Carta IEDI
Contas externas: o desempenho em 2019 e o impacto da Covid-19 no início de 2020
A Carta IEDI de hoje analisa o desempenho das contas externas do Brasil em 2019 e no começo de 2020. Os efeitos da crise do coronavírus reforçaram algumas tendências já presentes no ano passado, sobretudo nas contas financeiras, e dão sinais de arrefecer outras, como a deterioração do saldo das transações correntes.
Em 2019, o déficit nas transações correntes (DTC) da economia brasileira somou US$ 50,8 bilhões, representando 2,76% do PIB o maior percentual desde dezembro de 2015. Frente a 2018, o déficit cresceu +22,2%, condicionado sobretudo pela redução do superávit da balança comercial (-25,7%).
Assim, o choque da Covid-19 atingiu a economia brasileira num momento de deterioração das transações correntes e, consequentemente, maior dependência da absorção de capitais estrangeiros.
Com o agravamento do surto de Covid-19 no mundo todo, esta tendência de piora das transações correntes foi interrompida em 2020. O DTC caiu -30% no acumulado de jan-abr/20 frente ao mesmo período do ano anterior. Muito disso deveu-se à redução dos gastos com viagens, em decorrência do isolamento social, e da saída de rendas de investimentos (lucros e dividendos), desestimulada pela depreciação do real.
O saldo da balança comercial, por sua vez, não registrou melhora. A despeito da forte contração do nível de atividade econômica doméstica, as importações de bens em jan-abr/20 ficaram estáveis, enquanto as exportações encolheram -4,2% ante jan-abr/19. A queda dos preços das commodities e a contração do comércio internacional (da ordem de -11% segundo o FMI) continuarão sendo obstáculos às nossas vendas externas ao longo do ano, ainda que o patamar mais competitivo de nossa taxa de câmbio ajude a amenizar seus efeitos negativos.
Na conta capital e financeiras, o superávit em 2019 chegou a US$ 52,7 bilhões, significando um aumento de +25,5% frente a 2018, o mais intenso desde 2015. Este resultado foi obtido a despeito da forte saída de investimentos de carteira (quatro vezes maior do que em 2018), face à aversão a risco dos agentes financeiros internacionais, e da estabilidade do investimento direto estrangeiro.
Os principais responsáveis pela melhora nas contas financeiras foram, então, a redução de investimentos diretos de brasileiros no exterior e a menor saída de recursos classificados como outros investimentos (moeda, depósitos, empréstimos, crédito comercial etc.).
O resultado da conta capital e financeira no início de 2020, já sob efeito do coronavírus, passou a indicar retrocesso de -42,4%, especialmente devido à fuga de capitais de portfólio. A capitação líquida de investimento em carteira em jan-abr/19 tornou-se saída líquida de US$ 33,8 bilhões em jan-abr/20. Este montante é cerca de três vezes maior do que a fuga de capitais no quadrimestre de out/08 a jan019, isto é, durante a crise financeira global de 2008.
É exatamente o comportamento dos investimentos de carteira, o principal componente do passivo externo de curto prazo, que explica a melhora da situação de vulnerabilidade externa da economia brasileira após o choque Covid-19, de acordo com a maioria dos indicadores calculados pelo IEDI para esta Carta.
Tais indicadores, que apontavam uma deterioração desde dez/18 tanto no curto prazo (liquidez externa), como no médio-longo prazos (solvência externa) passaram a sinalizar uma melhora a partir de dez/19, dada a redução do estoque de investimentos de portfólio de não residentes ( devido a saídas líquidas, depreciação do real e deflação dos preços dos ativos). Outros indicadores, porém, como o utilizado pela Standard & Poors, indicam uma deterioração adicional da vulnerabilidade externa de curto prazo após o choque Covid-19.
A obtenção de recursos financeiros por meio de outros investimentos também foi revertida em saída líquida e os investimentos diretos estrangeiros no Brasil recuaram nada menos do que -23% em jan-abr/20. O saldo líquido de investimentos diretos só não piorou porque investidores brasileiros deixaram de investir no exterior e repatriaram cerca de US$ 5,9 bilhões neste período.
A contar pelo declínio do PIB brasileiro em 2020 e pelas expectativas de contração do IDE no mundo todo da ordem de -30% a -40%, segundo a OCDE e a UNCTAD (Carta IEDI n. 1004), é possível que a alta de 55,9% do saldo líquido de investimentos diretos não se mantenha com o avanço de 2020.
Introdução
Esta Carta IEDI analisa, na primeira seção, os resultados das contas externas brasileiras em 2019 e o impacto do choque Covid-19 nas transações correntes e na conta financeira do balanço de pagamentos no primeiro quadrimestre de 2020. Na segunda seção, a situação de vulnerabilidade externa do país antes e após esse choque é analisada com base em um conjunto de indicadores elaborados pelo IEDI.
O desempenho das contas externas
Em 2019, o déficit nas transações correntes (DTC) da economia brasileira somou US$ 50.762 milhões, 22,2% maior que cifra registrada em 2018 (US$ 41.540 milhões) e mais de 3 vezes superior ao resultado 2017 (US$ 15.015 milhões). Assim, a trajetória de aumento do déficit iniciada em 2018, após três anos consecutivos de recuo, teve continuidade, mas num ritmo menor do que no ano anterior. Já a conta financeira registrou captação líquida de recursos externos de US$ 53.056 milhões, 25% superior ao resultado de 2018 e a cifra mais elevada desde 2015 (US$ 56.152 milhões).
Assim, o choque Covid-19 atingiu a economia brasileira num momento de deterioração das contas externas e, consequentemente, maior dependência da absorção de capitais estrangeiros. Contudo, as transações correntes reagiram positivamente num primeiro momento. A redução de quase 30% do seu déficit no primeiro quadrimestre de 2020 frente ao mesmo período de 2019 decorreu da queda dos gastos em viagens internacionais (como reflexo das medidas de redução da mobilidade e isolamento social) e das rendas de investimentos, já que a depreciação cambial desestimulou as remessas de lucros e dividendos pelas filiais das empresas transnacionais. (respectivamente, 55,3% e 27,5% na comparação dos primeiros quadrimestres de 2020 e 2019).
Nos próximos meses, mesmo se a pandemia for controlada e as medidas de isolamento retiradas, essas duas subcontas devem manter a trajetória descendente frente ao período de 2019 pois outros fatores entrarão em cena, dentre os quais o efeito da queda da renda e do dólar apreciado sobre as viagens internacionais, e a redução dos lucros num contexto de retração da demanda sobre as rendas de investimento.
Além disso, a balança comercial pode melhorar seu desempenho devido ao impacto da recessão já em curso sobre as importações. Do lado das exportações, as perspectivas não são favoráveis diante da contração do comércio internacional, que deve atingir 11% segundo o FMI, e da queda dos preços das commodities (ver Carta IEDI 994).
Ao contrário do observado após a crise financeira global de 2008, os preços de commodities não devem se recuperar de forma rápida e expressiva em função do perfil da política contracíclica anunciada pela China (Financial Times, 2020). De acordo com um estudo divulgado recentemente pela UNCTAD, intitulado “Impact of the COVID-19 pandemic on commodities exports to China”, as exportações de commodities para a China (20% do total mundial), podem cair 46% em comparação com o previsto antes do choque Covid-19.
O impacto do choque Covid-19 nas transações correntes fica mais evidente quando analisamos sua evolução em relação do PIB. Após atingir -2,76% no final de 2019 (0,56 pontos percentuais (p.p.) superior ao registrado em 2018 e o maior percentual desde dezembro de 2015), o DTC/PIB diminuiu para -2,61% em abril de 2020. Com isso, a Necessidade de Financiamento Externo (NFE) – a diferença entre o DTC/PIB e a razão entre o investimento direto externo (IDE) e o PIB – também diminuiu cerca de 0,20 p.p, de -1,51% do PIB (o que significa que o IDE, modalidade mais estável de capital externo, é mais do que suficiente para financiar o DTC) para -1,70% do PIB no mesmo período.
Em contrapartida, a conta financeira, que registra os fluxos líquidos de capitais entre o país e o exterior, sofreu forte deterioração. Como observado nos demais choques externos que atingiram o Brasil no contexto de globalização financeira, o ajuste dessa conta é muito mais rápido e intenso do que das transações correntes em função da reação súbita e “em manada” dos investimentos estrangeiros em carteira no país, usualmente denominados “fluxos de portfólio”. Contudo, essa reação foi muito mais intensa no choque Covid-19 do que na crise financeira global de 2008. A saída desses investimentos atingiu US$ 30 bilhões no primeiro quadrimestre de 2020 (com a liquidação das posições em ações respondendo por 54% e em títulos de renda fixa por 46% desse total) enquanto que no quadrimestre posterior à crise de 2008 (outubro de 2008 a janeiro de 2009) ela somou apenas US$ 11,6 bilhões.
O impacto bem mais significativo deste canal financeiro de transmissão dos choques externos também se observou no total dos fluxos de portfólio de não-residentes nas economias emergentes (IIF, 2020). Ele decorre não só da maior dimensão da crise atual e do aumento da participação dos investidores não-residentes nos mercados de ações e de títulos públicos brasileiros desde 2008, mas também do crescimento da participação dos fundos de investimentos passivos neste total, os quais respondem muito mais rapidamente e intensamente às mudanças nas condições financeiras globais (IMF, 2020).
A seguir, detalha-se o desempenho das transações correntes e da conta financeira em 2019.
Transações Correntes
Na nova metodologia do BOP, as transações correntes são desagregadas em quatro subcontas: (i) balança comercial; (ii) serviços; (iii) renda primária, que corresponde às “rendas” da metodologia anterior; (iv) renda secundária, que equivale às “transferências unilaterais” da metodologia anterior.
O principal determinante do desempenho das transações correntes brasileiras é a balança comercial, que responde às variações da taxa de câmbio e as demandas doméstica e externa. Já os resultados das subcontas de serviços e, sobretudo, rendas, são relativamente rígidos. Neste último caso, seu déficit estrutural decorre das rendas primárias, que correspondem à remuneração do Passivo Externo Líquido - PEL (ativo externo bruto menos passivo externo bruto – ver próxima seção).
Em 2019, a balança comercial brasileira foi superavitária em US$ 39.404 milhões, cifra 25,7% inferior à registrada em 2018, a qual já tinha recuado em relação ao resultado de 2017 (que foi o maior da nova série histórica do BCB que se inicia em 1995; ver Carta IEDI 840). Contudo, enquanto em 2018 sua redução decorreu do aumento mais expressivo das importações em relação às exportações (+21% contra +10%), em 2019 ela foi consequência de uma queda muito mais significativa das vendas relativamente às compras externas (-6,3% contra -0,8%).
Consequentemente, a corrente de comércio também diminuiu (em -3,4%) após três anos consecutivos de crescimento, resultando numa menor integração do Brasil na economia internacional. Provavelmente, perdemos mais uma posição no ranking das exportações mundiais de mercadorias em 2019. Entre 2017 e 2018, descemos um degrau, passando para a 27ª colocação. Isto significa que perdemos 5 posições em 10 anos, já que ocupávamos a 22º posição em 2008 (ver Carta IEDI 968).
As exportações foram negativamente afetadas pelo baixo dinamismo da demanda externa. De acordo com a estimativa atual do Fundo Monetário Internacional (FMI), divulgada em abril último, o crescimento da atividade econômica mundial foi de 2,9% em 2019, o menor ritmo desde 2009 devido, principalmente, à desaceleração do comércio mundial em 2019 como reflexo, sobretudo, da guerra comercial entre Estados Unidos e China (que se acirrou entre maio e agosto, mas sofreu um alívio no final do ano). No cenário atual do FMI, o volume de comércio internacional de bens e serviços deve ter crescido 0,9% em 2019 contra 3,7% em 2018. Adicionalmente, os preços das commodities não-energéticas devem aumentar somente 0,8% contra 1,6% em 2018.
Contudo, a evolução dos demais fatores determinantes foi favorável às vendas externas. Em primeiro lugar, a taxa de câmbio real efetiva (considerando uma cesta ampla de 23 moedas) depreciou 11,3% em 2018 e 4,0% em 2019, tornando nossos produtos mais competitivos no exterior. Em segundo lugar, economias de dimensão continental como a brasileira, as vendas externas são contra-cíclicas em relação à atividade econômica doméstica. Em 2019, a economia brasileira cresceu 1,1%, o que significa uma desaceleração frente aos dois anos anteriores, quando o ritmo de expansão foi de 1,3%.
O efeito líquido dessa combinação de fatores externos e internos é heterogêneo sobre as diferentes classes de produto. Embora todas as classes tenham registrado retração, a maior queda ocorreu nas exportações de manufaturados, cujo valor exportado recuou 11% (frente às quedas de 2% dos básicos e 8% dos semimanufaturados). Na origem deste pior desempenho, encontra-se a ampliação do déficit da balança de bens da indústria de transformação, que é a mais afetada pelas variações das demandas doméstica e externa, bem como da taxa de câmbio real.
Além de fatores conjunturais - a demanda externa global anêmica, a crise econômica em um parceiro importante como a Argentina (que afetou, sobretudo, os produtos da cadeia automobilística) e o resultado negativo de operações envolvendo plataformas petróleo devido a mudanças regulatórias em sua contabilidade (ver Carta IEDI 959) - um fator estrutural também contribuiu para a menor elasticidade das exportações dos bens da indústria de transformação à depreciação cambial.
Anos sucessivos de apreciação cambial (antes da crise financeira global e no imediato pós-crise) e iniciativas insuficientes ou equivocadas no período mais recente de política industrial, tecnológica e de comércio exterior, reduziram a competitividade da indústria brasileira, que não somente perdeu mercados externos (principalmente para a China – ver Carta IEDI n. 972), mas também deixou de produzir vários bens, que passaram a ser importados. Consequentemente, a elasticidade das compras externas à depreciação cambial também diminuiu. Ao mesmo tempo, por serem concentradas em bens intermediários e de consumo duráveis e semi-duráveis, elas são muito elásticas ao desempenho do nível de atividades. Ou seja, a alta do dólar não desestimulou as importações, embora a perda fôlego da recuperação econômica tenha reduzido o ímpeto importador de bens industriais.
Já o déficit da subconta de serviços recuou 1,7%, ritmo bem menor do que o registrado no ano anterior (-5,8%). Ou seja, a trajetória de queda iniciada em 2018 (após a alta de 24,6% em 2017 frente a 2016 no contexto de saída da recessão) teve continuidade, mas perdeu fôlego. As três principais subcontas registraram variação negativa: “viagens” em função da depreciação cambial; transportes como reflexo da menor corrente de comércio; aluguel de equipamentos em função do desempenho da produção da Petrobras.
No caso da subconta de renda primária (resultado líquido das receitas associadas ao ativo externo bruto e do passivo externo bruto), o déficit recuou 4,8% após três anos consecutivos de alta. O principal determinante desse resultado foi a queda em 11,9% das remessas decorrentes das rendas de “Investimento direto - ID” (lucros e dividendos, e juros dos empréstimos intercompanhias). Ao que tudo indica, essa queda decorreu da depreciação do real (que desestimula essas remessas ao reduzir seu valor em dólares), já que o baixo dinamismo da economia brasileira atua no sentido contrário – ou seja, de as estimular – pois as rendas de IDE são contracíclicas em relação ao desempenho econômico doméstico. Quando esse desempenho piora, as empresas transnacionais tendem a aumentar as remessas de lucros e dividendos ao invés de os reinvestir nas filiais brasileiras e vice-versa.
O déficit da renda primária de “Investimento em carteira - IC” (juros, lucros e dividendos) também recuou, mas em menor intensidade (6,6%). A variação cambial atuou no mesmo sentido que no caso das rendas de ID na medida em que a depreciação do real reduz os ganhos dos investidores estrangeiros de portfólio (IDE) em dólares. Já as remessas de rendas primárias de “Outros investimentos - OI” aumentaram significativamente (48,4%) em função da concentração de vencimentos de empréstimos externos. Mas, atualmente, essa modalidade tem a menor participação no total das rendas primárias (de 22,5% contra 28% do IC e 64,7% do ID).
Vale chamar atenção para essa composição, que reflete, por sua vez, a mudança na composição do passivo externo líquido (PEL) do Brasil ao longo dos anos 2000. Enquanto os investimentos de não-residentes no país, denominados em moeda doméstica, aumentaram, esses empréstimos, denominados em dólar, diminuíram. Uma consequência positiva dessa mudança foi a redução do chamado “descasamento de moedas”, que torna o resultado do balanço de pagamentos mais vulnerável a variações da taxa de câmbio (uma depreciação aumenta o valor em moeda doméstica das dívidas em moeda estrangeira). Em contrapartida, a dinâmica produtiva e financeira da economia brasileira se tornou mais dependente das decisões de alocação de portfólio das empresas e investidores não-residentes.
Outra mudança relevante nesse período que também impactou o PEL foi o aumento do ativo externo bruto da economia brasileira em função, sobretudo, do acúmulo de reservas internacionais, mas também do crescimento dos ativos de investidores residentes no exterior. Esse ativo gera rendas primárias (lucros, dividendos e juros) para o país, mas seu valor é muito menor do que as rendas remetidas ao exterior em função, principalmente, da menor dimensão desse ativo em comparação ao passivo e, secundariamente, da sua remuneração mais baixa (já que as reservas são aplicadas em títulos do tesouro americano). As consequências dessa mudança na composição do PEL da economia brasileira para a situação de vulnerabilidade externa são analisadas na última seção desta Carta.
Conta Financeira
O superávit de US$ 52.682 milhões na conta financeira em 2019 decorreu, exclusivamente, do desempenho da modalidade Investimento Direto (ID), que registrou captação líquida de US$ 56.474 milhões. As demais modalidades de capital externo registraram saída líquida de capitais.
Para compreender o resultado da conta financeira em 2019, é importante relembrar as principais mudanças que ocorreram nos anos 2000. Por um lado, a adoção do regime câmbio flutuante e o aprofundamento da integração financeira com o exterior tiveram as seguintes implicações:
(i) o aumento dos investimentos de portfólio de não-residentes no país;
(ii) o aumento, em menor intensidade, dos investimentos de portfólio de residentes no exterior;
(iii) a extinção da cobertura cambial das exportações em 2008 (que permitiu aos exportadores manterem suas receitas em contas bancárias no exterior), pois essas receitas representam ativos de residentes do setor privado não-financeiro no exterior;
(iv) a estratégia precaucional de acúmulo de reservas internacionais, que são ativos externos do governo brasileiro;
(v) o aumento dos ativos de residentes do setor privado financeiro; isto porque, num regime de flutuação suja, nem todo excesso de divisas no mercado de câmbio é adquirido pelo BCB, como num regime de câmbio administrado; parte desse excesso é absorvido pelos bancos que atuam no mercado de câmbio, que são mantidos em contas bancárias no exterior.
(vi) Por outro lado, as empresas brasileiras também aprofundaram seu processo de internacionalização, ou seja, aumentaram seus investimentos diretos no exterior.
Essas mudanças afetaram a dimensão e o perfil do passivo e ativo externos brutos (e, consequentemente, a composição das rendas primárias analisada na seção anterior).
Embora superavitária, o resultado da subconta ID em 2019 foi 25,8% inferior ao registrado em 2018 em função do investimento direto no exterior, que atingiu US$ 22.085 milhões (contra US$ 2.025 milhões no ano precedente). Deste total, 67% decorreu do reinvestimento de lucros (que somou US$ 14.689 milhões). Ou seja, os novos aportes de capital pelas matrizes no Brasil responderam por somente 33% (US$ 5.144 milhões).
Já o investimento direto no país (ou seja, o IDE) somou US$ 78.559, praticamente o mesmo patamar de 2018 (avanço de 0,5%), mas houve uma mudança positiva na sua composição. A modalidade “participação no capital” (que atingiu US$ 67.961 milhões, + 18,6% frente ao ano anterior) respondeu por 86,5% do total em 2019 contra 73,3% em 2018. Consequentemente, o peso das operações intercompanhias passou de 26,7% para 13,5% (US$ 10.599 milhões, cifra 49% inferior à registrada no ano anterior). Um dos condicionantes desse desempenho foi a redução dos patamares de juros da economia brasileira, condicionada pela queda significativa da taxa básica do Banco Central, a taxa Selic, e, assim, do diferencial entre os juros internos e externos, que reduz os ganhos de arbitragem propiciados por essas operações.
No que diz respeito à composição setorial dos ingressos brutos na modalidade “participação no capital”, o setor de serviços absorveu 52,5% do total (US$ 25.708 milhões). Três setores responderam por 50% desse valor: Eletricidade, gás e outras utilidades (19,4%); Comércio, exceto veículos (16,5%); Serviços financeiros e atividades auxiliares (13,7%). A segunda maior participação foi do setor de Agropecuária, pecuária e extrativa mineral, que respondeu por 26,8% do total, a maior participação desde 2010 em função, sobretudo, do forte crescimento (89%) dos investimentos em “Extração de petróleo e gás natural” (75,5% do total desse setor).
Assim, a indústria ficou na posição de “lanterninha” pela primeira vez desde 2010, respondendo por somente 26,8% do total. O total de aportes brutos nas atividades industriais somou US$ 16.835 milhões, 41% inferior ao valor registrado em 2018, em função da redução dos ingressos em praticamente todos os segmentos. Nesse caso, o crescimento anêmico também atua negativamente, somado à baixa competitividade da indústria brasileira.
Esses dois fatores também explicam porque o Brasil não tem se beneficiado, em alguma medida, da guerra comercial entre Estados Unidos e China. Apesar do seu efeito negativo sobre o crescimento mundial (afetando negativamente nossas exportações), o aumento das tarifas de importação americanas sobre produtos chineses tem desviado o comércio e fluxos de IDE para algumas economias emergentes e em desenvolvimento.
Já a subconta Investimento em Carteira (IC) registrou uma forte deterioração. A saída líquida de capitais atingiu US$ 26.196 milhões em 2019 (quase 4 vezes superior à registrada em 2018) em função, sobretudo, da liquidação de posições dos investidores não-residentes em títulos de renda fixa no país e no exterior (75,6% do total). A modalidade “Ações” respondeu por 43% do total. O condicionante geral desse resultado foi o aumento da aversão ao risco dos investidores globais associado às perspectivas negativas em relação ao desempenho da economia mundial diante do acirramento das tensões comerciais entre os Estados Unidos e a China e, em menor medida, dos temores de um Brexit sem acordo (ver Carta IEDI 956).
No último trimestre do ano, o afrouxamento praticamente generalizado da política monetária nas economias avançadas e a atenuação dessas tensões e temores resultaram numa melhora das condições no mercado financeiro internacional e na retomada dos fluxos de portfólio para as economias emergentes, como observou o FMI em seu relatório de janeiro de 2020. Essa melhora se refletiu no desempenho dos investimentos de portfólio em títulos de renda fixa emitidos no exterior, que voltaram ao terreno positivo no último bimestre de 2019.
No caso dos investimentos em títulos de renda fixa no país, além da redução do diferencial de juros, o aumento do risco cambial no cenário atual de incertezas em relação ao desempenho da economia global também contribuiu para desestimular esses investimentos, assim como os investimentos de portfólio em ações. Na atualização do seu cenário em janeiro, isto é, mesmo antes de o surto de Covid-19 ter se tornado uma pandemia, o FMI destaca que o balanço de riscos continuava negativo, embora em menor intensidade do que em outubro. Na revisão de abril, contudo, dado efeito do coronavírus, as perspectivas para a economia global sofreram forte deterioração (Carta IEDI n. 994).
Já a modalidade Outros Investimentos (OI) teve um desempenho menos desfavorável do que em 2018. Tanto os “Outros investimentos - Ativos” (ou seja, de residentes) diminuíram expressivamente (de quase US$ 10 bilhões para cerca de US$ 500 mil devido, principalmente, à redução da concessão de créditos comerciais e adiantamentos), como a saída de capitais na modalidade “Outros investimentos – passivos” recuou de forma significativa (de mais de US$ 11 bilhões para cerda de US$ 1 bilhão). Ou seja, essa modalidade foi menos afetada do que os investimentos de portfólio pelas condições financeiras internacionais adversas nos três primeiros trimestres de 2019.
A situação de vulnerabilidade externa
Para dimensionar a situação de vulnerabilidade externa da economia brasileira nas vésperas e logo após o choque Covid-19 (respectivamente, dezembro de 2019 e abril de 2020) calculou-se um conjunto de indicadores que sintetizam essa vulnerabilidade no curto prazo (liquidez externa) e no médio-longo prazos (solvência externa).
Para avaliar a situação de liquidez externa, foram calculados quatro indicadores, cujo denominador comum é a utilização das reservas internacionais (ou seja, os recursos em divisas que podem ser mobilizados no curto prazo frente a uma saída súbita de capitais externos), se diferenciando somente na composição do numerador, quais sejam:
• Indicador 1: razão entre a dívida externa de curto prazo e as reservas;
• Indicador 2: utilizado pela agência de classificação de risco de crédito Standard & Poors, consiste na razão entre as necessidades brutas de financiamento externo (NBFE) e as reservas, sendo que as NBFE equivalem à soma do saldo em transações correntes, com o principal vencível da dívida externa de médio e longo prazo nos próximos 12 meses e o estoque da dívida de curto prazo;
• Indicador 3: razão entre o Passivo Externo de Curto Prazo (PECP) - equivalente à soma da dívida externa de curto prazo e do estoque de investimentos de portfólio estrangeiros (IPE) - e as reservas;
• Indicador 4: razão entre a soma das NBFE com o estoque de IPE e as reservas, que é o mais abrangente pois mede a pressão potencial total sobre as reservas internacionais do País no curto prazo.
Como pode ser observado nos gráficos a seguir, os patamares dos indicadores 1 e 2, de um lado, e 3 e 4, de outro lado, são bem diferentes devido à inclusão nesses dois últimos do estoque de IPE, que responde atualmente por cerca de 70% do passivo externo de curto prazo. Contudo, os quatro indicadores traçaram uma trajetória ascendente sincronizada entre dezembro de 2018 e dezembro de 2019 pois, além do crescimento do IPE, a dívida externa de curto prazo, o déficit em conta corrente e principal vencível da dívida de médio e longo prazo aumentaram e as reservas diminuíram. Isto significa que nas vésperas do choque Covid-19 todos indicadores indicavam uma deterioração da situação de liquidez externa desde 2018.
A partir de dezembro de 2019, contudo, as trajetórias dos dois grupos de indicadores passaram a divergir em função da redução do estoque de IPE como reflexo de três fatores que atuam simultaneamente em momentos de choques externos:
• Em primeiro lugar, a saída dos investimentos de portfólio que reduzem o seu estoque, que se pode denominar “efeito-fluxo”.
• Em segundo lugar, como o IPE é denominado em reais e convertido em dólares estadunidenses (USD) para ser contabilizado nas estatísticas do balanço de pagamentos, em momentos de depreciação do real seu valor em USD diminuiu.
• Em terceiro lugar, o valor em reais do IPE também diminuiu em função da deflação dos preços das ações e dos títulos de renda fixa provocada pela venda em massa pelos investidores não-residentes.
Ou seja, esses dois últimos fatores decorrem de variações de preços (da moeda e dos ativos financeiros brasileiros), podendo ser denominados “efeito-preço”.
Assim, os indicadores de liquidez externa (e também de solvência, como detalhado a seguir), que incluem o IPE encontravam-se em patamares menores em abril de 2020 relativamente a dezembro de 2019.
Ou seja, enquanto os indicadores 1 e 2 (que é o utilizado pela Standard & Poors) indicam uma deterioração adicional da situação de liquidez externa da economia brasileira após o choque Covid-19 – associada à venda de reservas pelo BCB para conter a depreciação cambial e ao aumento da dívida externa de curto prazo - os indicadores 3 e 4 sugerem uma melhora.
Contudo, o indicador 4, o mais abrangente, continuava acima do valor unitário em abril, o que significa que as reservas internacionais eram menores do que o total da pressão potencial por liquidez em USD no curto prazo que se manifestaria se houvesse uma completa liquidação das aplicações de não-residentes nos mercado de capitais doméstico
Para avaliar a situação de solvência externa de um país, há dois indicadores tradicionais que utilizam no denominador as exportações, a principal fonte de geração autônoma de divisas no caso dos países em desenvolvimento, como o Brasil.
O primeiro é a razão entre o serviço do passivo externo líquido - PEL (remessas de juros, lucros e dividendos) e as exportações acumuladas em 12 meses. O segundo é a razão PEL/exportações acumuladas em 12 meses, que indica o número de anos, dado um determinado fluxo de exportação em 12 meses, necessário para o pagamento do PEL. A condição para que esta razão não tenha uma trajetória explosiva é que a taxa de crescimento do PEL seja inferior ao ritmo de expansão das exportações.
Além desses dois indicadores, essas razões também foram calculadas utilizando-se somente as exportações da indústria de transformação (IT) no denominador, cujos preços são menos voláteis do que das commodities e menos vulneráveis a choques externos:
• Indicador 1: Serviço do PEL/exportações totais;
• Indicador 2: Serviço do PEL/exportações da IT;
• Indicador 3: PEL/exportações totais;
• Indicador 4: PEL/exportações da IT.
No caso dos indicadores de solvência (disponíveis até março de 2020), os dois grupos traçaram uma trajetória divergente desde dezembro de 2018. A capacidade de pagamento do serviço do PEL (indicadores 1 e 2) se manteve estável no período analisado, nos patamares de 0,20 considerando o total das exportações e de 0,40 considerando somente as exportações da IT. Em abril de 2020, o serviço do PEL continuou absorvendo, respectivamente, 20% e 40% dessas exportações.
Já no caso dos indicadores 3 e 4, sua trajetória foi ascendente no período em tela, ou seja, a capacidade de pagamento do PEL a partir da geração autônoma de divisas se deteriorou. O indicador 4 atingiu 5,8 no final de 2019, o maior patamar desde setembro de 2011, sinalizando uma elevada vulnerabilidade externa de médio e longo prazo diante de um colapso das exportações de commodities. Contudo, ambos indicadores diminuíram após o choque Covid-19 porque um dos componentes do PEL é exatamente o investimentos de portfólio estrangeiros, cujo valor se reduziu expressivamente devido à combinação dos dois efeitos (fluxo e preço) explicados acima.