Carta IEDI
O comércio internacional e os países em desenvolvimento
O comércio internacional vem acumulando sinais de que passa por transformações importantes, embora não esteja claro se serão duradouras ou apenas passageiras. As tensões entre EUA e China compreendem o principal aspecto deste processo, mas não é o único, resultando em redução do crescimento do comércio entre países e prejudicando o desempenho do PIB mundial.
Levantamento anual da OMC, tratado na Carta IEDI n. 908 , mostrou que, de out/17 até out/18, o número de novas medidas restritivas ao comércio internacional avançou 22% frente aos doze meses imediatamente anteriores, abrangendo fluxo de comércio de US$ 588 bilhões, um percentual 6 vezes maior do que um ano antes, e se concentrando em produtos de maior valor agregado e intensidade tecnológica.
Como consequência, as projeções para o dinamismo do comércio mundial em 2019 são cadentes. Como chamaram atenção as edições do Destaque IEDI de 3/4/19 e de 30/8/19, a OMC espera que o volume de comércio cresça +2,6% em 2019, isto é, quase a metade do crescimento de 2017 (+4,6%), e a OCDE avalia que as exportações do G20 declinou -1,9% na passagem do 1º para o 2º trimestre do ano, já descontados os efeitos sazonais.
Esta Carta IEDI que resenha recente estudo da Unctad intitulado “From development to diferentiation: Just how much has the world changed?”, trata de outro tema com potencial efeito sobre a futura estrutura de comércio internacional no futuro. Trata-se a pressão crescente dos países desenvolvidos por mudanças no Tratamento Especial e Diferenciado (TED) dos países emergentes no âmbito da OMC.
Neste trabalho, a Unctad analisa um conjunto de diversos indicadores de desenvolvimento para mostrar que, não obstante os ganhos de alguns países, os gaps econômicos e sociais entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento permanecem significativos, justificando a existência do TED.
Ao integrarem à economia global, os países em desenvolvimento enfrentam um conjunto de desafios diferentes daqueles dos países no topo da escada do desenvolvimento, que foram a aqueles que definiram a ordem multilateral do pós-guerra. Por essa razão, na visão da Unctad, o fortalecimento do comércio internacional multilateral passa pela sua adequação às necessidades específicas dos países em desenvolvimento.
Ao longo dos anos, uma variedade de mecanismos de compensação foi sendo introduzida, muitas vezes de maneira ad hoc, para responder a vieses, assimetrias e gaps no sistema internacional de comércio, que impediam o catch-up dos países pobres, incluindo várias formas de assistência ao desenvolvimento, arranjos de empréstimos multilaterais, instituições especializadas de apoio às políticas e derrogação de regras multilaterais.
No entanto, desde 1990 e mais intensamente desde a crise financeira de 2008, as economias avançadas vêm pressionando pela aplicação uniforme de regras e de responsabilidades que se aplicavam à condição econômica e à posição de um país na divisão internacional do trabalho. Segundo a Unctad, essa reversão tem sido particularmente observada nos temas de comércio.
A pressão ocorre no sentido de que os países mais pobres, em particular os de renda média, já não poderiam ser coletivamente classificados como em desenvolvimento devido aos desempenhos de crescimento divergentes nos últimos anos. Cada caso deveria ser julgado isoladamente em negociações específicas.
Também ganha força a ideia de que não deveria mais ser tolerado o tratamento especial no sistema de comércio conferido aos países em desenvolvimento para ajudar a compensar suas desvantagens econômicas e tecnológicas em relação aos países desenvolvidos, já que tais desvantagens não mais seriam compartilhadas coletivamente.
Além disso, argumenta-se que medidas compensatórias podem estar sendo utilizadas de maneira abusiva por parte das economias emergentes, distorcendo o sistema e prejudicando a sua eficácia e estabilidade.
Na avaliação da Unctad, contudo, não há motivos para mudar os termos nos quais o tratamento especial e diferenciado (TED) foi acordado formalmente para os países em desenvolvimento no âmbito da OMC. Esses países podem estar em diferentes estágios de desenvolvimento. Porém, continuam enfrentando os mesmos vieses e assimetrias na integração à economia global e desafios de desenvolvimento similares.
Além da ampliação do número de pessoas vivendo abaixo das linhas de pobreza, as evidências empíricas mostram a persistência e ampliação das distâncias significativas que separam países desenvolvidos e em desenvolvimento, em termos estruturais, de infraestrutura; de espaço fiscal, emprego, desenvolvimento digital, entre outros. A seguir, alguns aspectos enfatizados pela Unctad que indicam as grandes assimetrias ainda existentes.
• Em muitos países emergentes, a transformação estrutural na direção de atividades de maior produtividade foi estancada com a redução prematura da participação relativa da indústria em suas economias.
• O diferencial da produtividade do trabalho na indústria de transformação nas regiões em desenvolvimento frente aos Estados Unidos continua importante e chegou a aumentar em alguns casos.
• A média do nível educacional atingindo por Brasil, Índia, China e África do Sul (BICS) no final dos anos 2000 é o mesmo alcançado pelos países de alta renda da OCDE na década de 1960.
• Quanto à infraestrutura física, importante pilar do desenvolvimento, as assimetrias são enormes. A extensão das linhas ferroviárias nos países BICS no final dos anos 2000 era 50% daquela dos países ricos da OCDE em 1980.
• Em 2011-2012, os países desenvolvidos coletaram, em média, receita pública equivalente a 41,5% do PIB. Já nos países em desenvolvimento, esta relação chegava a 23,7%. Para Unctad, menos arrecadação implica menos condições de investir em infraestrutura física e humana.
• A informalidade no mercado de trabalho é essencialmente uma característica dos países em desenvolvimento. Na Índia e na China chega a 75%-80% e 50%-74%, respectivamente, enquanto nos Estados Unidos, é inferior a 20%.
• Existe um “fosso digital” entre os países desenvolvimentos e aqueles em desenvolvimento. Para estes últimos, o Índice de Desenvolvimento Digital gira em torno da colocação 77, enquanto para os países desenvolvidos está em 15.
• Apesar dos ganhos alcançados por alguns países nos últimos 25 anos, as tendências do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) também confirmam a grande diferença entre os países em desenvolvimento e os países desenvolvidos.
• À exceção da China e de um pequeno grupo de países, a maioria de países em desenvolvimento encontram dificuldades para ampliar exportações de manufaturados, sobretudo aqueles de maior intensidade tecnológica. Ao contrário, costumam ser importadores destes bens, tais como de TICs.
Em conclusão, o estudo da Unctad argumenta que múltiplos desafios econômicos, sociais e ambientais e suas interações ainda devem ser enfrentados pelos países em desenvolvimento. Por essa razão, as consequências do processo de desenvolvimento só podem ser inteiramente avaliadas pelos próprios países, os quais deveriam ser autorizados a autodeclarar seu status de desenvolvimento para se beneficiar ou não da cláusula TED.
Ademais, a Unctad defende que os países em desenvolvimento disponham de ferramentas e espaço para execução de políticas industrial e de comércio para diminuir os efeitos negativos de sua integração com outras economias em estágio mais avançado de desenvolvimento. Isso ajudaria a superar a armadilha da renda média.
Os pesquisadores lembram que o sucesso chinês até o momento reflete o uso efetivo dessas políticas e as vantagens adicionais extraídas do considerável espaço disponível para as políticas. Em contraste, para outros países em desenvolvimento, esse espaço pode ter encolhido em razão da adesão a certos acordos comerciais ou acordos bilaterais de investimento.
Introdução
Ao integrarem à economia global, os países em desenvolvimento enfrentam um conjunto de desafios diferentes daqueles dos países no topo da escada do desenvolvimento, que definiram a ordem multilateral do pós-guerra. Ao longo dos anos, uma variedade de mecanismos de compensação foi sendo introduzida, muitas vezes de maneira ad hoc, para responder aos vieses, assimetrias e gaps no sistema internacional de comércio, que impedem o catch-up dos países pobres, incluindo várias formas de assistência ao desenvolvimento, arranjos de empréstimos multilaterais, instituições especializadas de apoio às políticas e derrogação de regras multilaterais.
Desde 1947, quando o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT) foi assinado, mais de 100 países em desenvolvimento aderiram ao GATT/OMC, tornando-o um Sistema de Negociação Multilateral significativo, em vez de um “clube de ricos”. É amplamente aceito na literatura que a cláusula de Tratamento Especial Diferenciado (TED) e a “autodeclaração” do status foram os fatores-chave que incentivaram os países em desenvolvimento a aderir ao sistema multilateral de comércio. Na avaliação da Unctad, sem a cláusula TED, esses países teriam sido mais relutantes em fazê-lo ou em contribuir substancialmente para as negociações da Rodada Uruguai, que deu origem à Organização Mundial de Comércio (OMC).
O TED foi formalmente adotado na nova arquitetura internacional do comércio na OMC, permitindo aos países desenvolvidos tratar aqueles em desenvolvimento de modo mais favorável do que outros membros da OMC, concedendo-lhes alguns privilégios e direitos especiais e compensando ou mitigando desvantagens que continuam enfrentando no sistema internacional de comércio. Isso inclui: provisões para aumentar as oportunidades de comércio dos países em desenvolvimento; provisões para que os membros da OMC protejam os interesses dos membros em desenvolvimento; flexibilidade de compromisso, de ação e de uso de instrumentos de política; períodos de transição, assistência técnica e provisões relativas aos países menos desenvolvidos.
O crescimento sustentado de alguns países em desenvolvimento ao longo dos últimos vinte e cinco anos tem estimulado, contudo, o debate no âmbito da OMC acerca da pertinência da classificação coletiva de país em desenvolvimento, que garante o tratamento especial e diferenciado nas negociações internacionais.
Desde 1990 e mais intensamente desde a crise financeira de 2008, as economias avançadas vêm pressionando, sobretudo nos temas de comércio, pela aplicação uniforme de regras e de responsabilidades que se aplicavam à condição econômica e à posição de um país na divisão internacional do trabalho.
O estudo recém divulgado pela Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e Desenvolvimento (Unctad) - From development to diferentiation: Just how much has the world changed?, de junho de 2019 -, que é objeto dessa Carta IEDI, procura lançar luz sobre este debate.
A persistência de assimetrias entre os países
Segundo a Unctad, a alegação de que muitos países em desenvolvimento não necessitam mais da cláusula TED, mesmo como instrumento de ajustamento, se apoia consideravelmente nos dados sobre a pobreza. O número de pessoas em situação de pobreza extrema, vivendo com menos de U$ 1,9 por dia (PPC de 2011), segundo a definição do Banco Mundial, caiu de 1,9 bilhão em 1990 para 735 milhões em 2015, o equivalente a 10% da população mundial. Os dados do Banco Mundial mostram que a pobreza extrema é desafio persistente na África Subsaariana, enquanto a pobreza, pessoas vivendo com menos de US$ 5,5 por dia, é mais concentrada em termos absolutos no sul da Ásia.
Como lembra a Unctad, alguns especialistas consideram que mesmo a referência mais elevada do Banco Mundial (menos de US$ 5,5 por dia) subestima a pobreza mundial. Um nível de renda mais realista de US$ 7,40 por dia indicaria um crescimento expressivo da pobreza mundial desde 1981, atingindo mais de 4,2 bilhões de pessoas em 2018, dos quais 64% residem no sul da Ásia e na África Subsaariana.
Ademais, nas economias avançadas, a definição de pobreza é diferente do padrão de referência do Banco Mundial, sendo usualmente baseada no nível mínimo de renda familiar específica do país. Nos Estados Unidos, por exemplo, a referência de pobreza, introduzida na década de 1960 pelo presidente Lyndon Johnson é de US$ 3 mil por ano para uma família de 4 pessoas, a qual é consideravelmente mais alta do que a referência utilizada atualmente para os países em desenvolvimento: US$ 8,5 por dia a preços de 2011. Segundo a Unctad, medida nesses termos, a pobreza nos países avançados também tem crescido, mas ainda não na mesma escala ou no mesmo grau de privação que se verifica nos países em desenvolvimento.
A renda per capita é frequentemente utilizada como medida do status de desenvolvimento dos países. Essa medida é uma das adotada pelas instituições de Bretton Woods para classificar países, utilizando limites de renda para distinguir grupos de países semelhantes. Diferenças de renda per capita entre os países em desenvolvimento tem sido significativa desde o início dos anos 1960. Porém, desde meados dos anos 1990, essas diferenças têm se ampliado, o que, na interpretação do Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, torna difícil estabelecer um conjunto comum de desafios de desenvolvimento.
A Unctad considera, todavia, que as evidências empíricas não corroboram essa conclusão. A evolução da dispersão do PIB per capita entre os países em desenvolvimento no período 1960 e 2016 mostra o aumento marginal da desigualdade entre os países em desenvolvimento, com algumas economias, notadamente da África e da América Latina, perdendo terreno em comparação com um pequeno grupo de economias de catch-up, os chamados Tigres asiáticos (Hong Kong, Singapura, Coreia do Sul e Taiwan).
Embora os dados de renda per capita ofereçam uma melhor medida de desenvolvimento do que os números de pobreza, estão longe de propiciar um padrão de referência ideal para mensurar o desenvolvimento e o bem-estar. Uma medida mais abrangente como o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) das Nações Unidas mostra que não obstante um aumento em vários países em desenvolvimento nas últimas duas décadas, apenas um número muito reduzido de países em desenvolvimento, caso de Cingapura, conseguiu superar a média da OCDE. As tendências do IDH também confirmam a persistência da grande diferença entre os países em desenvolvimento e os países desenvolvidos.
Mesmo os maiores países em desenvolvimento, como a China e a Índia, classificam-se como 86º e 130º entre 189 países no IDH. A diferença absoluta de renda entre a China e os EUA continua a ser ampla e em alguns indicadores está aumentando. Segundo a Unctad, no recente período de globalização, as chances de os países em desenvolvimento se aproximarem dos países desenvolvidos, isto é, de se moverem dos grupos de renda baixa para média e de média para alta renda, tornaram-se ainda mais difíceis.
Como será visto a seguir, as evidências empíricas reunidas pela Unctad mostram a persistência e ampliação das distâncias significativas que separam países desenvolvidos e em desenvolvimento, tanto em termos estruturais como de infraestrutura, capital humano, emprego, desenvolvimento digital, entre outros.
Divergência estrutural. Segundo a Unctad, de 1950 a 1980, a mudança estrutural em todas as regiões em desenvolvimento seguiu, grosso modo, o padrão previsto e prescrito pelos economistas do desenvolvimento. A parcela da agricultura no valor agregado e no emprego caiu enquanto a parcela da indústria de transformação cresceu, ao lado dos setores de utilidade pública, construção e mineração. Isso ocorre, evidentemente, com considerável variação entre os países, refletindo as condições iniciais e as escolhas de políticas.
Nos períodos subsequentes, a participação da indústria de transformação no valor agregado e no emprego cresceu apenas nas economias asiáticas, declinando na América Latina e África. Na verdade, o estudo ressalta que diversos países em desenvolvimento apresentaram um processo de “desindustrialização prematura”, com a indústria perdendo participação relativa no PIB muito antes da economia alcançar níveis de renda comparáveis aos dos países de industrialização pioneira.
Dados da produtividade do trabalho fornecem uma forte evidência desse padrão e da ruptura no processo de transformação estrutural para várias regiões após 1980. Os diferenciais de produtividade da indústria de transformação nas três regiões em desenvolvimento frente aos Estados Unidos são apresentados na figura abaixo. O diferencial de produtividade da Ásia se reduz acentuadamente, mas ainda permanece atrás da América Latina. De acordo com os pesquisadores da Unctad, uma imagem semelhante descreve a evolução da produtividade do trabalho nos serviços de mercado.
O estudo mostra que o tamanho do setor primário, excluindo mineração e petróleo, como percentual do PIB nos países em desenvolvimento declinou durante várias décadas, mas permanece significativamente maior do que nos países desenvolvidos. Além disso, os níveis atuais da participação do setor primário em inúmeros países em desenvolvimento são muito mais elevados do que aqueles que prevaleciam nas economias desenvolvidas décadas atrás. O relativo encolhimento da economia rural na China desde 1990 foi certamente significativo, mas esse setor permanece muito maior do que em outros países de renda média e consideravelmente maior do que nas economias avançadas. Já na Índia, a mudança estrutural parece não ter avançado no novo milênio.
Esse resultado, como argumenta a Unctad, é corroborado pelos dados de emprego de 2016. As economias de renda elevada empregam a maior parte da força de trabalho no setor de serviços (70%) e somente uma fração muito pequena na agricultura (cerca de 3%), enquanto os países de renda baixa e média apresentam uma estrutura ocupacional bem diferente, com uma parcela ainda substancial (superior a 30%) da força de trabalho no setor agrícola.
Fosso em infraestrutura e capital humano. De acordo com os pesquisadores da Unctad, um exame mais atento das perspectivas de desenvolvimento das maiores economias em desenvolvimento, África do Sul, Brasil, China e Índia (BICS), evidencia que levará muitos anos para os países emergentes do Sul alcançar níveis de produtividade e renda similares ao das economias industrializadas.
É amplamente aceito na literatura que o investimento em infraestrutura humana, social e física é crucial para a transformação estrutural. Os países que educaram mais seus cidadãos e construíram redes de infraestrutura amplas e eficientes tendem a apresentar taxas de crescimento mais rápidas. Nesse sentido, em um dado momento do tempo, essas variáveis podem ser consideradas como condições iniciais que têm uma relevância significativa para as fases sucessivas do desenvolvimento econômico.
Portanto, de acordo com a Unctad, avaliar a abundância relativa de infraestruturas e capital humano nos BICS, em comparação com economias de alta renda, pode ajudar a lançar as mesmas luzes na redução futura do atraso. A média do nível educacional atingindo pelo grupo dos BICS no final dos anos 2000 é exatamente o mesmo alcançado pelos países de alta renda da OCDE na década de 1960.
Em relação à infraestrutura física, que representa outro importante pilar do desenvolvimento, os dados sobre densidade da malha ferroviária e extensão das linhas ferroviárias nos países BICS no final dos anos 2000 é equivalente a 50% daqueles que possuíam os países de alta renda da OCDE em 1980. Os dados da tabela acima sobre os níveis de consumo de energia também revelam uma grande disparidade entre os BICs e as economias avançadas ao longo do processo de desenvolvimento. Os níveis de consumo de energia nos BICS no final dos anos 2000 estavam bem abaixo dos níveis de consumo de energia registrado para as economias avançadas em 1960.
Como ressalta o estudo da Unctad, infraestrutura é, em muitos casos, um bem público e como tal seu provimento pelo mercado é deficiente, sobretudo se esse tiver de mobilizar sozinho os recursos necessários. Ao mesmo tempo, o setor público nos países em desenvolvimento é forçado a mobilizar o financiamento necessário para fazer o trabalho. Em geral, países desenvolvidos possuem um o espaço fiscal maior do que os países em desenvolvimento, uma vez que coletam maiores receitas em porcentagem do PIB.
Base Fiscal. Ao longo do processo histórico de desenvolvimento ocorreu uma ampliação da base fiscal, não só em razão do crescimento do setor moderno e formal das economias, mas também devido ao aperfeiçoamento das legislações, introdução de novos impostos e o fortalecimento da administração fiscal. Mais capacidade de tributação propicia, por sua vez, os meios para atender as demandas dos cidadãos por bens e serviços fornecidos pelo setor público baseados no conceito de Estado de bem-estar social. De modo geral, isso permitiu financiar maiores gastos públicos de alto impacto no crescimento, o que gerou uma inter-relação positiva entre desenvolvimento e espaço fiscal.
Segundo a Unctad, no período 2011-12, os países desenvolvidos coletaram, em média, receitas públicas da ordem de 41,5% do PIB, com as receitas tributárias respondendo sozinhas por 25,5% do PIB. Em contraste, nos países em desenvolvimento, o total de receitas públicas e de receitas tributadas pelo governo geral foi, respectivamente, 23,7% e 16,3% do PIB.
A diferença entre um conjunto de países desenvolvidos e em desenvolvimento em termos de participação das receitas públicas no PIB diminuiu nas últimas duas décadas, como resultado do rápido crescimento e da crescente mobilização de recursos internos no último conjunto. O aumento do rendimento público das exportações de commodities também contribuiu, refletindo preços mais altos das commodities e, em alguns casos, mudanças em termos de contratos acordados com empresas de petróleo e mineração. Porém, como ressalta os autores do estudo, com exceção da Ásia Ocidental, as receitas do governo nos países em desenvolvimento ainda permanecem muito abaixo das dos países desenvolvidos.
Diferencial de emprego. Para a grande maioria das pessoas, as condições de trabalho são o melhor indicador de sua posição econômica e social. De acordo com a Unctad, embora as pesquisas da Organização Internacional do Trabalho (OIT) indiquem um crescimento mais rápido dos salários reais nos países em desenvolvimento em comparação com os países desenvolvidos na última década, o diferencial permanece enorme, e há igualmente diferenças impressionantes e reveladoras em termos da natureza do trabalho.
A natureza informal dos mercados de trabalho tem sido um traço distintivo de longa data entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Utilizando dados recentes da OIT, os pesquisadores da Unctad ressaltam que 60% da população trabalhadora mundial atua no mercado informal, o qual permanece essencialmente como uma característica dos países em desenvolvimento.
Em países como a Índia, por exemplo, a participação do trabalho informal no total do emprego situa-se no intervalo de 75% a 85%, enquanto na China situa-se entre 50% e 74%, enquanto nos Estados Unidos, o trabalho informal é inferior a 20%. De acordo com a Unctad, “esses dados fornecem, por si só, um lembrete gritante de quais países estão verdadeiramente na categoria de economias avançadas”.
Lacuna digital. Enquanto os países em desenvolvimento continuam lutando para alcançar os países desenvolvidos, a quarta revolução industrial digital está colocando novos desafios ao desenvolvimento. Na avaliação dos autores do estudo, a ampliação do gap digital que separa os dois grupos coloca a ameaça de que os países em desenvolvimento não apenas fiquem para trás como serão deixados de lado.
Embora o G20 inclua algumas das maiores economias em desenvolvimento, como Brasil, China, Índia e Indonésia, em termos do seu desenvolvimento digital, esses países estão atrasados na comparação com inúmeros países desenvolvidos. A média dos países em desenvolvimento do G20 na classificação pelo Índice de Desenvolvimento Digital é de 77 enquanto a média dos países desenvolvidos é 15. A China é vista como exportadora em ascensão de produtos digitais, mas ainda ocupa a 80ª posição no ranking do Índice de desenvolvimento em ICT e a Índia ocupa a 134ª posição. Enquanto somente 32% da população usa internet na Indonésia, em países desenvolvidos, como Dinamarca, Japão, Suécia, Suíça e Reino Unido, o uso de internet pela população supera 90%.
Nos próximos anos, o fosso digital poderá ter graves implicações na competividade externa dos países em desenvolvimento. Ainda que a Índia seja considerada um dos maiores exportadores de software, quando se tornam digitalmente preparados para o comércio internacional, a Índia se encontra bastante atrasada frente a países desenvolvidos e em desenvolvimento em termos de sua infraestrutura digital.
Um vislumbre das tendências de comércio de bens de tecnologia de informação e comunicação (TIC) para países em desenvolvimento mostra que, enquanto o comércio líquido de bens totais de TIC é excedente, a tendência é invertida se for examinado o comércio líquido de componentes eletrônicos de TIC. Essas tendências contrastantes ajudam a revelar o forte papel das economias de alta renda como provedores em componentes-chave das cadeias globais de valor utilizados como insumos nos produtos TIC exportados pelos países em desenvolvimento, como computadores, equipamentos periféricos, equipamentos de comunicação e equipamentos eletrônicos de consumo.
Segundo a Unctad, está bem documentado que as cadeias globais de valor (CGVs) são, em geral, organizadas de uma forma em que os países em desenvolvimentos exportam produtos finais que são montados a partir de importações de partes e componentes principais produzidos pelas economias de alta renda. Esse é especialmente o caso dos produtos de tecnologia de informação e comunicação, cujo setor tem sido um dos mais sujeitos a uma ampla segmentação transfronteiriças da produção.
Essa visão estrutural dos fluxos de comércio de bens de TIC é igualmente corroborada pelas tendências do comércio de valor agregado em que os países de alta renda capturam uma grande parcela do valor agregado relacionado às CGVs e os países em desenvolvimento são geralmente relegados ao processo de produção e de baixo valor agregado.
Cadeias Globais de Valor e Desenvolvimento
Segundo a Unctad, a integração bem-sucedida na economia global por meio do aumento dos fluxos de comércio, de capital e de tecnologia é reconhecida como uma parte integral de qualquer círculo virtuoso de desenvolvimento. Contudo, a combinação de vínculos internos e externos não é nem um processo automático nem sem custo. Também não é fácil encontrar o bom equilíbrio dado os vieses e as assimetrias da divisão internacional do trabalho.
O avanço e predominância das cadeias globais de valor (CGVs) desencadearam mudanças na geografia da produção e do comércio nas últimas décadas. Produtos inteiramente fabricados em um país e embarcados para outro para venda final foram substituídos por processos interativos de múltiplos estágios, atravessando diversas fronteiras geográficas e organizacionais, com cada estágio adicionando valor a um produto semiacabado antes de ser enviado ao seu mercado final.
Segundo o Relatório de Desenvolvimento das CGV 2019, mencionado no estudo da Unctad, mais de dois terços do comércio mundial ocorre por meio de CGVs, no qual a produção atravessa, tipicamente, várias fronteiras, antes da montagem final. Esse importante fenômeno das CGVs tem impactado os fluxos de comércio e de investimento, acarretando desafios críticos aos países em desenvolvimento.
Desafios da Integração pelo Comércio. Como sublinha o estudo da Unctad, os fluxos de comércio se aceleraram fortemente na virada do século XX para o século XXI. Diferentemente de episódios anteriores de globalização, essa expansão envolveu a ampliação da participação dos países em desenvolvimento e relativo declínio das economias desenvolvidas no comércio mundial. Todavia, enquanto China e outras novas economias industrializadas da Ásia experimentavam um forte crescimento de suas exportações de manufaturados, baseados em menor custo unitário do trabalho, forte interação entre lucros, investimentos e exportações em setores industriais priorizados pelo Estado e aumento dos fluxos regionais entre economias vizinhas, os benefícios para o resto dos países em desenvolvimento originaram-se, sobretudo, da ampliação das exportações de commodities, com efeitos positivos limitados sobre a mudança estrutural.
A transformação que ocorreu nessa nova fase da globalização foi, de acordo com os pesquisadores da Unctad, parcialmente impulsionada pela fragmentação da produção através das fronteiras nacionais ao longo das emergentes cadeias globais de valores. De um começo modesto, sobretudo nas indústrias de vestuário e eletrônico de consumo na década de 1960, os intercâmbios dentro das redes internacionais de produção se espalharam para muitas outras indústrias, ainda que com notável concentração em indústrias intensivas em capital e em tecnologia, tais como automotiva, tecnologia de informação e comunicação e máquinas. Nesse contexto, a participação das receitas brutas com exportação de produtos industrializados dos países em desenvolvimento no total de suas exportações subiu de um terço em 1980 para cerca de três quartos em 2000, se mantendo nesse nível desde então.
De uma perspectiva de desenvolvimento, as CGV são frequentemente vistas como o primeiro degrau da escada de industrialização, oferecendo uma integração mais produtiva no sistema mundial de comércio. De acordo com a Unctad, a crença subjacente é que o aumento da participação da produção em conjunto com o comércio permite aos países em desenvolvimento e suas empresas domésticas se “integrar na economia mundial ‘com pouco dinheiro’, sem investir em todas as capacidades necessárias para produzir bens ou serviços de A a Z”
Porém, os pesquisadores da Unctad enfatizam que a associação entre a participação nas CGV e o desenvolvimento não é direta. Ao longo das CGV, o vínculo entre o conteúdo tecnológico dos produtos exportados e as atividades de produção pode estar rompido. Assim, uma tarefa específica realizada em um determinado lugar pode ser caracterizada como de baixo conteúdo tecnológico e baixa adição de valor mesmo se o produto final é um bem de alta tecnologia. Alternativamente, a tarefa, por exemplo o design de vestuário, pode ter alto conteúdo de capital humano ou de tecnologia e alto valor adicionado mesmo se o produto final seja considerado de baixo conteúdo tecnológico. Portanto, aqueles países que não conseguirem subir a escada tecnológica ao longo da cadeia irão apropriar-se apenas de uma parcela muito pequena do valor agregado total associado ao produto exportado.
Com uma estrutura legal favorável aos negócios e custos de transporte e logística em uma tendência descendente, tornou-se cada vez mais lucrativo para as empresas exportadoras das economias avançadas segmentar a produção nas CGVs, explorar oportunidades de arbitragem para minimizar os custos trabalhistas e deslocar atividades de baixo valor agregado em países pobres com capacidades produtivas limitadas.
Essa habilidade das corporações transnacionais em transferir plantas industriais e postos de trabalho de baixa e média qualificação enfraqueceu, por sua vez, o poder de barganha dos trabalhadores aumentado a concorrência entre os países em desenvolvimento para atrair investimento direto estrangeiro e enviesando a distribuição dos ganhos de produtividade em favor dos proprietários de capital privado.
Segundo a Unctad, a participação das receitas de capital nas CGVs industriais cresceu 3% entre 2000 e 2014 enquanto a participação da renda dos trabalhadores no estágio de produção (proxies para o trabalho pouco e médio qualificado) declinou 3,7% nos países de alta renda e 1,3% em outros lugares.
Armadilha da Renda Média. Segundo a Unctad, sustentar o crescimento econômico e a produtividade que impulsiona a transformação estrutural é muito mais difícil para os países que alcançaram um nível médio de renda. De um lado, esses países já alcançaram um nível de sofisticação que previne a concorrência nas mesmas bases com os países de baixa renda. De outro lado, ainda carecem de pré-requisitos institucionais e capacidades de produção necessárias para a diversificação em direção a bens mais sofisticados e para competição internacional com os produtores mais avançados. Essas dinâmicas explicam parcialmente porque a maioria dos países de renda média são incapazes de avançar no processo de convergência de renda com as economias ricas.
Além disso, de acordo com os autores do estudo, mesmo quando os países em desenvolvimento conseguem exportar produtos de tecnologia avançada (PTA) relativamente sofisticados, como é o caso da China, os dados de exportação podem ser enganosos sem considerar a hierarquia e a governança das CGVs. Embora as exportações de PTA pela China tenham crescido rapidamente desde meados da década de 1990, inúmeras empresas chinesas continuam, amplamente, envolvidas com operações de montagem de produtos nos segmentos de baixo valor adicionada das CGV, como é caso clássico da posição chinesa na cadeia mundial de produção do iPhone.
Na avaliação dos pesquisadores da Unctad, mover-se para longe desse padrão depende da utilização pelo país de um amplo conjunto de políticas industriais e comerciais e obviamente de possuir um espaço político tão amplo quanto possível para fazê-lo. O sucesso chinês até o momento reflete o uso efetivo dessas políticas e as vantagens adicionais extraídas do considerável espaço disponível para as políticas. Em contraste, para inúmeros países em desenvolvimento, o espaço para políticas encolheu em razão da adesão a diversos acordos de livre comércio ou acordos bilaterais de investimento.
Concentração de mercado e propriedade intelectual. De acordo com a Unctad, os esforços dos países em desenvolvimento, e notadamente a China, para competir em setores de alto valor agregado e de alta tecnologia esbarram em significativas barreiras de mercado e no alto grau de concentração de poder de mercado nas corporações industriais dos países de alta renda. Tendência que piorou bastante após a crise financeira mundial de 2008.
Segundo o estudo, em reflexo da ascensão da China no comércio e nas finanças mundiais, o número de corporação transnacional chinesa subiu de zero para 200 nas últimas duas décadas. Porém, embora participem em parcela crescente dos lucros das 2000 principais corporações transacionais (17% em 2015), essa participação ainda é equivalente a menos da metade das principais transnacionais sediadas nos Estados Unidos. O mesmo ocorre em termos da capitalização de mercado: o valor médio de mercado das empresas chinesas gigantes de tecnologia corresponde a metade das suas contrapartes norte-americanas.
Ademais, em 2015, as transnacionais sediadas em outros países em desenvolvimento respondiam por menos de 10% dos lucros das principais transnacionais, mais ou menos a mesma fatia da década anterior ao longo boom de commodities. Contudo, como ressaltam os pesquisadores da Unctad deve-se ter em mente que uma fração desconhecida dessa pequena parte do lucro acumulado pelas principais transnacionais dos países em desenvolvimento remunerou realmente os investidores do Norte, que possuem ações dessas empresas.
O ranking global de marcas mostra igualmente a grande diferença entre países desenvolvidos e em desenvolvimento em termos da captura de benefícios comerciais à escala mundial. De acordo a Unctad, a última lista disponível da Interbrand revela que, entre as 100 principais marcas mundiais, 99 são propriedade de corporações sediadas em países da OCDE. Uma única marca apenas, a Huwei, é propriedade de uma empresa privada chinesa.
Na opinião dos autores do estudo, o alto grau de concentração das atividades econômicas nos países desenvolvidos também se reflete nos dados de royalties pagos por direitos de propriedade intelectual (DPI). Embora as receitas com royalties dos países em desenvolvimento tenham crescido nos últimos vinte e cinco anos, essas economias tipicamente pagam royalties para os DPI incorporados nas tecnologias estrangeiras utilizadas nas economias domésticas. Como pode ser observado na figura abaixo, os países em desenvolvimento de renda média e média alta por terem economias mais sofisticadas registram receita liquida negativa de royalties muito maiores do que os países de renda média-baixa e baixa, enquanto os países de alta renda recebem receitas líquidas positivas de royalties por DPI.
Enquanto países como Estados Unidos, Alemanha e Japão têm receitas líquidas positivas de royalties por DPI – com destaque para os Estados Unidos –, China, Brasil e Índia registram receitas líquidas negativas de royalties. Esses resultados são, de acordo com os autores, consistentes com os dados do Escritório de Patentes e Marcas dos Estados Unidos (USPTO) que mostram que os Estados Unidos são os maiores detentores de patentes no mundo. Só recentemente China ultrapassou o Brasil e a Índia no número de patentes, mas permanece muito atrás dos Estados Unidos, Japão, Coreia do Sul e Alemanha.
Investimento Estrangeiro Direto. Na avaliação da Unctad, embora as grandes corporações internacionais do Norte mantenham o controle sobre as cadeias globais de valor, propriedade intelectual e marcas, uma possível compensação para os países em desenvolvimento integrados à economia global dominada por essas mesmas empresas é que elas também são a principal fonte de Investimento Estrangeiro Direto (IED). A expectativa é que o investimento estrangeiro traga não apenas capital adicional, mas um pacote completo de outros benefícios que podem ajudar a aumentar a produtividade e a competitividade.
Ao longo das últimas três décadas, num contexto de expansão dos fluxos globais de IDE e da proliferação do acordo de comércio e investimento, a atração de IED tornou-se um objetivo político singular para muitos países em desenvolvimento. No entanto, os autores advertem que é necessária cautela no usar estoques e fluxos como critérios para discriminar os países em desenvolvimento.
Embora durante as últimas décadas, os países em desenvolvimento tenham recebido uma parcela maior de fluxos de IED, bem como se tornado mais visíveis como países de origem de fluxos de capitais, o estoque de investimentos estrangeiros diretos recebidos pelos países em desenvolvimento continua bem abaixo do das economias avançadas. Ademais, se for excluída a China (incluindo Hong Kong), que se tornou o maior recebedor de fluxos de IED, mas também a fonte mais importante de IED para o exterior entre os países em desenvolvimento, a participação do conjunto dos países em desenvolvimento nos influxos de IED é, de acordo com a Unctad, menor do que o dos Estados Unidos.
Os autores destacam que, no caso da China, os influxos de IED aumentaram rapidamente em 1990 e no início de 2000, mas estabilizaram-se desde a crise financeira global de 2008, com uma média de menos da metade dos ingressos para os Estados Unidos no período desde a crise. No geral, a participação chinesa nos influxos totais dos países em desenvolvimento alcançou 20% em 2017. No que se refere aos fluxos de investimento direto no exterior, a distância entre a China e as economias avançadas chega a ser ainda maior. O estoque de capital chinês no exterior é inferior ao da Holanda, uma economia com apenas um décimo quinto do tamanho da economia chinesa.
O aumento dos fluxos tem sido fortemente concentrado em termos de localização e setores. De acordo com a Unctad, os Estados Unidos e a União Europeia responderam por quase metade dos influxos globais de IED em 2017, enquanto a África, a América Latina e as economias em transição nem sequer atingiram os 15%. Além disso, embora em 2017, o investimento na atividade de projeto tenha crescido nas indústrias de manufatura, como produtos químicos e eletrônicos, em geral, os anúncios de greenfield no setor da indústria de transformação permanecem relativamente deprimidos em uma perspectiva de longo prazo.
Isso é particularmente verdadeiro para os países em desenvolvimento: investimentos em projetos novos no setor industrial têm sido consistentemente menor no período 2013-2017 do que no período prévio de cinco anos na África, América Latina e Caribe e na Ásia em desenvolvimento. O grosso dos investimentos greenfield ocorreu no setor de serviço, especialmente em finanças e utilidades públicas, que explicam mais de 50% dos fluxos mundiais. Segundo a Unctad, essa tendência é ainda mais evidente quando se analisa as fusões e aquisições transfronteiriças: 60% das operações ocorrem no setor de serviços e a maioria absoluta refere-se ao ramo financeiro.
Os pesquisadores da Unctad salientam ainda que é preciso ter cautela ao avaliar a conexão entre o IED, tanto os fluxos quanto os estoques, e o nível de desenvolvimento, ou mesmo o potencial de desenvolvimento. Isto é em parte devido a enormes problemas estatísticos que envolvem a definição e medição do IED, mas também porque o impacto do IED (sobre emprego, formação de capital, balanço de pagamentos, crescimento etc.) é difícil de determinar, mas pode ser positivo ou negativo. Nesse sentido, sugerem a importância de os países em desenvolvimento disporem de ferramentas de políticas para garantir que os aspectos positivos da hospedagem de IED superem os negativos.
Conclusões
A interdependência assimétrica que formata as relações entre comércio e desenvolvimento tem sido consistentemente enfatizada pela Unctad desde a sua criação em 1964. A instituição reconhece os méritos das regras multilaterais de comércio e da disciplina na governança econômica global, mas também ressalta a necessidade de aplicação flexível dessas regras por todos os países em desenvolvimento.
Segundo a Unctad, o status de membro em desenvolvimento na OMC garante mais flexibilidade na adoção nas economias domésticas das regras multilaterais de comércio negociadas. A presença dessa flexibilidade tem permitido avançar as negociações na OMC e a construção de confiança dos países em desenvolvimento de que poderão adaptar as regras negociadas às suas especificidades locais. O tratamento especial e diferenciado permite aos países em desenvolvimento alinhar integração comercial e várias prioridades do desenvolvimento, como diminuição da pobreza, segurança alimentar, diversificação econômica, geração de emprego, etc.
A Unctad argumenta que o fato de algumas das diferenças entre países em desenvolvimento e os países desenvolvidos terem se reduzido (enquanto outras se ampliaram) não permite suprimir a designação “em desenvolvimento” como uma forma útil de examinar as diferenças persistentes, os vieses e as assimetrias na economia global e de atenuar os grandes desafios políticos aos quais os países em desenvolvimento são confrontados no século XXI. Somente os próprios países em desenvolvimento possuem o conhecimento adequado de suas condições locais para decidir se eles devem ser classificados como membro em desenvolvimento para se beneficiar ou não da cláusula TED.
A Unctad considera que a diferenciação entre países em desenvolvimento a partir de um subconjunto de critérios é, portanto, um exercício distorcido que pode causar mais problemas na negociação da conclusão da Rodada de Desenvolvimento de Doha na OMC. A finalização da Rodada de Doha precisa ser priorizada para que a confiança no sistema multilateral de comércio seja restaurada e se encontre um caminho para enfrentar muitos outros desafios aos quais comunidade internacional será confrontada no século XXI.
Em conclusão, o estudo argumenta que o desenvolvimento vai muito além de comércio e inclui múltiplos desafios econômicos, sociais e ambientais e suas interações. Nesse sentido, as consequências do processo de desenvolvimento só podem ser inteiramente avaliadas pelos próprios países, os quais deveriam ser autorizados a autodeclarar seu status de desenvolvimento.