Carta IEDI
A pandemia de Covid-19 e os riscos às CGV
A crise do coronavírus evidenciou riscos a que as Cadeias Globais de Valor (CGV) estão sujeitas, fazendo delas importante meio de propagação do choque econômico adverso de um país para outro e de um setor para outro
Antes mesmo de se tornar uma pandemia o surto de Covid-19 já havia provocado perturbações nas CGV, devido à sua dependência em relação aos insumos e componentes produzidos na China. Por isso, tem se discutido como tornar as CGV mais resilientes, seja por meio da diversificação de fornecedores, seja pela pelo retorno a uma maior nacionalização destas cadeias.
O documento “COVID-19 and Global Value Chains: Policy Options to Build More Resilient Production Networks” publicado pela OCDE analisa os impactos econômicos da pandemia sobre as cadeias globais de valor, apresentando políticas para se promover a segurança do abastecimento e garantir uma recuperação econômica sustentável.
Segundo a OCDE, pode-se elencar quatro diferentes tipos de impactos da pandemia sobre as CGV. Os impactos diretos devido a licenças de saúde de funcionários e protocolos sanitários que implicaram redução de produção em certas empresas. Os indiretos, relacionados à escassez de insumos provenientes de locais que foram diretamente afetados pela pandemia e interromperam a produção.
Os outros impactos envolvem aqueles sobre a demanda, considerados os mais graves, com dimensão global, e aqueles sobre políticas de comércio e de investimento dos países, afetando os fluxos de bens, serviços e capitais internacionais.
Se por um lado a globalização das cadeias deixou as empresas vulneráveis a estes impactos no plano interno e externo, por outro também trouxe soluções que não seriam possíveis se sua configuração fosse apenas nacional e/ou vertical.
Como aponta a OCDE, não há evidencias de que as cadeias de valor domésticas se saíram melhor do que as CGV durante a pandemia. Logo não é possível afirmar que a internacionalização das cadeias agravou a crise do Covid-19.
Para que as empresas garantam resiliência nas cadeias, entendida como a capacidade de voltar rapidamente às operações normais após rupturas, a OCDE afirma ser preciso melhorar suas estratégias de gerenciamento de riscos, ampliando sua capacidade de identificá-los e avaliá-los, ampliar a transparência de informações entre as diversas atividades que adicionam valor e a agilidade na administração da cadeia.
Empresas que priorizam robustez, entendida como a capacidade de manter a normalidade das operações mesmo durante a crise, costumam recorrer a um conjunto amplo de fornecedores alternativos, enquanto as que valorizam a resiliência tendem a preferir relacionamentos de longo prazo com um rol menor de fornecedores.
Segundo a OCDE, os governos devem apoiar os esforços das empresas para construir CGV mais resilientes. Podem fazer isso, por exemplo, por meio de coleta e compartilhamento de informações sobre gargalos nas cadeias, revisando a rede de acordos comerciais internacionais e regimes de investimento, promoção de tecnologias digitais para a gestão de riscos, via o aperfeiçoamento dos procedimentos de compras governamentais de bens essenciais, e um ambiente regulatório favorável.
As CGV na última década
Em meados do mês passado, a OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) publicou um documento intitulado “COVID-19 and Global Value Chains: Policy Options to Build More Resilient Production Networks” (“COVID-19 e cadeias de globais de valor: opções políticas para construir redes de produção mais resilientes”) com o objetivo de analisar os impacto econômicos da pandemia e as consequências para a organização das redes de produção, discutindo políticas para promover a segurança do abastecimento e garantir uma recuperação sustentável.
De acordo com dados da TiVA (Trade in Value Added, OCDE), 70% do comércio internacional correspondem às cadeias de valor, com trocas de matérias-primas, peças e componentes, serviços para empresas e bens de capital. Ademais, as empresas multinacionais respondem por um terço da produção e a metade do comércio mundiais.
A organização das cadeias globais teve como princípio uma maior eficiência (em termos financeiros), considerando o acesso a conhecimento e capital internacionais e a expansão de suas atividades em novos mercados.
Porém, conforme relatado na Carta IEDI 980, a fragmentação da produção em cadeias internacionais vinha se reduzido desde 2011, medida pelo indicador de intensidade de importação global na produção (“este indicador leva em conta todos os fluxos comerciais de insumos intermediários utilizados em qualquer etapa da cadeia de valor e expressa seus fluxos globais de valor como uma parte da produção final - calculado para o mundo, mede o nível geral de fragmentação da produção”, de acordo com OCDE 2020).
As causas estruturais para a redução na fragmentação da produção mundial ao longo dos anos 2010 foram a digitalização das economias (ver Carta IEDI 989), a “servitização” da manufatura e as preferências dos consumidores por processos de produção mais sustentáveis – de forma que se tornou mais eficiente para as empresas produzir mais perto dos consumidores. Além disso, também houve aumento das tensões comerciais, da incerteza e do protecionismo.
Mas a pandemia de Covid-19 suscitou outra questão, que atribui às CGV maior vulnerabilidade em relação à evolução do comércio internacional e da economia global em geral. O fechamento de fábricas na China ao final de janeiro expôs muitas empresas mundiais a perdas de produção, devido à sua dependência em relação aos insumos e componentes chineses.
Por isso, diversos estudiosos e formuladores de políticas estão sugerindo tornar as CGV mais resilientes, por exemplo, diversificando sua base de fornecedores ou os nacionalizando novamente. Mas antes de se discutir as medidas, cabe identificar os diferentes tipos de impactos da pandemia sobre as CGV.
Impactos da pandemia de Covid-19 nas CGV
Para a OCDE, “a Covid-19 é uma crise global de saúde que levou governos e empresas a tomarem medidas excepcionais para proteger a vida dos cidadãos e dos trabalhadores”. Tais medidas prejudicaram a atividade econômica, com queda na produção, aumento do desemprego e redução da demanda.
Segundo a OCDE, as CGV foram impactadas por meio de quatro canais:
1) Diretamente, quando as empresas perderam volume de produção devido aos cuidados com saúde, seja porque alguns funcionários adoeceram, seja por causa de protocolos de distanciamento. Não se trata, porém, de um impacto específico da CGV, mas sim se e em que intensidade o local de operação da planta produtiva foi afetado pela pandemia e quais as medidas de restrição à disseminação do vírus foram tomadas por empresas e governos.
2) Indiretamente, devido à necessidade de se adquirir insumos e componentes provenientes de um local diretamente impactado pela Covid-19 cujas empresas instaladas tiveram que interromper a produção. Estes impactos indiretos também sucedem durante desastres naturais ou problemas nas redes de transporte internacional, sendo específicos de cada cadeia tanto em dimensão global como nacional.
3) O impacto mais forte da pandemia foi, contudo, sobre a demanda das empresas. A crise é global e a queda da demanda, de diferentes graus em cada região do globo, foi transmitida de país para país. No âmbito da empresa, os impactos podem ser positivos ou negativos, a depender do setor e sua relação com a pandemia (por exemplo, alimentos e certos medicamentos tiveram aumento de demanda, enquanto automóveis e turismo sofreram intensa retração). Mas em termos agregados, para a economia como um todo, as perdas são evidentes, em todos os setores da indústria de transformação.
4) Desdobramentos sobre as políticas de comércio e de investimento dos países têm sido frequentes, envolvendo, por exemplo, proibições de exportação de medicamentos e aparelhos médicos. Há também ações de crédito para empresas, renegociação de pagamento de tributação etc.
Apesar das interrupções e do menor rendimento, diversas CGV continuaram a operar sem grandes problemas durante a crise da Covid-19, tanto as de bens e serviços essenciais, como as de não-essenciais. Por exemplo, na cadeia de valor dos eletrônicos (não essencial), uma das principais empresas, a Samsung, relatou não ter enfrentado nenhuma interrupção significativa na produção, enquanto a Apple chegou a lançar um novo modelo de smartphones (o iPhone SE) durante a crise, vendido principalmente via canais on-line.
Por outro lado, na cadeia de suprimentos e dispositivos médicos houve rupturas graves, com falta de máscaras faciais e demais equipamentos de proteção individual (EPI), dos principais dispositivos médicos respiratórios, como ventiladores, por causa em parte dos problemas de oferta chinesa, mas, sobretudo, pelo aumento vertiginoso da demanda.
Como argumenta a OCDE, as rupturas não foram causadas somente por problemas nas cadeias de valor, mas principalmente pela falta de planejamento e cooperação internacional para aumentar a oferta global.
Ao invés de criar capacidade produtiva interna, especialmente durante fases de confinamento, muitos países recorreram às CGV para enfrentar a escassez e aumentar a oferta de bens e serviços. No caso dos kits de teste da Covid-19, a experiência da Coréia do Sul mostrou que, justamente, as CGV foram mais uma solução do que um gargalo para o fornecimento de bens essenciais durante uma crise.
Em menos de três meses e alavancando sua experiência em CGV, a Coréia do Sul se tornou um dos principais exportadores, com 40 empresas atendendo a mais de 100 países.
Recomendações para aumentar a resiliência das CGV
A literatura de administração de empresas sobre estratégias para a resiliência das cadeias produtivas é bastante vasta. Usualmente, define-se resiliência como a capacidade de voltar às operações normais durante um período de tempo aceitável após uma ruptura.
O primeiro passo para a resiliência é a identificação e avaliação dos riscos, estimando a probabilidade de riscos diferentes e as características de seus impactos. Por exemplo, na pandemia do Covid-19 consumaram-se os riscos de suprimento (por exemplo, insumos não entregues), de demanda (oscilações nos pedidos de compra) e operacionais (por exemplo, interrupções por causa de epidemias – o que anteriormente era considerado de baixa probabilidade).
O segundo passo é o formular estratégias de gerenciamento de risco, evitando-os (para riscos inaceitáveis), adiando-os (por exemplo, somente produzir ou enviar mercadorias após os pedidos dos clientes forem confirmados), especulando (o oposto de adiamento, como produzir ou enviar mercadorias antes encomendas), promovendo cobertura (por exemplo, diversificação de fornecedores e locais de produção), controle (por exemplo, através integração vertical), compartilhando o risco (terceirização e offshoring) e maior segurança (por exemplo, sensores para embarques em risco).
Definir a estratégia correta requer informações sobre a cadeia de suprimentos e o nível de risco em diferentes estágios. É desejável também manter a transparência entre os agentes de toda a cadeia, com informações importantes para sua operação, como a avaliação de inventários dos insumos.
Muitas empresas possuem "torres de controle" para acompanhar os fluxos de insumos em tempo real, antecipando as interrupções. As tecnologias digitais (como a Internet das Coisas) podem reforçar a capacidade de empresas para identificar e responder a riscos em suas redes de abastecimento.
O próximo passo das estratégias de resiliência é desenvolver a capacidade de sentir e responder às mudanças no ambiente interno e externo de uma organização mobilizando agilmente recursos, relacionamentos e capacidades. A agilidade é fundamental para lidar com o inesperado. Mas não existe uma solução única de gerenciamento de risco que contemple todas as empresas, pois depende de suas estratégias de forma mais geral.
Para algumas empresas, a robustez é prioridade, sendo esta entendida como a capacidade de manter as operações durante uma crise. Este é justamente o caso de empresas de bens essenciais (tais como produtos médicos essenciais, produtos farmacêuticos ou alimentos) e também de empresas cujos processos de produção não podem ser reiniciados facilmente se forem estancados (por exemplo, fornos na indústria siderúrgica ou reatores nucleares na indústria da energia). Estas empresas precisam de um leque de fornecedores alternativos para cada fator de produção, o que impõe custos adicionais associados aos investimentos em relacionamento com os terceiros e com deseconomias de escala.
Já as empresas que valorizam mais resiliência do que robustez focam na velocidade da recuperação. Assim, vão manter relacionamentos de longo prazo com poucos fornecedores, ao invés de mudar para outros fornecedores na crise. Em algumas atividades, as empresas podem preferir operar em um ambiente relativamente vulnerável e aceitar um tradeoff entre eficiência/custos, por um lado, e maiores vulnerabilidades, por outro, conforme apontado por seus cálculos de gerenciamento de risco.
Recomendações de políticas
Considerando que a pandemia de Covid-19 tem 3 estágios – crise, recuperação e novo normal – a OCDE propõe políticas de governo específicas para cada um deles.
Durante a crise, o foco deve ser a garantia do fornecimento de produtos essenciais, como suprimentos médicos, o que requer então a manutenção das operações de toda as suas CGV.
Na fase de recuperação, deve-se tentar reduzir o tempo necessário para a produção dos diversos bens retomar o nível pré-crise. Nesse caso, a OCDE considera importante que o governo promova um ambiente aberto de comércio e investimento e atue para apoiar as empresas que estão com dificuldades de se recuperar. Durante a recuperação, como o vírus ainda é uma ameaça, o governo deve planejar a retomada das atividades econômicas, mantendo as medidas de saúde necessárias.
No novo normal, quando o vírus já não é mais uma ameaça e as atividades econômicas foram retomadas em boa medida, em grande parte retomadas, as empresas devem se preparar para novas crises. Portanto, os governos poderiam dar-lhes incentivos para integrar a consciência de risco e desenvolver estratégias de gestão de risco e resiliência, como por exemplo, promovendo maior simetria de informações sobre a cadeia de suprimentos, revisando a rede de acordos comerciais e regimes de investimento – notadamente, as possibilidades de diversificação de fornecedores e clientes, promoção de tecnologias digitais para a gestão de riscos, testes de estresse para cadeias de abastecimento específicas e aperfeiçoamento dos procedimentos de compras governamentais de bens essenciais, e, por fim, mantendo ambiente regulatório favorável que não seja fonte de adicional de risco relacionado à política.
Em muitas situações da pandemia, governos decidiram renacionalizar cadeias, principalmente as associadas aos sistemas de saúde e segurança alimentar. A OCDE pondera que, nestes casos, os processos precisam ser transparentes e apoiados em análises de gerenciamento de risco.
Vale observar que não necessariamente as cadeias de valor domésticas se saíram melhor do que as CGV durante a pandemia, logo não é possível afirmar que a internacionalização das cadeias agravou a crise de Covid-19.