganhou impulso com a guerra na Ucrânia.
Todavia, o patamar de crescimento médio do Brasil (+1,2%) manteve-se baixo e aquém dos resultados registrados pela média das EMEDs (+2,8%), assim como por China (+4,5%), Índia (+3,0%), Argentina (+1,5%) e Estados Unidos (+1,3%). Ficou em linha com a performance do agregado da América Latina e Caribe (1,1%) e a média das economias avançadas (+1,1%).
A deterioração adicional do mercado de trabalho brasileiro em 2020-2022 também não foi intenso, já que o emprego não havia se recuperado plenamente da crise econômica de 2015-2016.
Considerando os dados disponíveis, a taxa média de desemprego da economia brasileira (-0,2 p.p.) registrou a segunda maior queda entre 2017-2019 e 2020-2022, inferior somente à observada na França (-1.2 p.p) no mesmo período. Em contrapartida, seu patamar foi o mais elevado na média dos dois triênios.
Em 2020-2022, a taxa média de desemprego do Brasil (12,2%) foi mais de duas vezes a média das economias desenvolvidas, de 5,6%. O FMI não divulga a taxa média de desemprego para as economias de mercado emergentes e em desenvolvimento. Uma alternativa é, então, comparar com a taxa média para economias de renda média calculada pela Organização Internacional do Trabalho, que segundo seu relatório World Employment and Social Outlook Trends 2022, foi de 6,3% no triênio 2020-2022 (ante 5,5% em 2017-2019), bem inferior à brasileira.
Inflação
Com a pandemia, a inflação atingiu patamares recordes em décadas, desencadeando rápidas mudanças na orientação da política monetária nas principais EAs e EMEDs, como discutido na Carta IEDI n. 1169. A recuperação de 2021 provocou desajustes entre demanda e oferta no mercado de matérias-primas, provocando um novo boom de preços das commodities, bem como gargalhos nas cadeias globais de valor, pressionando os preços dos produtos manufaturados.
A guerra na Ucrânia amplificou esse boom por dois canais: perturbações na oferta diante do papel central da Rússia e da Ucrânia no fornecimento de gás e cereais; e intensificação de operações especulativas nos mercados futuros de petróleo e alimentos (UNCTAD, 2022).
Neste contexto, a inflação atingiu o patamar mais elevado desde 1982 nas economias avançadas e o mais elevado desde 1999 nas economias emergentes e em desenvolvimento em meados de 2022 (IMF, 2022b).
Considerando as médias dos triênios 2017-2019 e 2020-2022, a inflação ao consumidor avançou 2 p.p. nas EAs e 2,1 p.p. nas EMEDs, alcançando, respectivamente, 3% a.a. e 7% a.a. Além do patamar mais elevado, os impactos da inflação são mais adversos nas EMEDs, sobretudo nas economias de baixa renda, onde as famílias gastam mais da metade da sua renda em alimentos.
Excluindo a Argentina, que sofre um processo inflacionário crônico, o Brasil registrou o maior avanço na inflação entre os dois triênios, de 3,4 p.p., superior aos observados para a média da América Latina e Caribe e das EMEDs, mas não foi o único a registrar aceleração importante.
No agregado das economias avançadas, assim como no caso brasileiro, o patamar de inflação praticamente dobrou entre os períodos analisados: passou de 1,7% para 3,7%. No caso do Brasil, foi de 3,6% para 7,0%, com a diferença que seguimos em um patamar bem acima dos países avançados.
Contas externas
A “crise tripla” em 2020-2022 também teve efeitos significativos no desempenho em conta corrente e, assim, nas necessidades de financiamento externo dos países emergentes e em desenvolvimento (EMEDs). Os canais de transmissão foram a alta dos preços das commodities e as perturbações nas cadeias globais de valor.
As EMEDs importadoras líquidas de alimentos e energia, e com maiores vínculos comerciais com a Ucrânia e a Federação Russa foram mais afetadas, enquanto aquelas exportadoras líquidas de commodities, como o Brasil, foram beneficiadas.
Neste quesito, a economia brasileira, exportadora liquida de cereais e petróleo, registrou uma evolução favorável: o déficit em conta corrente (DCC) recuou quase US$ 20 bilhões (de US$ 46,2 bilhões para US$ 26,6 bilhões), equivalente a 0,8 p.p. do PIB (de 2,4% PIB para 1,6% do PIB). Adicionalmente, no acumulado de janeiro a setembro de 2022, o ingresso líquido de investimento direto externo (IDE) em % do PIB (5,1% do PIB) foi mais do que suficiente para financiar esse déficit.
Embora o recuo do déficit em conta corrente em % PIB tenha ficado em torno da média das EMEDs (0,9 p.p. PIB), ele foi menor do que o registrado para a média da América Latina e Caribe, para a Argentina e para o México (1 p.p. do PIB, 4,2 p.p. do PIB e 1,6 p.p. do PIB). Já o patamar do déficit em conta corrente em % PIB da economia brasileira é maior do que o registrado para a média da América Latina e Caribe, enquanto Argentina e México passaram de DCC para superávits em 2020-2022.
Finanças públicas
A “crise tripla” deteriorou as finanças públicas das economias avançadas (EAs) e dos emergentes e em desenvolvimento (EMEDs) ao aumentar os gastos e reduzir as receitas tributárias. Contudo, o menor espaço fiscal das EMEDs limitou a dimensão das políticas contracíclicas em 2020.
Consequentemente, enquanto o déficit primário nas EAs aumentou 4,7 p.p. entre 2017-2019 e 2020-2022, no caso das EMEDs a alta foi de apenas 2,6 p.p. No Brasil, apesar da política fiscal contracíclica ter sido relativamente expressiva em 2020, a deterioração do resultado fiscal em % PIB (alta de 0,9 p.p. do déficit) foi menor que na média das EMEDs, bem como que na média da América Latina e Caribe e no México.
A piora do indicador da dívida pública em % PIB também não foi significativa em termos relativos. O Brasil registrou a terceira menor alta desse indicador (7,6 p.p.), superior somente à registrada pela média da América Latina e Caribe e pelo México. Todavia, a economia brasileira continuou com o maior patamar desse indicador na comparação com os vigentes na Argentina e México, bem como na média da região e das EMEDs.
Já nas EAs, que tem um maior espaço fiscal, com exceção da Alemanha, tanto os patamares da relação dívida pública/PIB são mais elevados, como o aumento no triênio da “crise tripla” frente ao anterior foi bem maior do que nas EMEDs.
Referências
Devex (2022). IMF chief sees “growing risk of a debt crisis”. Disponível em: https://www.devex.com/news/imf-chief-sees-growing-risk-of-a-debt-crisis-103628
IMF (2022a) World Economic Outlook, cap. 1, Abril.
IMF (2022b) World Economic Outlook, cap. 1, Outubro.
United Nations (2022) “Global impact of war in Ukraine on food, energy and finance systems”, Brief No. 1, 13 April 2022. Disponível em: https://news.un.org/pages/wp-content/uploads/2022/04/UN-GCRG-Brief-1.pdf