Carta IEDI
As economias emergentes face à indústria 4.0
Ao longo de 2018, com base em estudos dos mais importantes organismos internacionais, o IEDI divulgou uma série de análises sobre as profundas transformações pelas quais o sistema produtivo, em geral, e as atividades industriais, em específico, estão passando no mundo todo. Esta Carta IEDI, que dá continuidade à retrospectiva iniciada semana passada com a Carta n. 898, resgata três desses trabalhos que explicitam alguns dos desafios a serem enfrentados pelo Brasil e as demais economias emergentes com a emersão da indústria 4.0.
Ainda que a nova revolução industrial traga implicações importantes sobre vários aspectos em todo os países, o momento é de muita atenção para os países emergentes, notadamente para os da América Latina, que nas últimas décadas apresentaram uma performance inferior a outras regiões em desenvolvimento, sobretudo, em relação ao Leste Asiático.
Como será discutido a seguir, dois traços que são muito característicos dos países latino-americanos – a saber, elevada desigualdade social e inserção acanhada nas cadeias globais de valor, se comparada, por exemplo, às economias asiáticas – correm o risco de serem aprofundados com o avanço da integração entre o mundo físico e o virtual, possibilitada pela maior automação e robotização dos processos produtivos e o desenvolvimento de Internet das Coisas, Big Data, inteligência artificial, além de outras tecnologias 4.0
No primeiro estudo, a UNCTAD, em “Robots, industrialization and inclusive growth”, do “Trade and Development Report 2017”, avalia que os impactos do aprofundamento da automação dos sistemas produtivos por meio de robôs cada vez mais inteligentes devem ser maiores nas economias desenvolvidas do que nas economias emergentes.
Muitos empregos, sobretudo aqueles associados a atividades rotineiras, devem desaparecer nos países de renda alta, mas este processo pode ser, em alguma medida, compensado pela criação de novos postos de trabalho de elevada produtividade. As economias emergentes, contudo, não ficarão imunes. Seu emprego industrial pode ser negativamente afetado pelo processo de reshoring de empresas transnacionais dos países ricos.
Esse movimento reforçaria a tendência à concentração de produto e emprego industrial em um pequeno número de países, tornando a trajetória de upgrading industrial em direção a atividades intensivas em conhecimento mais árdua e dificultando as trajetórias de catching-up de produtividade e renda per capita dos emergentes.
O crescente uso de robôs, portanto, poderia ampliar desigualdades entre as nações e dificultar a inclusão em nível internacional. Tais impactos dependeriam, contudo, do estágio de transformação estrutural em que um determinado país se encontra, de sua posição na divisão internacional do trabalho, de fatores demográficos e também de suas políticas econômicas e sociais.
No segundo estudo, a OCDE, em “The Future of Global Value Chains: business as usual or ‘a new normal’?”, trata da reestruturação das cadeias globais de valor (CGV), fenômeno que passa pelo questionamento político nos países desenvolvidos sobre os benefícios da globalização e pela reorientação dos modelos de desenvolvimento de alguns países emergentes (sobretudo a China) em direção ao mercado interno, mas que também decorre das transformações tecnológicas da indústria 4.0.
Koen de Backer e Dorothée Flaig, pesquisadores da OCDE e autores do estudo, estimam que na próxima década o comércio internacional como % do PIB mundial caia 4,1 pontos percentuais em decorrência da dramática reestruturação das CGV, passando de 27% em 2011 para 23% em 2030.
Quem seriam os maiores perdedores se este cenário vier a se confirmar? Como a competitividade dos países desenvolvidos seria incrementada pelas novas formas de produção, os impactos negativos da reestruturação das CGV se dariam mais intensamente sobre os países emergentes.
Potenciais perdas de emprego industriais, sabidamente de melhor qualidade e maior rendimento, e menores oportunidades de inserção no comércio internacionais por meio de cadeias de valor significam desafios importantes que o futuro pode estar reservando aos países latino-americanos. Por essa razão, o estudo da CEPAL, intitulado “La política industrial 4.0 en América Latina”, de autoria de Mario Castillo, Nicolo Gligo e Sebastián Rovira, busca propor desenhos de política de desenvolvimento industrial compatíveis à realidade da região para potencializar as oportunidades e reduzir os desafios criados pela indústria 4.0.
Constatando que as principais economias latino-americanas, tal como o Brasil, ainda não alcançaram as capacidades mínimas em tecnologias habilitadoras da indústria 4.0 (conectividade, infraestrutura de armazenamento de dados, computação em nuvem, Big Data e Internet das Coisas etc.), os pesquisadores da CEPAL defendem que propostas de política industrial devem compreender três dimensões principais:
• inserção tecnológica internacional: conectar a região às redes tecnológicas internacionais e transferir aos países conhecimentos e capacidades tecnológicas em novas áreas
• infraestrutura e regulação: elevar os níveis de investimento em infraestrutura, particularmente em banda larga fixa e móvel de alta velocidade, assegurando a conectividade e a velocidade requeridas pela Indústria 4.0, ao mesmo tempo em que se avance nos marcos regulatórios e segurança para as redes virtuais
• políticas de oferta e demanda: coordenar as políticas para fortalecer capacidades tecnológicas e promover inovações digitais nos setores produtivos, lançando mão de: linhas de financiamento e aportes de capital às novas empresas, fomento à inovação tecnológica, estabelecimento de centros de pesquisa e execução de programas de compras públicas.
Industrialização e crescimento inclusivo em meio à robotização
Ainda são muitas as dúvidas acerca dos impactos da revolução digital, particularmente da robotização, sobre as formas de organização industrial, o crescimento econômico inclusivo, os ganhos de produtividade, a geração, destruição ou transformação de empregos, entre outros temas. Apontar possíveis desdobramentos da robotização, parte integrante da revolução digital em curso, é tema do capítulo III, “Robots, industrialization and inclusive growth”, do Trade and Development Report 2017, da United Nations Conference on Trade and Development (UNCTAD).
Todo conjunto de novas tecnologias disruptivas que marcaram as revoluções industriais precedentes, desde a máquina a vapor até a eletricidade, o automóvel e a linha de produção, resultou em perda de empregos e rendas menores para alguns setores e segmentos da sociedade, ao menos no curto prazo. Todavia, no longo prazo, os frutos das inovações se difundiram e os benefícios das novas tecnologias mais do que compensaram seus custos. Diversos estudos atualmente se indagam a respeito dos efeitos da nova revolução digital, particularmente sobre os processos produtivos, decorrentes da crescente robotização.
O debate apresenta diferentes visões sobre o fenômeno e seus possíveis desdobramentos. Alguns especialistas acreditam que os ganhos de produtividade associados à robotização serão logo difundidos. Outros, mais pessimistas, argumentam que os avanços em inteligência artificial e robótica desta revolução tecnológica, que permitem a substituição em ritmo acelerado de tarefas não apenas manuais e rotineiras, mas também cognitivas, implicam uma perda de empregos maior do que a criação de novos empregos ao longo do tempo. Mais do que isso, aponta-se o risco de perda de empregos de qualidade. Neste cenário, o crescimento de produtividade apenas beneficiaria os proprietários dos robôs e da propriedade intelectual envolvida bem como trabalhadores altamente especializados em atividades complementares à inteligência artificial, enquanto os demais seriam forçados a empregos precários e de menor qualificação.
Os robôs, em geral, ainda apresentam dificuldades em executar tarefas mais abstratas ou criativas. Do ponto de vista técnico, tendem a desempenhar atividades rotineiras com maior facilidade, o que colocaria em risco os empregos de tal natureza. Entretanto, uma questão a se considerar acerca da substituição de trabalho por capital refere-se ao fato de que o que é tecnicamente viável apenas se concretizará se também apresentar benefícios econômicos. Em outras palavras, é preciso comparar os custos da automação com os custos da mão de obra nas atividades mais rotineiras em que os robôs podem operar.
O setor automotivo é o que apresenta maior potencial para utilização de robôs, uma vez que combina elevada viabilidade tanto técnica como econômica para automação de suas atividades rotineiras. Outros setores manufatureiros, como o de eletrônicos, também poderiam apresentar tal viabilidade. Já setores com custos de mão de obra menores, como o de vestuário, poderiam permanecer menos robotizados, ainda que suas atividades fossem, em grande medida, rotineiras e passíveis de robotização. Logo, a implementação de robôs no processo produtivo varia conforme o setor, o que implica que a distribuição dos efeitos do uso de robôs dependerá da composição estrutural de cada economia.
Industrialização e divisão internacional do trabalho. O processo de industrialização tem apresentado caráter assimétrico ao redor do mundo nas últimas décadas. O aumento de atividades industriais, refletidas em maior produto e emprego industrial na economia como um todo, tem se concentrado no Leste Asiático, sobretudo na China. Em contrapartida, em outras economias em desenvolvimento, observa-se um processo de estagnação da industrialização ou mesmo de desindustrialização prematura, como na América Latina e na África.
A questão, portanto, que se coloca é quais os desdobramentos que a robótica ocasionará. Se o uso de robôs se concentrar naqueles países em que as atividades industriais também passaram a se concentrar, então os ganhos de produtividade e competitividade internacional associados à robotização lhes permitirão evitar um declínio, ou mesmo ampliar, suas próprias atividades industriais. Em decorrência disso, outros países encontrarão dificuldades em se mover ao longo do tradicional caminho de industrialização. Nestes países, a geração de empregos industriais tenderá a se limitar àqueles setores em que o uso de robôs tenha permanecido restringido por razões técnicas ou econômicas.
Segundo os autores do estudo, apesar do relativo exagero sobre o potencial da automação baseada em robôs, o uso atual de robôs industriais ainda permanece pequeno globalmente. Em 2015, o total estimado era de apenas 1,6 milhão de unidades. No entanto, seu uso tem crescido rapidamente desde 2010, e estima-se que deva exceder 2,5 milhões de unidades em 2019. A grande maioria dos robôs industriais em operação está localizada em economias desenvolvidas, que responderam por 60% do estoque total em 2015, com Alemanha, Japão e Estados Unidos somando 43%.
Cabe ressaltar o rápido crescimento recente no uso de robôs industriais em economias em desenvolvimento, notadamente na China. Entre 2010 e 2015, o estoque de robôs industriais na China quadruplicou e, em 2015, sua parcela no estoque global (15,7%) já superava a de Alemanha (11,2%) e a dos Estados Unidos (14,4%), permanecendo apenas um pouco inferior à do Japão (17,6%). A participação das demais economias em desenvolvimento não localizadas no Leste Asiático era muito baixa. Na América Latina e Caribe, por exemplo, totalizava apenas 2%.
O uso de robôs industriais não é somente concentrado em alguns países, mas também em alguns setores. A indústria automotiva respondeu por 40% a 45% do uso anual de robôs entre 2010 e 2015, seguida pelos setores de computadores e equipamentos eletrônicos (cerca de 15%), equipamentos elétricos, eletrodomésticos e componentes (entre 5% e 10%), além do grupo de produtos químicos, de plástico e de borracha, e do setor de máquinas industriais.
A ampla base industrial chinesa é, em parte, responsável pela elevada parcela do país no estoque global de robôs industriais. Todavia, a densidade de robôs, isto é, o número de robôs industriais por empregado na indústria, é maior em países desenvolvidos e antigos países em desenvolvimento que agora se encontram em estágios mais maduros de industrialização, como a Coreia do Sul. Conforme este indicador, as economias em desenvolvimento melhor classificadas são Tailândia (25ª posição), México (27ª posição), Malásia (31ª posição) e China (35ª posição).
A concentração de robôs em setores como o automotivo e o de eletrônicos sugere que a automação baseada na robotização não tem afetado, até o momento, os estágios iniciais de industrialização, isto é, atividades manufatureiras intensivas em trabalho e baseadas nas tradicionais vantagens de custo da mão de obra. Em contrapartida, tem dificultado o upgrading industrial posterior. Logo, os países desenvolvidos e em desenvolvimento com ampla base industrial estão mais expostos à automação com uso de robôs do que os países menos desenvolvidos. Argumentam os autores do estudo que, ao mesmo tempo em que isso não invalida o papel tradicional desempenhado pela industrialização enquanto estratégia de desenvolvimento para países de mais baixa renda, limita o escopo destes países, assentados em setores industriais menos dinâmicos e de menores salários, na trajetória de catching-up da produtividade e da renda per capita com países mais avançados, sobretudo em um contexto de arrefecimento da demanda global.
Cabe destacar que, mesmo nos países em que o uso de robôs é limitado, isto é, em que prevalecem setores industriais intensivos em trabalho e de baixos salários, as oportunidades de emprego e renda podem ser impactadas com o retorno das atividades industriais para países desenvolvidos. Tal movimento, quando ocorre, tem sido acompanhado predominantemente por investimentos intensivos em capital, sendo a pouca geração de emprego resultante desse processo concentrada em atividades altamente especializadas, perfil este bastante distinto das atividades intensivas em trabalho outrora externalizadas para economias menos desenvolvidas.
Produtividade e emprego em nível nacional. A utilização de robôs na produção está associada com o crescimento da produtividade do trabalho. Essa correlação positiva é observada tanto em países com maior densidade de robôs, a exemplo de Alemanha, Japão, Coreia do Sul e Estados Unidos, como em países com densidade modesta, porém com crescentes estoques de robôs, a exemplo de China e Taiwan.
Há também indícios de uma correlação positiva entre maior utilização de robôs na produção e maior participação da indústria no valor adicionado total da economia. Essa relação é mais significativa para as economias cuja densidade de robôs é relativamente maior do que para as economias cuja densidade é pequena. Vale ressaltar, porém, que muitos países em que a utilização de robôs industriais é baixa experimentaram um processo de desindustrialização em termos de redução da participação da indústria no valor adicionado total. Isso reforça o argumento de que o uso de robôs tende a promover uma concentração das atividades industriais em um pequeno número de países.
Conforme esperado, dada a relação positiva entre o uso de robôs e a produtividade do trabalho, observa-se uma relação negativa, embora tênue, entre a variação no uso de robôs e a variação da indústria no emprego total. Em alguns países cuja densidade de robôs é elevada, como Alemanha e Coreia do Sul, bem como países em que o estoque de robôs tem sido crescente, como China, houve aumento, ou apenas uma pequena redução, da participação da indústria no emprego total. China e Alemanha, inclusive, experimentaram um aumento no número absoluto de empregos industriais, enquanto a Coreia do Sul registrou um leve declínio.
Em termos de salários reais, o trabalho da UNCTAD não verificou uma relação muito clara entre variações no uso de robôs industriais e variações de salários reais na indústria para o grupo de países considerados. Maior utilização de robôs esteve associada com crescimento de salário real em todas as economias, exceto México, Portugal e Cingapura, que registraram pequenas reduções. O crescimento de ambos – salários reais e uso de robôs industriais – foi particularmente significativo para a China (cerca de 150% e 55%, respectivamente). É sempre válido lembrar, no entanto, que correlação não implica causalidade entre as variáveis.
Os resultados anteriores indicam que os impactos de um processo de automação baseado na utilização de robôs sobre diversos aspectos da indústria variam enormemente entre os países. Tais impactos, de acordo com a UNCTAD, dependem claramente de condições específicas a cada país, incluindo arranjos institucionais, condições macroeconômicas e iniciativas específicas de cada um em relação à robótica. As políticas econômicas, por exemplo, afetam o impacto da automação sobre a demanda agregada. Se os ganhos de produtividade são distribuídos e os salários reais crescem em linha com o crescimento da produtividade, a automação tenderá a aumentar o consumo privado, a demanda agregada e o emprego total da economia.
Mesmo se este não for o caso, para alguns países o emprego pode ainda se manter estável ou mesmo aumentar se a oferta adicional resultante do crescimento da produtividade baseado na automação for absorvida por acréscimos na demanda externa via exportações. Neste caso, no entanto, quaisquer efeitos adversos da automação sobre emprego e renda seriam transferidos a outros países por meio do comércio, como parece ser, em parte, os casos de Alemanha e México.
Os efeitos que o uso de robôs industriais pode causar e como lidar com tais efeitos ainda dividem a opinião de estudiosos sobre o tema. Alguns especialistas sugerem que reduzir a automação ao taxar robôs daria à economia mais tempo para se ajustar, ao mesmo tempo em que geraria receitas fiscais para financiar o ajuste. Porém, tal imposto dificultaria os usos mais benéficos dos robôs: aqueles em que robôs e trabalhadores são complementares, e aqueles que poderiam levar à criação de novos produtos e empregos baseados na robótica.
Outros especialistas sugerem, com base na preocupação de que os robôs venham a dominar as atividades de maior produtividade e salário comparativamente às atividades em geral a serem realizadas pelos trabalhadores, promover por meio de políticas uma distribuição mais equitativa dos benefícios advindos com o uso crescente dos robôs. Caso contrário, uma vez não controlado o uso dos robôs, seus efeitos distributivos iriam no sentido de aumentar a parcela da renda destinada aos proprietários dos robôs e de sua propriedade intelectual, exacerbando, assim, as desigualdades já existentes.
A robotização também poderia criar novas oportunidades de desenvolvimento. O avanço de robôs colaborativos, os chamados cobots, poderia ser eventualmente benéfico a pequenas empresas, uma vez se adaptando rapidamente a novos processos e requerimentos de produção. A combinação entre robôs e impressão tridimensional (3D) poderia criar possibilidades adicionais para empresas industriais pequenas a fim de superar limitações de tamanho na produção e, assim, conduzir negócios em escala ampliada. Ao mesmo tempo, a robotização poderia levar à fragmentação da oferta global e do comércio internacional de serviços, abrindo novas oportunidades de estratégias de desenvolvimento para economias menos desenvolvidas, embora permaneçam incertos os efetivos ganhos em termos de emprego, renda e produtividade que os serviços digitais podem ocasionar, sobretudo se comparados aos tradicionalmente gerados pelas atividades industriais. Cabe ao conjunto de políticas a serem adotadas ponderar os riscos e benefícios da robotização a fim de escolher qual caminho trilhar.
Indústria 4.0 e o Futuro das Cadeias Globais de Valor
O crescimento das cadeias globais de valor (CGV) tem sido um importante motor da globalização desde as últimas décadas. No entanto, desde a segunda metade dos anos 2000, tem-se observado diversos sinais de estagnação do comércio internacional.
A fim de compreender quais são as mudanças por que passam as cadeias de produção organizadas em âmbito mundial e quais serão seus efeitos sobre o comércio internacional nos próximos 10 a 15 anos, o trabalho da OCDE intitulado “O futuro das cadeias globais de valor” e realizado por Koen de Backer e Dorothée Flaig, identifica as forças a favor da importância crescente das CGV, preservando um quadro de business as usual” bem como as forças que atuarão na direção oposta, pressionando para a formação de um “novo normal”.
Segundo os autores, os motivos para essa relativa estagnação do comércio internacional podem ser organizados em três blocos.
1. O primeiro deles relaciona-se com o crescente questionamento político dos impactos positivos da globalização e de sua relação com o aumento da produtividade, o crescimento econômico e a geração de emprego tanto em países desenvolvidos como em emergentes. Como resultado deste questionamento, observa-se a proliferação no cenário pós crise de 2008, de medidas de protecionismo em inúmeros países.
2. O segundo motivo diz respeito aos impactos que as transformações tecnológicas em curso (subjacentes, grosso modo, à Indústria 4.0) na reconfiguração dos determinantes da competitividade relativa entre países e regiões. Segundo esta interpretação, tecnologias como digitalização, robotização, manufatura aditiva, inteligência artificial, entre outras, seriam responsáveis por diminuir as vantagens de custo (principalmente de mão de obra) dos países emergentes, o que teria impactos nas estratégias de outsourcing global da produção.
3. Já o terceiro motivo que pode contribuir para a recente redução da importância relativa das CGV são as próprias transformações estruturais nos modelos de desenvolvimento de alguns países emergentes, com especial destaque para a China. De maneira geral e com diferentes graus de aprofundamento, pode-se dizer que estes países têm reorientado seu modelo de crescimento cada vez mais para a construção de um mercado interno de massas, em detrimento de um modelo baseado apenas na exportação de produtos de baixo custo.
Assim, em virtude das transformações das configurações nas CGV, os pesquisadores da OCDE esperam que nos próximos 10 a 15 anos a economia mundial sinta importantes impactos na relação entre comércio internacional, crescimento da produtividade, geração de emprego e crescimento do PIB. É neste sentido que o trabalho da OCDE procura analisar os impactos de um conjunto de potenciais transformações na economia mundial (tecnológicas, produtivas, de estrutura de demanda, de custos etc.) no futuro das CGV. Inicialmente, são analisadas as influências de fatores favoráveis ao avanço das cadeias globais, formando um quadro de “business as usual”. Já no cenário denominado “novo normal”, são analisados fatores que tendem a contribuir para a redução da importância relativa das CGV.
“Business as usual”. Apesar das tendências gerais de modificações das CGV nos últimos anos e da consequente redução da importância relativa do comércio internacional como motor do crescimento global, inúmeros fatores de natureza tecnológica e econômica podem contribuir positivamente para o crescimento a o aumento da complexidade destas cadeias nos próximos 10 a 15 anos.
Dentre destes fatores, mais importante é o crescimento exponencial de acordos internacionais de comércio exterior e de investimento bilaterais e regionais, que se multiplicaram desde a década de 1990. Em decorrência das dificuldades de avanços nas negociações multilaterais na Rodada de Doha, as estratégias comerciais de diversos países, desde então, têm concentrado esforços no sentido de promover acordos bilaterais e regionais. Dentre eles, cabe citar as inúmeras iniciativas envolvendo fundamentalmente países da região do Pacífico, com especial destaque para os asiáticos. Vale destacar ainda que tais acordos têm proliferado mesmo em um cenário de crescente questionamento político nos países desenvolvidos sobre os benefícios da globalização e do aumento generalizado de alguns expedientes protecionistas no período pós crise de 2008.
Assim como a proliferação de acordos comerciais, o desenvolvimento e a difusão de novas tecnologias de comunicação tendem a contribuir positivamente para o incremento da importância das CGV. De maneira geral tecnologias como big data, rastreamento via RFID, melhores tecnologias de comunicação, entre outras tendem a otimizar a capacidade de gestão de diversas etapas de cadeias complexas (como produção, gestão de estoque, logística, vendas etc.) e geograficamente bastante dispersas.
Outro elemento de natureza tecnológica que pode contribuir positivamente para o incremento da importância das CGV é o processo de desenvolvimento dos serviços. Isso porque na medida em que o avanço tecnológico torna as fronteiras entre indústria manufatureira e de serviços (de TI, financeiros, de entretenimento etc.) cada vez mais fluídas, observa-se que a oferta de soluções completas, ao invés de apenas produtos físicos, se configura como importante elemento de agregação de valor e fonte de diferencial competitivo. Neste quadro, dada a crescente capacidade de digitalização dos serviços, estes são crescentemente passíveis de terem seu processo produtivo fragmentado e serem organizados em CGV. Como caso precursor desta tendência pode-se destacar a terceirização de atividades de geração de linhas de código para as empresas indianas de TI.
Duas mudanças importantes nos países emergentes também podem contribuir para o crescimento das CGV nos próximos 10 a 15 anos: o surgimento de novos produtores de baixo custo e o crescimento da demanda interna nestes países.
Com o avanço da industrialização e do desenvolvimento tecnológico em alguns países emergentes (notadamente a China), observa-se um movimento recente de terceirização de atividades de produção e montagem de produtos intensivos em trabalho para novas localidades como Vietnã e Camboja. Tais países, utilizando-se de uma abundante oferta de mão de obra, inserem-se em elos das CGV cujo custo do trabalho se configura como principal diferencial competitivo.
Igualmente como resultado dos impactos positivos derivados da integração dos países asiáticos nas CGV durante as últimas décadas, vislumbra-se desde então um crescimento exponencial de seus mercados consumidores domésticos. Com a emergência de uma nova classe média principalmente na China e na Índia, espera-se que a participação da Ásia (excluindo o Japão) no total dos gastos mundiais da classe média aumente de 10% em 2000 para algo em torno de 40% em 2040 e 60% no longo prazo. Apesar do impacto que tal crescimento possa ter na demanda por produtos importados oriundos de CGV, espera-se também que parcela importante desta demanda seja atendida pela produção local.
Outro resultado deste processo de desenvolvimento econômico nos emergentes é a proliferação de empresas multinacionais com sedes nestes países. Segundo estimativas do McKinsey Global Institute, em 2025 os emergentes concentrarão cerca de metade do total de empresas multinacionais. Como decorrência deste crescimento, as multinacionais de países emergentes têm ampliado substancialmente seus investimentos globalmente, contribuindo para o fortalecimento das CGV.
Um “novo normal” das CGV. De maneira oposta aos fatores apresentados anteriormente, incertezas acerca dos futuros custos da participação nas CGV têm levado empresas multinacionais a reavaliarem suas estratégias de sourcing. É neste sentido que se destacam movimentos de incentivo à produção local e busca pela concentração regional da produção em sites próximos dos mercados consumidores.
Um primeiro elemento que pode contribuir para estabelecimento de um “novo normal” nas CGV é a mudança das condições nos países emergentes, principalmente no que diz respeito à redução do diferencial de custos destes em relação aos desenvolvidos. Tal fato é explicado pelo crescimento exponencial dos custos salariais por hora, principalmente na China - cerca de 15% a 20% ao ano na região leste chinesa. No entanto, vale destacar que em inúmeros setores ainda se observa um crescimento da produtividade por hora acima do crescimento dos salários e que estes ainda se situam em patamares bastante baixos quando comparados aos dos países desenvolvidos – representando cerca de 9% do custo salarial dos EUA.
Adicionalmente, cumpre lembrar que uma eventual erosão da competividade dos atuais países integrantes das CGV em setores intensivos em mão de obra não implicaria necessariamente em uma estratégia de deslocamento das atividades produtivas para os países desenvolvidos. Isso porque, conforme já fora mencionado, atualmente está em curso um processo de reorganização destas CGV intra continente asiático, com o deslocamento de atividades intensivas em mão de obra de baixo custo para novos integrantes das CGV como Vietnã e Camboja.
Apesar deste movimento reforçar a competitividade das CGV, é crescente o número de empresas que tem reavaliado os custos extras e dificilmente mensuráveis associados ao processo de fragmentação internacional da produção. Dentre estes destacam-se custos associados à necessidade de manutenção de estoques (dada a complexidade e amplitude das CGV e as flutuações de demanda), alguns problemas de qualidade, a baixa garantia de direitos de propriedade intelectual nos países emergentes, o risco de transferência de tecnologia para potenciais futuros concorrentes, além daqueles riscos relacionados a uma variedade de choques externos como desastres naturais. É exatamente com o intuito de minimizar estes riscos que se situam estratégias inclusive de multiplicar o número de fornecedores nas CGV para o mesmo conjunto de atividades.
De maneira adicional algumas empresas, principalmente em setores ligados à engenharia, têm mostrado preocupação crescente com o potencial impacto negativo que o distanciamento geográfico entre a realização de atividades manufatureiras e inovativas pode ter nas últimas. Uma vez que a maior parte das atividades de maior intensidade tecnológica é realizada nas matrizes, em alguns setores admite-se que o descolamento entre estas e a produção tende a reduzir a capacidade de inovação da empresa no longo prazo.
No que diz respeito à dimensão tecnológica, o desenvolvimento de algumas áreas associadas à emergência da Indústria 4.0 parece ser um dos principais fatores a contribuir decisivamente para o estabelecimento de um “novo normal” nas CGV.
Assim, a novas tecnologias de informação como internet das coisas, computação em nuvem e big data, também podem contribuir para a redução das CGV. Isso porque a combinação destas tecnologias permite a ampliação substancial da robotização do processo produtivo. Com a utilização de robôs cada vez mais complexos dotados de inteligência artificial, a gama de atividades passíveis de serem realizadas por estes amplia-se para além daquelas tradicionalmente rotineiras e repetitivas. Deste modo, a adoção destas tecnologias contribui para a redução do diferencial competitivo de países emergentes com oferta abundante de mão de obra barata.
É exatamente neste cenário que devem ser compreendidas as estratégias de países desenvolvidos no sentido de incrementar a competitividade manufatureira doméstica e, assim, incentivar indiretamente o fortalecimento das atividades produtivas locais. A despeito dessa reação dos países desenvolvidos, também cabe destacar a estratégia de política industrial chinesa de incentivar a ampla e massiva implementação da robotização em seu parque produtivo com o intuito de assegurar sua competitividade em escala internacional.
Ainda na dimensão tecnológica, a emergência de técnicas produtivas que permitem a migração da produção em massa para a customização em massa pode contribuir decisivamente para a reorganização das CGV em alguns segmentos – principalmente aqueles de alto valor agregado, baixo volume de produção, baixas economias de escala e baixa capacidade de automação utilizando tecnologias tradicionais. A partir da utilização de ferramentas como impressão 3D, tais transformações poderiam viabilizar, no longo prazo, a aproximação geográfica entre consumo e produção, reduzindo os custos inerentes à gestão de uma CGV e permitindo o aumento exponencial das possibilidades de agregação de valor aos produtos via customização.
Por fim, potencializando este cenário de tendências de diminuição da importância relativa das CGV, ainda se pode destacar a tendência de aumento dos custos de transporte dadas as políticas de desestímulo de uso de combustíveis fósseis.
Um cenário combinado. Depois de analisar qualitativamente os fatores que tendem a fortalecer as CGVs (“business as usual”) e aqueles que atuam em direção contrária (“novo normal”) o trabalho da OCDE procura mensurar empiricamente quais seriam os impactos da combinação destes dois grupos de fatores nas CGV nos próximos 10 a 15 anos.
De maneira geral o trabalho conclui que os impactos negativos, aqueles do cenário “novo normal”, são dominantes, o que implicaria em uma dramática reestruturação das CGVs. Como resultado seria verificada uma redução das exportações totais, do sourcing de bens intermediários e uma queda de 4,1 pontos percentuais da relação comércio exterior / PIB mundial em 2030.
Os impactos desta reestruturação, por sua vez, seriam mais intensos nos países emergentes, com o incremento da competitividade relativa dos países desenvolvidos, particularmente dos EUA (que aumentariam sua participação na produção global).
Ainda segundo as estimativas dos pesquisadores da OCDE, os principais fatores responsáveis por esta restauração da competitividade dos países desenvolvidos decorreriam da adoção de tecnologias como robotização, digitalização, inteligência artificial, impressão 3D, entre outras. De maneira adicional, porém bem menos intensa, o aumento dos salários nos emergentes também contribuiria para este processo. Já o crescimento exponencial da classe média em países emergentes favoreceria o fortalecimento do comércio regional (principalmente na Ásia). Mas, de maneira geral, pode-se esperar que parcela importante do crescimento da demanda viabilizada pelo surgimento desta classe média seja atendida por produtores locais, com impacto relativamente menor nas CGV.
América Latina entre riscos e oportunidades da Indústria 4.0
A Indústria 4.0 se caracteriza por integração físico-virtual possibilitada pelos avanços tanto em tecnologias de operação, responsáveis por maior automação e robotização dos processos produtivos, como tecnologias de informação, incluindo Internet das Coisas, análise de Big Data e sistemas de inteligência artificial. Seus impactos têm se traduzido em transformações dos modelos manufatureiros tradicionais, desde robotização nas fábricas até processos mais complexos e autônomos ao longo da cadeia de valor.
O trabalho “La política industrial 4.0 en América Latina”, de autoria de Mario Castillo, Nicolo Gligo e Sebastián Rovira, um dos capítulos de “Políticas industriales y tecnológicas en América Latina”, publicado pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) em 2017, discute os avanços que vêm ocorrendo nos países desenvolvidos e, de maneira ainda incipiente, na América Latina sobre o fenômeno da Indústria 4.0 para, diante disso, propor desenhos de política industrial compatíveis à realidade da região.
A análise da Indústria 4.0 em nível internacional envolve cinco dimensões: (i) o impacto econômico da Indústria 4.0; (ii) a velocidade da mudança tecnológica; (iii) os desafios para o desenvolvimento da Indústria 4.0; (iv) a liderança da Indústria 4.0; e (v) a relação entre automação e desemprego.
Os avanços de cada uma das tecnologias associadas à Indústria 4.0, bem como a interação entre elas, produzem mudanças disruptivas nos processos produtivos, com impactos diretos em termos de produtividade, custos e emprego. Também possibilitam maior flexibilidade na produção e surgimento de novos produtos, serviços e modelos de negócios. Há diversas estimativas de empresas de consultoria sobre esses impactos, apontando para importantes ganhos de produtividade e redução de custos de produção, sobretudo em países como Alemanha, mas também Estados Unidos e Japão, a partir da implementação das tecnologias digitais nos processos produtivos.
A inter-relação entre as novas tecnologias, característica da Indústria 4.0, facilita sua rápida difusão, cuja evolução cresce a taxas exponenciais e mais rapidamente que ondas tecnológicas anteriores. As projeções indicam que a consolidação da quarta revolução industrial ocorrerá em torno de uma década. Cinco fatores, considerados chaves para a consolidação da Indústria 4.0, têm apresentado evolução positiva. São eles: (i) maior viabilidade técnica das soluções tecnológicas para automação interativa de processos, atividades e tarefas; (ii) menores custos econômicos das plataformas e soluções de hardware e software; (iii) melhora na rentabilidade econômica de alternativas de automação como consequência de restrições de oferta e maiores custos trabalhistas; (iv) obtenção de benefícios econômicos associados a uma maior eficiência, melhor qualidade e redução de custos; e (v) contexto regulatório favorável.
Há, no entanto, elementos que ainda se apresentam como desafios bastante relevantes ao desenvolvimento da Indústria 4.0. Destacam-se quatro: (i) definição de padrões de comunicação e garantia de segurança das redes frente à transmissão de dados e interoperabilidade entre sistemas; (ii) capacidade analítica de elevado volume de dados, por meio de algoritmos, aplicações e soluções que permitam analisar e administrar os dados coletados por milhares de sensores conectados a máquinas e sistemas; (iii) infraestrutura das redes de comunicação dentro das empresas e das empresas com o ambiente externo, melhorando as condições de conexão e acesso em termos de largura de banda, velocidade e latência; e (iv) disponibilidade de recursos humanos qualificados, com conhecimentos específicos para desenvolvimento, implementação e uso das novas tecnologias digitais.
A Indústria 4.0 tem sido liderada por consórcios de empresas internacionais especializadas em automação industrial, hardware e software, e seu desenvolvimento tem se concentrado em países que apresentam um ecossistema digital sofisticado e fortes alianças público-privadas. Encabeçam o desenvolvimento das novas tecnologias Estados Unidos, Alemanha, Japão e China, nos quais há importantes iniciativas de políticas públicas relacionadas à Indústria 4.0.
Em diversas economias avançadas, observa-se clara redução de empregos industriais, tendência que deve se acentuar com o rápido desenvolvimento das tecnologias associadas à Indústria 4.0. Com a queda dos custos de processamento e armazenamento computacional e o extraordinário avanço alcançado pelas tecnologias de inteligência artificial e robótica, é crescente a automação de tarefas cognitivas antes realizadas apenas por pessoal qualificado. Os impactos negativos da automação sobre o mercado de trabalho em termos da quantidade de empregos, sobretudo rotineiros, já são esperados. Ao mesmo tempo, contudo, argumenta-se que as inovações têm o potencial de aumentar a produtividade e promover a criação de novos postos de trabalho com características distintas às das ocupações tradicionais, de modo que novas habilidades profissionais para manejar e administrar as novas tecnologias sejam requeridas.
A Indústria 4.0 na América Latina. A Indústria 4.0 nos países latino-americanos se encontra em fase incipiente. Ainda é baixa a adoção de tecnologias digitais nos processos produtivos. As atividades digitais na região estão mais associadas ao consumo – por meio do uso da Internet para jogos, redes sociais e comércio eletrônico – do que à produção, cuja automação é baixa. Coloca-se inclusive o risco de que o diferencial tecnológico entre países latino-americanos e países avançados se amplie nos próximos anos, uma vez que os países da região não alcançaram, simultaneamente, as capacidades mínimas requeridas por cinco das principais tecnologias habilitadoras da Indústria 4.0. Tais tecnologias incluem: conectividade, infraestrutura de armazenamento de dados, computação em nuvem, análise de Big Data e Internet das Coisas. A velocidade de conexão e a densidade de sensores e robôs na região, por exemplo, encontram-se bastante aquém do observado em países avançados.
Este atraso tecnológico se traduz em baixo nível de digitalização dos setores industriais na América Latina. A Indústria 4.0 apresenta, todavia, elevado potencial de mudança estrutural dos setores. Seu uso por parte de empresas na região, embora limitado, encontra-se em setores, tais como a indústria automotiva no México e no Brasil, a indústria florestal e extrativa mineral no Chile, a agroindústria na Argentina, além dos setores de energia elétrica, comércio varejista e serviços de logística em diversos países. A região também carece de mais iniciativas públicas relacionadas à implementação e difusão da Indústria 4.0.
A Indústria 4.0, aliás, consiste em importante aliado para enfrentar os desafios de produtividade e competitividade das economias da região, considerando a necessidade de diversificação produtiva, a crescente urbanização e o envelhecimento da população. Identifica-se, porém, a baixa qualidade do sistema educacional como principal obstáculo para que a região se adapte às mudanças tecnológicas. Há fortes restrições de oferta de recursos humanos qualificados e, portanto, a necessidade de formação de trabalhadores adaptados às novas demandas tecnológicas. É necessário que, em paralelo à maior oferta de trabalhadores com nível educacional mais elevado, também ocorra um incremento das atividades que demandem essas capacidades. Logo, educação e capacitação, por um lado, e mudança estrutural da base tecnológica, por outro, devem caminhar juntas para que se produzam efeitos significativos sobre a economia.
A Política Industrial. Neste contexto, cabe se perguntar sobre qual o melhor momento de intervir com uma política industrial 4.0. Ao se esperar para apoiar a transferência tecnológica somente de inovações consolidadas, pode-se perder as vantagens associadas ao líder de uma determinada tecnologia e mesmo ampliar o atraso tecnológico em relação aos países desenvolvidos e demais competidores. Por outro lado, ao se fomentar a rápida adoção de novas tecnologias, pode-se incorrer no risco e nos custos de promover tecnologias que não se transformem na trajetória tecnológica dominante. Sob incerteza tecnológica, cabe avançar em uma política industrial 4.0 mais flexível e inovadora, preparando as empresas para avaliar as tecnologias, fazer bom uso delas, inserir-se na discussão mundial e acelerar os processos de difusão e adoção de novas tecnologias.
Também cabe se perguntar sobre o enfoque da política industrial, se concentrado em esforços para se adotar as tecnologias estrangeiras ou para aproveitar as oportunidades abertas pelas novas tecnologias e pular esta etapa promovendo o desenvolvimento de tecnologias próprias. Esta última possibilidade depende das características dos países, setores, empresas e tecnologias em um contexto de trajetória tecnológica ainda incerto. Vale ressaltar que as diferenças entre países e entre setores de um mesmo país na América Latina são grandes em relação à adoção das tecnologias da Indústria 4.0. Recomenda-se, portanto, desenhar uma política de apoio que contemple tanto a transferência e catching-up tecnológico como também mecanismos para desenvolver inovações em setores estratégicos, atentando-se às distintas realidades dos países da região.
Para o desenho de política, é importante distinguir três categorias de empresas que participam da Indústria 4.0:
1. Pelo lado da oferta, encontram-se as empresas provedoras de automação industrial, sobretudo estrangeiras, com elevada taxa de inovação de produtos, embora com incerteza acerca dos padrões de desenho dominantes.
2. Pelo lado da demanda, estão as empresas industriais locais usuárias que se aproveitam das novas aplicações tecnológicas para melhorar processos e sua operação na cadeia de valor.
3. Pelo lado da infraestrutura, identificam-se empresas locais e estrangeiras de hardware, software e redes de comunicação que oferecem as plataformas de integração de sistemas e comunicação.
A participação de empresas latino-americanas em consórcios internacionais referentes a temas da Indústria 4.0, como segurança e interoperabilidade, assim como a construção de espaços de colaboração público-privados na região com o objetivo de promover inovações industriais por meio da interação entre empresas provedoras e usuárias de tecnologias se configuram em importantes iniciativas de política.
Proposta de Política Industrial 4.0. Os impactos de uma política industrial 4.0, notadamente sobre produtividade, diversificação produtiva e sustentabilidade ambiental, dependerão de seu desenho, alcance e implementação, bem como da evolução e maturidade de cada componente do ecossistema – leia-se, cadeia de valor – da Indústria 4.0. Tal ecossistema é constituído por três componentes principais, a saber, infraestrutura, plataformas e usuários, cujo grau de desenvolvimento determinará o tipo de políticas públicas necessárias em cada país.
A infraestrutura fornece as bases para a conectividade local e internacional a partir de redes de banda larga. As plataformas da Indústria 4.0 abrangem indústrias e serviços, como eletrônica, software e análise de Big Data, que permitem a implementação das aplicações digitais em âmbito industrial. Os usuários se referem às empresas e comunidades que, mediante sua demanda por serviços e aplicações, definirão o grau de absorção das tecnologias digitais. Permeia esse ecossistema da Indústria 4.0 a base institucional da economia, isto é, fatores comuns a distintos mercados e atividades. Diante disso, os investimentos na Indústria 4.0 terão impacto maior na medida em que sejam acompanhados por políticas que assegurem o desenvolvimento de fatores institucionais complementares, por exemplo, nas esferas macroeconômica, de recursos humanos e de inovação.
As propostas de política industrial devem atuar sobre fatores críticos à implementação do ecossistema da Indústria 4.0, reunidos em três dimensões principais. São elas:
1. inserção tecnológica internacional: conectar a região às redes tecnológicas internacionais e transferir aos países conhecimentos e capacidades tecnológicas em novas áreas
2. infraestrutura e regulação: elevar os níveis de investimento em infraestrutura, particularmente em banda larga fixa e móvel de alta velocidade, que permita a conectividade e transferência de dados no montante e na velocidade requeridos pela Indústria 4.0 ao mesmo tempo em que se avance na garantia de marcos regulatórios e segurança para as redes virtuais
3. políticas de oferta e demanda: coordenar as políticas para fortalecer capacidades tecnológicas e promover inovações digitais nos setores produtivos por meio de um conjunto de instrumentos governamentais de apoio, dentre os quais se destacam linhas de financiamento e aportes de capital às novas empresas, fomento à inovação tecnológica, estabelecimento de centros de pesquisa e execução de programas de compras públicas.
Por fim, dado o atraso tecnológico e a elevada heterogeneidade digital entre os países latino-americanos, torna-se imprescindível uma maior cooperação e coordenação regional. Uma iniciativa inédita na região para abordar este desafio consiste na agenda digital para a América Latina e o Caribe (eLAC 2018), que fomenta o uso de tecnologias digitais como instrumentos para o desenvolvimento sustentável. Aos fatores críticos ao desenvolvimento da Indústria 4.0 na América Latina, relacionados a questões de infraestrutura, capacidades tecnológicas e governança, cabem respostas conjuntas e articuladas em âmbito regional, envolvendo todas as partes interessadas na Indústria 4.0, como governo, setor privado e academia.