Carta IEDI
Integrar-se mais e melhor ao mundo: uma agenda indispensável para o Brasil
Há muito tempo o IEDI vem enfatizando a importância de o Brasil melhorar sua inserção no comércio mundial, diversificando mais suas exportações, ampliando suas vendas externas de manufaturados, participando de elos de maior valor agregado nas cadeias globais de valor e acessando um conjunto maior de insumos e bens de capital modernos a custos menores. Para tanto, o pré-requisito é que o país avance na agenda de integração ao mundo, reduzindo as barreiras impostas ao seu comércio exterior.
Precisamos de uma agenda firme e incondicional de inserção competitiva da economia brasileira no mundo, pois o risco que corremos é de um isolamento ainda maior frente às transformações geopolíticas, ao avanço tecnológico e à busca por resiliência que tendem a reconfigurar as cadeias globais de valor (CGV) e os fluxos do comércio internacional.
Como mostra este documento, a partir de estudos realizados a pedido do IEDI pela professora da FGV/SP Vera Thorstensen, que por 15 anos assessorou a Missão do Brasil na OMC, e por sua equipe do Centro do Comércio Global e Investimento na FGV/SP, e pelo economista João Emílio Gonçalves, ex-superintendente de Desenvolvimento Industrial da Confederação Nacional da Indústria – CNI, existem inúmeras evidências de que acumulamos um atraso muito grande nesta área.
Para ficarmos apenas com os indícios mais sintéticos: somos a 12ª economia do mundo, mas ocupamos apenas a 26ª posição entre os maiores exportadores e a 29ª entre os países mais importadores. Nossas exportações de manufaturados são marginais no mundo e não param de encolher: representavam 0,85% do total mundial em 2005 e 0,45% em 2020.
Integrar-se mais e melhor na economia global não apenas é urgente, dado o atraso acumulado, como também é desejável. Em geral, o debate nacional enfatiza a ampliação da concorrência e o acesso mais fácil e barato a matérias primas, bens de capital e tecnologia importados como os efeitos da redução das nossas barreiras ao comércio internacional, promovendo ganhos de produtividade de que o Brasil tanto necessita.
A participação mais ativa de nossas empresas no comércio mundial também traz igualmente grandes benefícios: ao se relacionar com um universo maior e mais diversificado de clientes, fornecedores e concorrentes, as empresas são expostas a novas formas de competição e têm contato com novas tecnologias, diferentes modelos de negócios e práticas de gestão. Como resultado, muitos estudos sugerem que empresas exportadoras crescem mais, inovam mais e pagam salários mais elevados.
Por estes fatores, o desenvolvimento de um país caminha pari passu ao avanço de sua integração com o restante do mundo. Disso advém a defesa incondicional do IEDI à maior integração do país à economia internacional. É verdade que este processo será muito mais construtivo se simultaneamente encaminharmos as reformas necessárias para a redução do “Custo Brasil”, impulsionando a competitividade do produto nacional, sem que isso funcione como impeditivo para essa necessária integração.
Inclusive porque os atuais obstáculos ao comércio exterior que o Brasil insiste em conservar também acabam integrando o “Custo Brasil” e deteriorando a competitividade da produção doméstica. Abrir nossa economia e reduzir o “Custo Brasil” são faces da mesma moeda e precisam ser endereçados ao longo do tempo, com o mesmo vigor, sem que uma frente se torne pretexto para atrasar a outra, sempre com o objetivo de melhorar as condições de crescimento de longo prazo do país e, consequentemente, o padrão de vida de nossa população.
A experiência dos países asiáticos, que nas últimas décadas apresentaram uma performance muito superior à brasileira, mostra que não existe espaço para estratégias unidimensionais quando o objetivo é promover o desenvolvimento. A integração ao comércio internacional é fundamental e sua limitação foi fator relevante para a desindustrialização brasileira. A bem da verdade, os asiáticos foram muito além para obter sucesso, pois articularam abertura às importações de bens de capital e insumos com impulso firme às exportações e investimentos expressivos em ciência e tecnologia, P&D e em educação, com vistas ao necessário catching up tecnológico.
Se quisermos seguir nesta direção, deveremos adotar uma orientação para a exportação muito maior do que nosso setor industrial vem seguindo nas últimas décadas. Isto implica rever e recalibrar de modo coerente vários instrumentos de política, como a desoneração efetiva das exportações, por meio de uma urgente reforma tributária; racionalização das tarifas aduaneiras, respeitando o princípio da escalada tarifária segundo a agregação de valor, eliminação de tratamentos privilegiados sem justificativa; cuidados para evitar excessivas e prolongadas apreciações da taxa de câmbio, como já tivemos no passado; recomposição do sistema de financiamento às exportações; política externa e comercial pró-ativa; investimentos planejados em logística; suporte ao aprendizado tecnológico, engenharia reversa, P&D, desenvolvimento de marcas e ativos comerciais etc.
Como avançar na nossa abertura continua um tema sujeito a muita discussão, que nem sempre leva em consideração todos os aspectos importantes envolvidos. Por exemplo, o debate no Brasil ainda é muito centrado na questão das barreiras tarifárias. Como este documento ilustra, internamente temos espaço para racionalizar e reduzir nossas tarifas de importação e, externamente, também temos trabalho a fazer, já que nossos produtos enfrentam, em mercados estrangeiros, tarifas maiores do que a média dos países semelhantes ao Brasil.
Apesar disso, são cada vez mais centrais para a integração de um país à economia mundial questões como barreiras técnicas, sanitárias e fitossanitárias e standards ou normas sobre temas como mudança climática, eficiência energética, direitos humanos, direitos trabalhistas, direitos dos animais, emissões de carbono e regulação da economia digital. Estas são dimensões incontornáveis da abertura comercial que têm merecido menos atenção do que deveriam.
Muito tem se falado sobre a pertinência de uma abertura comercial unilateral. É verdade que este poderia ser um caminho rápido para trazer as alíquotas de importação praticadas no Brasil mais próximas de níveis internacionais, mas não deixa de ser um caminho sem riscos. O primeiro deles é que o corte de alíquotas pode ser rápido demais e não permita que empresas saudáveis e rentáveis se ajustem a uma nova realidade competitiva. Se as “regras do jogo” mudam é preciso haver tempo para ajustes.
Outro risco é que as condições políticas que amparam a estratégia unilateral podem mudar ao longo do processo de abertura. É importante reconhecer que a abertura unilateral não está isenta de pressões de lobbies e grupos de interesse específicos que podem retardar ou até mesmo suspender o cronograma de redução de tarifas e criar exceções e distorções, devido à não horizontalidade de medidas unilaterais – a exemplo de uma redução de alíquota de importação do setor de bens de capital sem que haja redução da alíquota das suas matérias primas, provocando assimetrias indesejadas entre setores e/ou participantes de uma determinada cadeia.
Depender apenas da “vontade política” do governo em exercício para avançar na abertura é uma vantagem pela agilidade que pode conferir, mas também é uma desvantagem porque nada garante que seguirá uma sistemática adequada e que irá perdurar o tempo necessário.
Além disso, esta via não assegura ou alavanca o acesso a mercados externos pelas empresas domésticas e pode não vir acompanhada da redução de barreiras não tarifária e da necessária busca por convergência dos standards nacionais aos padrões internacionais, como mencionado.
Já a abertura por meio dos acordos comerciais, por estes consistirem em uma solução negociada não apenas com outros países, mas também entre os distintos setores da sociedade brasileira, possibilitariam a criação de consensos e convergências dando maior firmeza ao processo de abertura. A existência de compromissos com parceiros estrangeiros, sujeitos a sanções em caso de descumprimento, tende a conferir maior estabilidade.
Além disso, os acordos também versam cada vez mais sobre conjunto de normas e padrões que podem consistir em barreiras não tarifárias e garantem acesso a mercados externos, tornando nosso atual atraso na redução de tarifas uma vantagem no processo de negociação.
Em contrapartida, esta via costuma levar muito tempo para ser negociada, aprovada e implementada pelos países signatários, devido à complexidade de interesses envolvidos, o que se contrapõe à urgência desta agenda para o Brasil. O Mercosul, por vezes, também é visto como empecilho, mas como lembra Thorstensen, somos a maior economia do bloco e corresponsáveis pelo seu aprimoramento. Por isso, o Mercosul deve ser considerado um atributo e não uma justificativa para não avançarmos na integração internacional do Brasil.
Outro aspecto a ser considerado é que firmar acordos está sujeito à vontade de negociar dos demais países, o que pode não ser evidente no atual contexto de acirramento da competição tecnológica, da reorganização das cadeias globais de valor e do resgate de ideias protecionistas, sobretudo, depois dos efeitos da pandemia e, mais recentemente, da guerra na Ucrânia sobre o comércio mundial e o acesso a bens e insumos considerados estratégicos. Por isso, o consenso interno entre os distintos grupos de interesse em torno da agenda de abertura é uma condição ainda mais importante nos dias de hoje.
As negociações entre Mercosul e União Europeia, concluídas em 2019, bem como as dificuldades que têm sido observadas para a assinatura do acordo delas resultante e internalização pelos países signatários trazem ensinamentos, alguns deles destacados a seguir, que podem ser úteis para a celebração de outros acordos comerciais.
Em suma, os seguintes pontos devem ser observados:
• Ficou demonstrado que é possível fechar acordos amplos e complexos sem profundas transformações ou enfraquecimento do Mercosul.
• Distintas motivações de sucessivos governos atrasam muito a agenda de negociações, daí os 20 anos tomados para o acordo Mercosul-UE. Por isso, é preciso aproveitar as janelas de oportunidade criadas pelo alinhamento de interesses dos governos.
• Com a complexidade crescente das negociações, são fundamentais o diálogo frequente e a constante troca de informações entre setor público e setor privado, tanto para construir consensos quanto para subsidiar os negociadores com dados técnicos precisos sobre a realidade dos setores. Isso assegura transparência para o processo de negociação e de integração.
• A utilização de instâncias de debate suprassetoriais possibilita a construção de convergências entre os diferentes setores econômicos, facilitando a elaboração das listas de oferta brasileira, conferindo legitimidade às posições do governo brasileiro e solidificando apoio formal do setor privado à conclusão do acordo. Esta interlocução permite uma abertura ampla e horizontal, como a do acordo Mercosul-UE que prevê desgravação de produtos que passa de 90% das linhas tarifárias no Mercosul e 95% na União Europeia.
• O estabelecimento de cronogramas graduais e diferenciados de desgravação (de zero a 15 anos no Acordo Mercosul-UE) permitem acomodar distintas realidades derivadas de especificidades setoriais e das distorções existentes em tantas áreas do ambiente de negócios brasileiros, viabilizando a formação de consensos no setor privado.
• O gradualismo na desgravação pode vir acompanhado de flexibilidade que permita a aceleração da desgravação. O artigo 3º do Acordo com a UE prevê que cada parte pode acelerar seu cronograma de eliminação tarifária ou de outra forma melhorar as condições de acesso a mercado se sua situação econômica geral e a situação econômica do setor referido assim permitirem.
• Um acordo comercial com outros blocos e países contribui para o fortalecimento do marco institucional dos países do Mercosul, melhorando seu ambiente de negócios. O Acordo com a UE, por exemplo, abrange temas como regras de origem, medidas não-tarifárias (sanitária, fitossanitárias, barreiras técnicas), compras governamentais, propriedade intelectual, pequenas e médias empresas, comércio e desenvolvimento sustentável, facilitação do comércio, entre outros, além do compromisso de desgravação tarifária.
O ideal é que busquemos negociar com o maior número possível de países, diversificando nossas relações comerciais, tendo sempre como diretriz o comprometimento com a transparência, gradualismo e horizontalidade de nosso processo de abertura.
Em conclusão, ambas as estratégias, unilateral ou por acordos, não são necessariamente excludentes e podem ser combinadas, notadamente, se considerarmos que uma abertura unilateral não se resume ao tema tarifário, devendo contemplar um conjunto de ações, dentre as quais a facilitação de comércio, a convergência regulatória e o aprimoramento do financiamento de exportações.
1. O atraso do Brasil em se integrar ao mundo
O Brasil, apesar de ter ocupado a posição da 12ª maior economia do mundo em 2020, ficou apenas na 26ª posição dentre os principais países exportadores de bens e na 29ª posição dentre os principais países importadores, segundo os últimos dados da OMC. Manteve-se, em ambos os fluxos de comércio, atrás de países como México, Rússia, Índia, Polônia, Tailândia e Malásia.
São muitas as evidências da defasagem de nossa integração no comércio mundial. Em relação ao PIB, o somatório de nossas exportações e importações é muito inferior a de outros países emergentes de destaque, como México, Turquia, Índia e China, segundo o FMI. Temos ainda um número de firmas exportadoras por habitante muito baixo em comparação internacional, segundo mostram os economistas Ornelas, Pessoa e Ferraz no estudo “Política comercial no Brasil: causas e consequências do nosso isolamento”, de 2020, as maiores firmas têm participação pequena no total de vendas externas do país e as taxas de entrada e de saída no mercado externo são baixas, ou seja, sem dinamismo, sem renovação.
Além disso, como argumentam Thorstensen e sua equipe, a tarifa média de importação no Brasil é mais elevada do que em outros países e há grande heterogeneidade entre as tarifas praticadas. A média ponderada para todos os setores aplicada em 2018 chegava a 7,9% no Brasil (com máximo de 35%) ante 3,4% na China, 1,6% nos EUA e apenas 0,5% no Chile. Em termos efetivos, que corresponde à variação percentual no valor adicionado que decorre da estrutura de tarifas nominais comparada com o valor adicionado quando ausentes estas tarifas, estima-se que a alíquota média seja de 16,6%, com máximo de 63%.
O debate sobre os níveis das tarifas de importação vigentes no Brasil, entretanto, carece de medidas mais precisas, como lembra João Emílio Gonçalves, em função da falta de transparência sobre mecanismos da política comercial brasileira que, em alguns casos, podem reduzir significativamente o nível efetivo de tarifa. É o caso, por exemplo, dos diversos regimes especiais existentes, do drawback e de um grande número de Ex-tarifários concedidos para bens sem produção nacional. Em junho de 2021 o número de Ex-tarifários vigentes chegava a 16.272, segundo o pesquisador.
Cabe ressaltar também que o processo de Ex-tarifário, mesmo que possa jogar a favor de uma redução de tarifas efetivas, apresenta custo não desprezível e pode demorar tempo considerável para aprovação, em função dos procedimentos burocráticos exigidos. Isso porque é preciso confirmar, por meio de pesquisa pública, que nenhum fabricante local produz bem similar àquele que se deseja desgravar. Assim, tende a estar ao alcance apenas de empresas de maior porte e não deixa de ser um obstáculo ao acesso a produtos do restante do mundo.
Uma transparência maior a respeito do conjunto dessas informações permitiria não apenas uma mensuração mais acurada dos níveis efetivos de proteção tarifária no país, mas também a criação de consensos a respeito da intensidade, velocidade e horizontalidade da ampliação de nossa abertura comercial.
Quanto às barreiras não tarifárias (NTMs), há igualmente obstáculos à integração brasileira no mundo. Estas barreiras podem ser convertidas em tarifas equivalentes e comparadas por frequência de imposição. Os dados do WITS/Banco Mundial permitem calcular duas medidas: “coverage ratio” (ou índice de cobertura), que é a parcela das importações ou exportações totais (em US$) que estão expostas a NTMs; e “frequency ratio” (ou taxa de frequência), que corresponde à fração de produtos que estão expostas a NTMs.
Para ambas as medidas, o Brasil apresenta valores acima da média internacional. O coverage ratio das importações do Brasil chega a 86,42% ante 71,98% na média dos 75 países analisados pelo WITS/Banco Mundial. É uma parcela muito maior do que a exposição de nossas exportações a medidas não tarifárias, cujo coverage ratio é de 50,04%. No caso das exportações, estamos ainda mais distantes da média mundial, que é de 27,31%, o que sinalizava dificuldade de nossas empresas acessarem mercados estrangeiros. Em relação à frequency ratio, chega-se ao valor de 75,62% para nossas importações ante 43,04% da média mundial e a 38,71% para nossas exportações ante 21,88% na média das 75 economias que compõem a média mundial.
Outra medida das barreiras não-tarifárias refere-se ao grau de aproximação de normas e regulamentos técnicos de um país aos standards internacionais, como os propostos pela ISO (International Organization of Standardization), IEC (International Electrotechnical Commission) ou reguladores de grandes mercados, tais como os da União Europeia e dos Estados Unidos. Se os standards de um país são majoritariamente nacionais, criam-se barreiras tanto à importação de produtos estrangeiros que seguem standards internacionais, como à exportação de produtos nacionais, por não serem aceitos em outros mercados.
Segundo o CCGI/FGV, com base em normas que embasaram regulamentos técnicos notificados à OMC como barreiras técnicas ao comércio, os standards criados pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) são majoritariamente nacionais para muitos setores. É o caso, por exemplo, da indústria automobilística (80% dos standards de criação nacional), de máquinas e equipamentos mecânicos (75% nacional) e elétricos (68%) e do setor de alimentos processados (64%).
As barreiras ao comércio exterior do país, tanto tarifárias como não tarifárias, afetam sobretudo a indústria – cujas cadeias produtivas são mais longas e seus produtos, mais complexos –, que se vê cada vez mais marginalizada nos fluxos globais de bens manufaturados, inclusive por bloquearem sua maior integração às cadeias internacionais de produção. Encarecem o acesso a bens de capitais e insumos estratégicos e privam as empresas de interações com um conjunto mais amplo e diversificado de agentes que o comércio mundial possibilita, desperdiçando oportunidades de aprendizagem e de reforço de sua capacidade de inovação tecnológica, gerencial, comercial etc.
Em contrapartida, o quadro que temos hoje não impediu a crescente penetração de importados no mercado brasileiro, de produtos finais e também de insumos, partes e componentes. Em alguns períodos, algo muito favorecido pela expressiva valorização de nossa moeda, mas igualmente como fruto da insuficiência no desenvolvimento internamente de competências tecnológicas avançadas.
Segundo a OMC, a participação do Brasil nas exportações mundiais de bens manufaturados encolheu de 0,85% para apenas 0,45% entre 2005 para 2020. Trata-se de uma parcela residual, mesmo em comparação com o que representa nossa indústria na indústria global (1,3% em 2020), que também tem sido cadente. Frente a tudo o que o país exporta, a perda de espaço também é patente: a indústria de transformação representava 80% do total até 2005, recuando para 51% em 2021. Em 2021, as vendas externas dos ramos de alta e média-alta tecnologia chegaram a 27,6% do total das exportações industriais, depois de superarem 40% em 2005.
Estes dados mostram a ineficácia da estratégia de comércio exterior que temos implementado até hoje e indicam a necessidade de mudanças profundas. Ela não assegura desempenho exportador superior e nem proteção do mercado interno contra a concorrência externa.
Ainda que se saiba que, no mundo contemporâneo, estratégias de caráter protecionista são contraproducentes, muitas vezes certos grupos de interesse pregam a necessidade de mantermos os obstáculos ao comércio exterior em função dos graves problemas de competitividade que o país apresenta. Entretanto, a situação atual nem mesmo impediu o avanço da penetração de importados e a corrosão do tecido produtivo.
No caso da indústria, a Carta IEDI n. 929, de mai/19, mostrou a partir dos dados da Pesquisa Industrial Anual do IBGE um aumento significativo no coeficiente importado de insumos e componentes comercializáveis (CIICC) na fase de crescimento econômico dos anos 2000. De 2003/2004 a 2013/2014, o CIICC da indústria de transformação aumentou de 16,5% para 24,4%, recuando para 22,3% em 2016, na esteira da forte crise de 2015-2016. Na origem desta evolução, está a categoria de alta e média-alta intensidade tecnológica, cujo CIICC registrou alta bastante superior à média geral da indústria de transformação: de 26,3% para 38,7% entre 2003/2004 e 2013/2014 e então para 41,4% em 2016.
Seguiu trajetória semelhante o peso da importação de bens finais industriais no consumo doméstico, que segundo a CNI saltou de 10,3% em 2003 para 18,4% em 2018, a preços constantes, e de 15,2% para 22,4% no mesmo período, a preços correntes.
2. Mudança imprescindível e urgente
Como vimos anteriormente, há evidências de que o Brasil não acompanhou o exemplo de países que conseguiram avançar em seu desenvolvimento socioeconômico nas últimas décadas integrando-se mais à economia mundial. Como resultado, temos uma performance exportadora decepcionante e uma pressão concorrencial crescente de produtos estrangeiros em nosso mercado doméstico. Não assumimos o padrão “importar, agregar valor e reexportar” e mantemos uma participação relativamente restrita nas cadeias globais de valor, que representam cerca de 70% do comércio mundial.
Embora tenhamos indicadores de integração às CGV inferiores a muitos países, o Brasil não chega a ser uma exceção entre aqueles com grandes mercados internos e com importante produção de bens primários. Por exemplo, não estamos muito distantes dos valores obtidos pelos EUA nos principais indicadores de integração: (1) a parcela reexportada do total dos bens intermediários importados; (2) encadeamento para trás, que se refere ao valor adicionado importado contido nas exportações brutas de um país; e (3) encadeamento para frente, que se refere ao valor adicionado de um país contido nas exportações do resto do mundo como proporção de suas próprias exportações brutas.
Segundo os últimos dados da OCDE, analisados na Carta IEDI n. 1125, de jan/22, no caso do Brasil, a parcela de bens intermediários importados reexportados ficou em 23,1% do total de bens intermediários importados, enquanto uma fração de 15,8% prevalecia no caso dos EUA. Já o indicador do Brasil de encadeamento para trás ficou em 12,9% em 2018 para o total das exportações e em 17,9% no caso de exportações de manufaturados, valor este que foi de 9,5% no caso da indústria norte-americana. Por fim, quanto ao encadeamento para frente, foi de 22% para as exportações totais do Brasil e de 17,1% para as exportações de manufaturados, isto é, não muito abaixo do valor de 18,2% no caso dos EUA. Embora estes indicadores não sejam suficientes para resumir a integração de um país às CGV, sugerem que nosso maior problema talvez esteja mais na qualidade de nossa inserção, que geralmente não atinge os elos de maior agregação de valor.
Mas a defasagem na abertura comercial de nossa economia possui consequências que vão além de prejudicar os fluxos de comércio exterior do país. Como lembra João Emílio Gonçalves, diversos estudos revelam evidências de que economias mais bem inseridas no comércio mundial e nos fluxos de investimentos estrangeiros são também mais desenvolvidas. No nível das firmas, há, igualmente, evidências de que empresas exportadoras crescem mais, inovam mais e pagam salários mais elevados.
Os canais que transmitem esses efeitos incluem maior escala, proporcionada pelo mercado externo, que se soma ao doméstico; maior competição e efeito demonstração, que estimulam a inovação; e maior acesso a insumos (melhores, mais baratos e mais sofisticados) e tecnologias.
O maior acesso à inovação não deve ser exclusivamente associado à importação de insumos, máquinas mais sofisticadas e ao próprio aumento da competição no mercado doméstico, como costumam se restringir os debates recentes. Evidências demonstram que a presença no mercado internacional expõe a empresa doméstica (como exportadora e, ainda mais, como investidora) a níveis elevados de competição e possibilita o contato com novas tecnologias, modelos de negócios e práticas de gestão, estimulando a inovação.
A esse respeito, os pesquisadores Ferraz, Ornelas e Pessoa, no estudo “Política Comercial Brasileira: estratégias de inserção internacional” de 2018, argumentam que a abertura pode aumentar o incentivo das firmas em inovar e indicam, ademais, que “esse mecanismo é especialmente saliente no contexto de acordos comerciais”.
Os autores relatam, ainda, resultados de pesquisas internacionais que dão conta de que o maior acesso a mercados externos proporcionado pela celebração de acordos induziu as firmas locais a investirem em inovações que elevaram sua produtividade e que “esse efeito ocorreu predominante em firmas de setores onde a redução de tarifas foi mais significativa, e para firmas com uma produtividade inicial relativamente elevada”.
Estas conclusões reforçam o potencial da inserção internacional das firmas brasileiras como canal para estimular a inovação e que o nível prévio de produtividade da firma pode ser relevante para explicar o seu desempenho pós abertura, demonstrando, segundo João Emílio Gonçalves, a importância de coordenar a política comercial com a política industrial e de inovação.
Apesar destas evidências de que firmas exportadoras são mais eficientes, maiores e mais inovadoras, é preciso reconhecer a controvérsia entre os economistas quanto ao sentido da causalidade, pois ter firmas mais eficientes é o que poderia estar na origem do bom desempenho exportador, conforme sugerem estudos dos pesquisadores do IPEA Fernanda De Negri e Bruno de Araújo (em “As Empresas Brasileiras e o Comércio Internacional”, de 2007, por exemplo) e os professores Francisco Rodriguez, da IESA/Public Policy Center e Dani Rodrik, da Universidade de Harvard (em “Trade Policy and Economic Growth: A Skeptic's Guide to the Cross-National Evidence”, de 2001).
Há ainda impactos positivos da abertura na produtividade em função da realocação de recursos entre as firmas de um mesmo setor. Os pesquisadores da FGV concluem que, além do efeito que resulta do argumento clássico das vantagens comparativas (o crescimento de alguns setores em detrimento de outros), verifica-se também que “uma maior exposição ao comércio internacional induz as firmas exportadoras a se expandirem no mercado internacional devido às novas oportunidades de lucro”.
O resultado disso é uma disputa por fatores de produção no mercado doméstico que resultaria numa pressão de custos (salários, por exemplo) capaz de ameaçar a presença no mercado das firmas menos competitivas, que se dedicam apenas ao mercado interno. Ou seja, a abertura enseja um processo de seleção em favor das firmas exportadoras, mais produtivas. Vale observar que este mecanismo pressupõe o maior acesso das firmas domésticas ao mercado externo.
Do ponto de vista do impacto da concorrência com importações, a maior pressão competitiva funcionaria como um incentivo à inovação. A maior exposição à concorrência estrangeira tende a estimular a “aquisição tecnológica” e, assim, levar a uma mais rápida transformação tecnológica via efeito demonstração, pois é mais fácil copiar ou absorver tecnologia do que inovar (Lawrence e Weinstein, 1999). Os pesquisadores da FGV, contudo, ponderam que os benefícios da maior concorrência e do efeito demonstração são mais importantes à medida que a indústria converge para os líderes de mercado.
3. Vias de integração: a abertura unilateral
Abrir-se mais ao comércio internacional é tão necessário quanto desejável, como visto nas seções anteriores. Qual estratégia assumir para cumprir este objetivo, entretanto, continua tema de debate e discordância. Dois caminhos, embora não excludentes, tendem a polarizar a discussão: por meio de acordos comerciais com países parceiros e por meio da via unilateral, com rebaixamento planejado de tarifas e de barreiras regulatórias internas. Cada um destes caminhos apresenta vantagens e desvantagens.
Uma abertura unilateral, com a redução das tarifas de importação adotadas pelo Brasil, tem sido percebida como a maneira mais rápida de reduzir o atraso que o país acumulou em sua integração comercial com o restante do mundo. Pela pressão concorrencial que geraria no mercado doméstico, também é vista muitas vezes como crucial enforcement para a realização de outras reformas estruturais que assegurem aumento da competitividade da produção nacional.
Em contrapartida, esta via não garante o acesso a mercados externos pelas empresas domésticas e pode não possibilitar a adequada adaptação dos agentes internos a uma nova realidade competitiva. Também costuma estar mais focada na redução tarifária do que na redução de barreiras não tarifária e na convergência dos standards nacionais aos padrões internacionais, tal como discutido anteriormente. Além disso, é importante observar que a abertura unilateral também não está isenta de pressões de lobbies e grupos de interesse específicos, que podem retardar o cronograma de redução de tarifas, criar exceções e distorções ou até mesmo suspendê-lo.
Já os acordos comerciais, embora demorem mais para serem firmados, ao consistirem em uma solução negociada não apenas com outros países, mas também entre os distintos setores da sociedade brasileira, possibilitariam a criação de consensos e convergências dando maior firmeza ao processo de abertura. A existência de compromissos com parceiros estrangeiros, sujeitos a sanções em caso de descumprimento, tende a conferir maior estabilidade. Além disso, os acordos também versam cada vez mais sobre conjunto de normas e padrões que podem consistir em barreiras não tarifárias e garantem acesso a mercados externos, tornando nosso atual atraso na redução de tarifas uma vantagem no processo de negociação.
Em contrapartida, esta via costuma levar muito tempo para ser negociada, aprovada e implementada pelos países signatários, devido à complexidade de interesses envolvidos, o que se contrapõe à urgência desta agenda para o Brasil. Também está sujeita à vontade de negociar dos demais países, o que não é evidente no atual contexto de acirramento da competição tecnológica, de conflitos geopolíticos, da reorganização das cadeias globais de valor e do resgate de ideias protecionistas, sobretudo, depois dos efeitos da pandemia sobre o comércio mundial e o acesso a bens e insumos considerados estratégicos.
Ambas as soluções, contudo, podem ser combinadas, especialmente, se considerarmos que uma abertura unilateral não se resume ao tema tarifário e pode contemplar um conjunto de necessárias ações de facilitação de comércio. Já obtivemos alguns avanços nesta direção nos últimos anos, mas a tarefa não foi integralmente concluída.
Segundo Thorstensen e sua equipe, o Portal Único de Comércio Exterior foi a mais importante medida de redução de burocracia e facilitação do comércio exterior brasileiro adotada recentemente. Constitui não apenas a criação de um espaço único para a centralização da atuação do governo com agentes privados presentes no comércio internacional, mas permite também que procedimentos de importações e exportações sejam reformulados, tornando-os mais eficientes e harmonizados.
Implícitos a essa iniciativa estão os conceitos de transparência, disponibilidade de informações, eficiência do procedimento, cooperação, harmonização da atuação de órgãos governamentais e gestão de riscos. Está também inserido no Portal Sistemas de Comércio Exterior (Siscomex) que utiliza instrumentos de última geração de automação e tecnologia da informação com o intuito de elaborar uma estrutura mais atualizada e racional para o comércio internacional brasileiro.
A principal funcionalidade disponibilizada pelo Portal Único de Comércio Exterior é a possibilidade de realização de operações sujeitas a licenciamento de importação de competência da SECEX, no caso de utilização de cotas tarifárias e, também, para a compra de bens usados. Em 2021, estava previsto registro na nova plataforma das demais operações submetidas ao controle da SECEX, além das importações que exijam a intervenção de outros atores governamentais, a exemplo do MAPA, do Inmetro e da ANP.
Outra novidade é a implantação da nova rotina de pagamento de tributos no comércio exterior, a partir de Documento de Arrecadação de Receitas Federais numerado, que proporciona maior segurança e simplificação dos processos, como o de restituição de valores.
O Portal Único também recebeu melhorias no módulo que auxilia os operadores privados com a classificação fiscal de suas mercadorias exportadas ou importadas, o CLASSIF. Foram criadas funcionalidades como a consulta online das Notas explicativas do Sistema Harmonizado de Designação e de Codificação de Mercadorias e a pesquisa integrada de informações.
Em termos da política de financiamento às exportações, foi adotada a resolução GECEX 12/2020. Em linhas gerais, esta resolução está alinhada às melhores práticas internacionais, busca aprimorar a governança dos programas, busca tornar mais eficiente a utilização dos recursos públicos e amplia a participação de diversos órgãos e do setor privado.
Todas as ações acima são de cunho unilateral, isto é, dependem fundamentalmente da iniciativa do governo brasileiro em tornar nosso comércio exterior mais ágil e dinâmico e, assim, em melhor integrar o país nos fluxos internacionais de comércio.
Importante reconhecer outro ponto vital para as atividades do comércio, que pode ser encaminhado de modo unilateral pelo governo brasileiro: a substancial melhoria da infraestrutura portuária e de transporte, que poderia ser agilizada por meio de concessões e parcerias público-privadas.
Como demonstram estudos recentes do Banco Interamericano de Desenvolvimento, como no relatório “Longe demais para exportar: custos internos de transporte e disparidades regionais das exportações na América Latina e no Caribe”, melhorias na infraestrutura de transporte podem fazer com que o Brasil aumente o volume e a diversificação de suas exportações, bem como distribua melhor os benefícios do comércio exterior.
4. Vias de integração: abertura negociada
Acordos preferenciais de comércio passaram a ser, desde a década dos 1990, instrumento relevante de política comercial, por meio dos quais os países buscaram maior crescimento econômico e maior geração de empregos, e podem ser entendidos como um elemento irreversível da regulação do comércio internacional. Estes acordos se multiplicaram nos anos 2000 e cerca de 300 deles já foram notificados à OMC.
A SECEX, seguindo conclusões de amplos estudos realizados pela OMC e Banco Mundial, defende que esses acordos permitem acesso dos agentes produtivos nacionais a insumos e tecnologias de ponta, além de aumentarem a concorrência no mercado doméstico, com estímulos à inovação e à produtividade, como argumentado anteriormente neste documento.
Por outro lado, os acordos permitem que empresas instaladas no Brasil possam acessar mercados estrangeiros mais facilmente. O estudo da CNI “Barreiras tarifárias enfrentadas pelas exportações brasileiras: uma comparação internacional”, de 2021, mostra que, para acessarem outros mercados, as exportações brasileiras enfrentam tarifas médias de importação mais elevadas do que as tarifas aplicadas a países com características geográficas e/ou econômicas similares às nossas (países com nível de desenvolvimento e/ou com tamanho similar ao do Brasil, países que competem com o Brasil em terceiros mercados ou com uma inserção internacional similar à brasileira e países vizinhos).
Como pode ser observado no gráfico a seguir, o Brasil está sujeito à terceira maior tarifa de importação (4,6%), que equivale a cerca do dobro da tarifa média enfrentada pelo grupo de 17 países pesquisados pela CNI, composto por África do Sul, Argentina, Austrália, Canadá, Chile, China, Colômbia, Coreia do Sul, Espanha, Índia, Indonésia, México, Peru, Polônia, Rússia, Tailândia e Turquia.
Além da redução de tarifas entre as partes do acordo, mais importante ainda, segundo Thorstensen, é a negociação de um quadro regulatório comum que ultrapasse as regras básicas da OMC. Dependendo do tamanho do bloco de países envolvidos na negociação, tais regras podem afetar não apenas o comércio entre os seus signatários, como também os países fora de tais acordos, principalmente regras além do quadro da OMC como serviços, propriedade intelectual e meio ambiente ou digital.
As regras negociadas nos acordos preferenciais de comércio (APCs) e nos mais recentes mega-acordos, por meio de disposições específicas, podem interferir no acesso a mercados das partes, mas também no comércio dos demais países que, ao não adotarem determinados standards ou normas como padrões trabalhistas e ambientais, estipulados nesses APCs, irão enfrentar dificuldades nas suas exportações.
Atualmente, a negociação dos acordos se concentra em regras sobre: barreiras técnicas, sanitárias e fitossanitárias, mudança climática, eficiência energética, direitos humanos, direitos dos animais, padrões privados, emissões de carbono e regulação da economia digital, dentre outros. Países que não adotarem standards ou normas difundidas internacionalmente enfrentarão grandes dificuldades para exportar. Os acordos ajudam acompanhar este processo.
Essas regras, muitas vezes, têm efeito igual ou maior do que a redução das tarifas e a elaboração cuidadosa de regras de comércio que se adequem às particularidades das economias dos parceiros de um APC pode, inclusive, ser mais importante que a negociação de tarifas.
Assim, é fundamental que os operadores econômicos atentem que a superação do isolamento do Brasil não está limitada à negociação de tarifas para a entrada do país em novos APCs, fato que é pouco ressaltado nas discussões. Segundo Thorstensen e sua equipe, não adianta abaixar tarifas se o quadro das regras não for também negociado: “o reconhecimento mútuo de certificadoras vale mais que pontos de tarifas”.
No momento atual, é relevante que o Brasil desenvolva um modelo comum de regras, definindo medidas que se adaptem às necessidades da economia brasileira e permitam o aumento das exportações de bens e serviços.
Nas negociações com países desenvolvidos, as regras dos acordos comerciais tornam-se ainda mais relevantes, uma vez que suas tarifas pautadas no princípio da nação mais favorecida são, em média, baixas e, portanto, a preferência obtida seria menos expressiva, enquanto as barreiras não tarifárias desses mesmos países possuem impacto significativo no comércio internacional.
As negociações brasileiras, no passado, em busca de acesso a mercados, apresentaram resultados limitados. Dados do Siscomex revelam que, após a criação do Mercosul, foram negociados acordos comerciais em conjunto pelo bloco na América Latina com o Chile e a Bolívia em 1996, com o México em 2002, com Equador, Colômbia e Venezuela em 2004, com o Peru em 2005, com Cuba em 2006, com a Colômbia em 2017, os quais estão em vigor.
Fora da América Latina, foram negociados e estão vigentes acordos comerciais do Mercosul como bloco com Egito e Israel e acordos secundários de alcance parcial com Índia e União Aduaneira da África Austral. O Brasil sozinho apresenta acordos vigentes com Angola, Argentina, Guiana e São Cristóvão e Névis, México, Panamá, Paraguai, Suriname, Uruguai e Venezuela.
Como afirmam Sandra Rios e Pedro Veiga, diretores do Centro de Estudos de Integração e Desenvolvimento (CINDES), estes acordos não possuem envergadura relevante, estando inseridos no marco de uma política mobilizada essencialmente por preocupações defensivas em que a dimensão negociada de política comercial se manteve em condição de hibernação nos últimos anos.
Conclusões semelhantes já vinham sendo expostas há anos. O país restringiu sua busca por acordos apenas ao eixo Sul-Sul, os quais apresentaram resultados muito restritos no comércio exterior, e desperdiçamos oportunidade de realizar acordos com países desenvolvidos, isto é, também contemplando o eixo Sul-Norte.
Como já afirmava Davi Silber, professor da FEA-USP, a especialização internacional com países em desenvolvimento pode até ser desejável, mas é limitada pelo tamanho do mercado e pela semelhança de dotação de fatores de produção. Por outro lado, a ausência de acesso preferencial aos mercados de renda alta explica a participação declinante das exportações de manufaturados para esses mercados.
Para além das características dos acordos acima enumerados, das inferências imediatas delas extraídas e das características da economia brasileira, Vera Thorstensen e sua equipe lembram que a experiência brasileira também revela que, sem considerar as orientações políticas e ideológicas dos sucessivos governos no país desde a década de 1990, dificuldades estiveram presentes nas negociações dos acordos preferenciais com as principais economias mundiais.
Com os países desenvolvidos, os interesses demandantes brasileiros concentram-se nos temas que compõem o núcleo duro do protecionismo nesses mercados, principalmente o acesso a mercados e regras para produtos agrícolas. Internamente, frações da indústria mais combalidas pela perda de competitividade tem a percepção de possuírem menos condições de enfrentar o acirramento da concorrência com produtos importados e de terem menos a ganhar em acesso a mercados resultante dessas negociações, já que as tarifas industriais são, em geral, muito baixas em países desenvolvidos.
5. O Mercosul
O atraso brasileiro na agenda de acordos comerciais é nítido até em comparação com outros países da América Latina, que ampliaram sua rede de negociações nos últimos anos e já possuem acordos em vigor com China, Coreia do Sul, Estados Unidos e União Europeia, como mostra o estudo da CNI “Perda de mercado do Brasil na América do Sul: recomendações para aprimorar a integração regional”, de 2021. Isso tem se traduzido na perda de mercado das exportações brasileiras na região, ofuscando até mesmo as vantagens decorrentes da proximidade geográfica.
Parte da explicação para a baixa participação do Brasil em Acordos de Livre Comércio, argumentam muitos analistas, deve-se a obstáculos criados pelo Mercosul.
De fato, o Mercosul teve um início dinâmico, promovendo a redução de tarifas de importação para a maioria dos bens e contribuindo para a atração de investimentos estrangeiros e para a criação de uma integração produtiva em alguns setores relevantes para a economia dos países membros. Mas com o passar do tempo, a história do bloco foi sendo marcada por períodos de desalinhamento político entre os membros, que se alternaram em fases mais ou menos favoráveis à maior integração comercial com outros países.
Como observam Thorstensen e sua equipe, o Mercosul é um projeto inacabado. Estima-se que parte significativa das normas aprovadas pelo bloco não foram internalizadas, o que limita avanços importantes na integração econômica em áreas como compras governamentais, facilitação de comércio e código aduaneiro do Mercosul. O Código Aduaneiro do Mercosul (CAM), estabelecido desde 2010, por exemplo, ainda não foi internalizado.
A sequência de crises econômicas que afetaram os dois maiores países do bloco, defende João Emílio Gonçalves, fortaleceu posicionamentos mais protecionistas dos governos, em diversos momentos. Tais posições se refletiram não só em maior dificuldade para avançar em acordos com novos parceiros como em restrições ao comércio intrabloco.
Nesse contexto, uma das principais críticas ao Mercosul tem sido direcionada à opção do bloco pela constituição de uma união aduaneira, que estaria por trás das dificuldades em avançar na negociação de acordos com outros países. Isso ocorre porque a união aduaneira exige consenso de todos os membros para a negociação de acordos com outros países ou blocos.
O processo de negociação em bloco envolve, de fato, etapas adicionais de busca de mandato negociador e harmonização da lista de ofertas dos produtos entre os quatro países do Mercosul. Traz, por outro lado, como lembra Gonçalves, maior poder negociador para abertura de mercados ao Brasil, sobretudo no agronegócio, onde estão as principais barreiras em muitos dos nossos parceiros comerciais.
Uma segunda crítica dirigida ao modelo de união aduaneira é que este pressupõe a existência de uma tarifa externa comum (TEC) aplicada às importações de fora do bloco, ao contrário do que ocorre em áreas de livre comércio. Neste caso, “as forças protecionistas em relação a importações provenientes de fora do bloco tendem a se fortalecer no contexto de uniões alfandegárias”, como defendem Ferraz, Ornelas e Pessoa em “Política Comercial Brasileira: Estratégia de Inserção Internacional”.
Por fim, outra crítica é que o Mercosul constitui uma união aduaneira bastante imperfeita, com um histórico de sucessivas medidas para preservar a proteção a alguns setores (principalmente no comércio bilateral entre o Brasil e a Argentina), manutenção de regras que permitem diversas perfurações da TEC e com poucos avanços para a eliminação de uma série de barreiras não tarifárias que incluem barreiras técnicas, licenças de importação e barreiras sanitárias e fitossanitárias.
Soma-se a isso a observação de que o único caso de união aduaneira economicamente relevante e bem sucedida é o da União Europeia e que esta, diferentemente do Mercosul, consiste em um projeto de integração fortemente institucionalizado e com instâncias supranacionais de governança.
A falta de uma estrutura robusta de governança se reflete em uma das principais dificuldades observadas no Mercosul, que é o déficit de implementação das normas aprovadas. Inúmeras medidas ou acordos aprovados não possuem prazos para entrada em vigor e não são internalizados pelos países ou o são com muito atraso, como enfatiza João Emílio Gonçalves.
Apesar das deficiências do Mercosul, o bloco continua de grande importância para as exportações brasileiras, notadamente, para seu setor industrial. Argentina, Paraguai e Uruguai, somados, representaram 25% das exportações brasileiras de produtos manufaturados e são o segundo maior destino dos investimentos das empresas do país no exterior. O Mercosul é, ainda, o destino que concentra a maior proporção de bens industrializados nas exportações brasileiras (93%).
Por esta razão, as exportações para o bloco têm grande efeito multiplicador: cada R$ 1 bilhão exportado para os países do bloco adiciona R$ 4,1 bilhões na economia brasileira, segundo a CNI em “Agenda para o Mercosul: um novo impulso para o bloco”, de 2019.
Assim, é de interesse do Brasil aperfeiçoar o Mercosul e não retroceder na integração com estes países. Inclusive, porque, como defendem os professores Afonso Fleury (Poli-USP) e Maria Thereza Fleury (EAESP-FGV), na Carta IEDI n. 1092, o bloco é um canal importante para a internacionalização de nossas empresas e o primeiro passo para a formação de cadeias regionais de valor.
Entre os espaços de aprimoramento está, sobretudo, a flexibilidade do processo negociador. Parece possível criar alguma flexibilidade dentro do modelo atual de união aduaneira para acomodar posições distintas que os países do bloco possam apresentar.
João Emílio Gonçalves sugere preservar o princípio de que a decisão de abertura de negociações deve ser conjunta entre os quatro membros e, uma vez estabelecido o mandato negociador, quando necessário, flexibilizar as ofertas em bens entre os países e, caso esse tipo de flexibilização não atenda e os países tenham posições divergentes quanto à velocidade das negociações, permitir a elaboração de um acordo quadro dentro do qual os países do bloco possam negociar individualmente.
Medidas semelhantes a estas já foram adotadas, segundo Gonçalves, demonstrando que o abandono da união aduaneira e da TEC não é uma condição necessária para que se tenha maior flexibilidade. Exemplos incluem o acordo com o México e, mais recentemente, o acordo de livre-comércio Mercosul-Israel e as ofertas em compras governamentais
Como apontam Thorstensen e sua equipe, não podemos conceber o Mercosul como algo alheio à nossa responsabilidade. Somos parte integrante e a principal economia do bloco. O Mercosul não é desculpa para procrastinar a inserção externa brasileira.
Recentemente, convergências entre os governos brasileiro e argentino, permitiram, em 2019, dar início a discussões sobre a revisão da Tarifa Externa Comum (TEC), que ao longo de seus 25 anos nunca foi revista de maneira ampla.
Em 2021, segundo a SECEX, o Brasil, apoiado pelo Uruguai, propôs uma redução linear imediata de 10% da TEC seguida de outros 10% até o final do mesmo ano. O governo argentino, porém, concordou apenas com reduções pontuais, mas não com uma redução linear que abranja todos os produtos. Reações contrárias também vieram de parcela do setor privado argentino e brasileiro. Para Thorstensen, as chances de aprovação da proposta brasileira são reduzidas.
Nesse cenário de sucessivos impasses, os governos brasileiro e uruguaio defendem a flexibilidade para que cada membro possa realizar acordos bilaterais de comércio, por entenderam que o processo decisório do Mercosul é extremamente lento e dificulta avanços da integração comercial. Para a Argentina, os planos de flexibilização do Mercosul defendidos pelo Brasil violam o Tratado de Assunção.
Apesar dos constantes desentendimentos e da paralisia atual, para além das dificuldades para redução tarifária, o Mercosul tem progredido: conseguiu concluir as negociações com a União Europeia, como será discutido na próxima seção, e avançou na atenuação de barreiras técnicas ao comércio entre seus membros.
O ato normativo de maior importância na visão de Thorstensen e sua equipe é o Marco Geral para Iniciativas Facilitadoras de Comércio (IFCs), previsto na Decisão 16/19, destinado a abrigar toda e qualquer iniciativa voltada para avançar na superação de barreiras regulatórias de caráter técnico ao comércio intrabloco.
Possíveis progressos decorrentes de negociações conjuntas bem sucedidas também podem advir da agenda externa do Mercosul. Esta abrange quatro iniciativas de negociação com Canadá, Coreia do Sul, Cingapura e Líbano e pode possibilitar a diversificação da via Sul-Sul de abertura comercial trilhado pelo Brasil no passado recente.
Importantes avanços na agenda externa do Mercosul com outras regiões do mundo que receberam pouco destaque incluem a conclusão de cronogramas bilaterais de liberalização entre o Mercosul e os parceiros andinos. Com a evolução dos cronogramas de desgravação tarifária, praticamente não há mais barreiras tarifárias sobre bens entre os sócios do Mercosul e Bolívia, Colômbia, Chile, Equador, Peru e Venezuela. Este cenário tende a dar contornos mais claros ao projeto de criação progressiva de um Espaço de Livre Comércio na ALADI.
6. Acordo Mercosul-União Europeia: guia para negociações futuras
A negociação do acordo do Mercosul com a União Europeia, concluída em 2019, bem como as dificuldades que têm sido observadas nos passos que ainda precisam ser dados para sua assinatura e internalização pelos países signatários trazem alguns ensinamentos que podem ser úteis para o firmamento de outros acordos de abertura comercial.
Em primeiro lugar, ficou demonstrado que, a despeito de suas imperfeições, como discutido em seção anterior, é possível para o Mercosul negociar acordos relevantes e complexos. No caso, registre-se, um acordo entre dois blocos caracterizados como uniões aduaneiras.
Pode-se argumentar, com razão, que vinte anos é um prazo excessivamente longo para negociar um acordo, mas é preciso observar que as motivações e o empenho dos governos variaram muito ao longo deste período.
O acordo nasceu no contexto da negociação da Alca, em certa medida como um contraponto, por razões geopolíticas. A partir daí, diversos eventos, incluindo o processo da Alca e a concentração de esforços na Rodada Doha fizeram com que as negociações do acordo UE-Mercosul vivessem momentos de maior e menor dinamismo.
Segundo Thorstensen e sua equipe, a falta de priorização no progresso da integração internacional do Brasil ou de outros países do Mercosul, o redirecionamento da estratégia brasileira para o chamado eixo Sul-Sul, ou outros conflitos de percepção e de estratégia dos diferentes governos da região, além da resistência dos europeus na agenda agrícola, impediram a formação de consensos que possibilitassem um avanço mais célere das negociações.
Com a crise financeira 2008, houve uma expectativa inicial de que os governos se voltariam para dentro. Alguns anos depois, contudo, com a abertura das grandes negociações em torno da TTIP (Transatlantic Trade and Investment Partnership) e da TPP (Trans Pacific Partnership), pode-se dizer que cresceu a percepção da importância de avançar na integração internacional para evitar uma deterioração do acesso a outros mercados e o isolamento do Brasil.
Para João Emílio Gonçalves, não parece exagero afirmar que, a partir do momento em que houve empenho inequívoco do governo brasileiro, em particular, mas também dos demais parceiros do Mercosul, sobretudo, da Argentina, o acordo avançou. Esta percepção é compartilhada por Thorstensen e sua equipe.
Outra importante conquista ao longo do processo de negociação foi o diálogo entre o setor público e o setor privado, que se valeu, inclusive, de instâncias de discussão suprassetoriais, a exemplo da Coalização Empresarial Brasileira (CEB), que embora seja coordenada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), reúne empresas e entidades empresariais da agricultura, indústria e serviços.
Com a complexidade crescente das negociações, dispor de mecanismos eficazes para facilitar o diálogo público-privado foi fundamental, tanto para construir consensos quanto para subsidiar os negociadores com dados técnicos precisos sobre a realidade dos setores. Tal interação e o sistemático diálogo entre setor público e setor privado deveriam se repetir em futuros processos de abertura comercial do país.
Esta interlocução também permitiu a construção de consensos entre os diferentes setores econômicos da iniciativa privada, nem sempre sensíveis aos mesmos interesses, não apenas facilitando a elaboração da lista de oferta brasileira, mas também conferindo legitimidade às posições do governo brasileiro e solidificando o apoio formal do setor privado à conclusão do acordo junto ao executivo, legislativo e entidades públicas e privadas dos países do bloco europeu. Foi uma importante conquista que não pode ser perdida, pois facilitará novas iniciativas de integração do Brasil no comércio global.
A indústria e seus setores, argumenta João Emílio Gonçalves, deixaram de formar blocos monolíticos em defesa de posições extremas pró ou antiacordo. A existência de informações sobre os ganhos líquidos esperados do acordo, a transparência e abertura para o diálogo com os negociadores e a previsibilidade sobre o processo de abertura, com o estabelecimento de cronogramas de desgravação que permitam acomodar temas sensíveis foram elementos relevantes para viabilizar a formação de consensos com o setor privado.
A característica de horizontalidade, intrínseca a grandes acordos, que envolvem parcela relevante dos bens produzidos no país e atingem os setores de forma abrangente, também é relevante no momento de se demonstrar o balanço de ganhos. Vale lembrar que, em termos tarifários, a desgravação de produtos passa de 90% no Mercosul e 95% das linhas tarifárias são desgravadas a zero na União Europeia, o que reflete horizontalidade e a ambição quanto às metas de criar uma área de livre comércio.
Essas características, em conjunto, foram fundamentais para que o setor alcançasse um consenso para apoiar a negociação do acordo e, consequentemente, tenha contribuído com subsídios para a sua formatação. Este é um aprendizado que se pode retirar da conclusão do Acordo Mercosul-UE que deveria nortear o processo de futuras negociações.
Ademais, segundo Thorstensen e sua equipe, o acordo ultrapassa as agendas comerciais prévias e estabelece um marco normativo que contribuirá para o fortalecimento do marco institucional dos países do Mercosul, melhorando seu ambiente de negócios.
Possui um amplo escopo temático e abrange 21 tópicos, tais como compromisso de desgravação tarifária, regras de origem, medidas não-tarifárias (sanitária, fitossanitárias, barreiras técnicas), compras governamentais, propriedade intelectual, pequenas e médias empresas, comércio e desenvolvimento sustentável, facilitação do comércio, entre outros.
Estabelece um esquema de liberalização gradual, especialmente dos setores mais vulneráveis do Mercosul, com prazo de até 15 anos para a eliminação total das tarifas, permitindo a adaptação das empresas à nova realidade de mercado. O artigo 3º do acordo prevê que cada parte pode acelerar seu cronograma de eliminação tarifária ou de outra forma melhorar as condições de acesso a mercado se sua situação econômica geral e a situação econômica do setor referido assim permitirem.
Além disso, a cada três anos após a entrada em vigor do acordo, mediante requerimento de qualquer parte, o subcomitê de comércio de bens deve ser consultado para considerar medidas para prover melhor acesso a mercado. O acordo prevê ainda, no artigo 5º, regras de liberalização comercial relativas a taxas e ônus além de tarifas de importação e exportação.
As regras de liberalização comercial do acordo acima mencionadas e as previstas de maneira mais detalhada são refletidas na diminuição das tarifas dos membros do acordo. Os gráficos a seguir ilustram respectivamente a redução tarifária de Brasil e União Europeia no período entre 2019 e a conclusão das regras do acordo sobre liberalização comercial.
Como Thorstensen e equipe observam, o acordo também favorece o comércio de serviços modernos. Em seu capítulo sobre comércio de serviços, permite inserir o Brasil, país com arcabouço de exportação de serviços muito jovem, na economia 4.0, em que serviços são prestados por meio dos bens exportados. É o caso, por exemplo, dos serviços externos prestados graças à exportação de máquinas e equipamentos, como manutenção e monitoramento via internet das coisas (IoT).
Quanto à sustentabilidade, o acordo Mercosul-UE prescreve que cada parte deve se esforçar para melhorar suas leis e políticas para garantir níveis elevados e efetivos de proteção ambiental e trabalhista. Em termos amplos, o acordo estabelece que os países-membros devem permanecer no Acordo de Paris e cumprir as obrigações previstas em outros acordos ambientais multilaterais e em algumas convenções da Organização Internacional do Trabalho.
Thorstensen e sua equipe chamam a atenção para o fato de que a implementação destes compromissos será mais exigente para os países do Mercosul do que para os países europeus, pois estes últimos convivem com um status quo regulatório muito próximo ao que foi negociado no acordo. Mas em contrapartida, contribui para o avanço do marco regulatório dos países do bloco.
A questão ambiental, até o momento, é o maior obstáculo à ratificação do acordo pelos países, sobretudo na Europa, onde tem havido crescimento significativo do Partido Verde, tanto no Parlamento Europeu como na política nacional de muitos membros da UE. Os compromissos ambientais previstos no acordo, como o de respeitar o Protocolo de Paris, não são aceitos como suficientes pelos Verdes. Em entendimento semelhante, o relator do acordo no Parlamento Europeu, defendeu maior proteção da Amazônia sob o próprio tratado.
Equívocos de comunicação e falta de suficiente compromisso com a agenda ambiental por parte do Brasil também acabam munindo de argumentos legítimos parcelas da sociedade europeia que se opõem à maior concorrência dos países do Mercosul. É o caso notadamente da agricultura, dado o temor de que haja maior fragilização de segmentos já vulneráveis, diante da ausência de exigências técnicas de produção já adotadas pelos europeus.
O acordo estabelece também regras em áreas em que existe um vácuo regulatório no Mercosul. Essa constatação tem gerado inquietação entre alguns analistas, preocupados com o fato de que a incompletude da agenda de integração do Mercosul poderá representar um fator de risco para a sobrevivência do bloco como instância de integração regional relevante após a implementação do novo acordo.
Essencialmente ao longo de 2019, o Mercosul teve importante produção normativa, o que, ao menos em parte pode ser atribuído à conclusão de um acordo comercial em princípio com a União Europeia e à decorrente percepção da necessidade de avançar nos compromissos intrabloco.
Avanços foram observados nos seguintes aspectos de setores específicos: acordos bilaterais no setor automotriz, acordos na área de serviços e o acordo de reconhecimento mútuo de indicações geográficas. No primeiro setor, em outubro de 2019 foi assinado o 43º Protocolo Adicional ao Acordo de Complementação Econômica (ACE) 14 e em dezembro de 2019 foi assinado o 44º Protocolo Adicional ao respectivo acordo.
O primeiro destes protocolos reflete a preocupação com as eventuais divergências entre as regras acordadas com os europeus e àquelas aplicadas ao sócio do bloco. O segundo protocolo busca também tornar as regras do acordo adequadas às regras previstas no acordo entre Mercosul e União Europeia e apresenta como principais disposições a manutenção da administração do comércio até junho de 2029 que será seguida em julho de 2029 pelo livre comércio de produtos automotivos; o estabelecimento de um cronograma para a ampliação gradual do flex; a previsão do requisito de origem para automóveis e veículos leves, ônibus, caminhões, tratores rodoviários e agrícolas, chassis e carrocerias, reboques e máquinas rodoviárias de 50% para o índice de conteúdo regional (ICR) com o uso na fórmula de cálculo do conceito de valor aduaneiro para os insumos e o cumprimento relativo às autopeças dos requisitos de origem do ACE 18 que regula o comércio intrarregional. A partir de janeiro de 2027, os requisitos de origem para autopeças devem ser os requisitos específicos indicados no apêndice II do protocolo, que foram estabelecidos tomando como base as regras de origem definidas no acordo entre Mercosul e União Europeia.
No setor de serviços, merece destaque a Emenda ao Protocolo de Montevidéu sobre Comércio de Serviços do Mercosul que reforma o anexo sobre serviços financeiros do respectivo protocolo. A emenda apresenta como objetivo, in verbis, refletir mais adequadamente a evolução e a regulamentação deste tipo de serviços, estabelecer critérios que permitam salvaguardar a capacidade de atuação dos reguladores financeiros e incorporar os avanços alcançados em negociações do Mercosul com terceiros países ou grupos de países.
O novo anexo sobre serviços financeiros incorpora disposições constantes do acordo com a União Europeia como as cláusulas relativas a sistema de pagamento e compensação, novos serviços financeiros, regulação efetiva e transparente, processamento de dados e organizações autorreguladas.
O tema das indicações geográficas está inserido principalmente nos setores agropecuário e alimentar. Em 2019 foi adotado um Acordo para a Proteção Mútua das Indicações Geográficas Originárias nos Territórios dos Estados Partes, o qual apresenta como regra central a proteção por meio de leis e regulamentações de cada membro do bloco de indicações geográficas provenientes dos membros que não sejam agrícolas nem agroalimentares, vinhos ou bebidas destiladas.
O acordo esclarece também que não é aplicável a indicações geográficas de terceiros países mesmo que protegidas em qualquer membro do Mercosul. Essas observações referentes à proteção concedida a indicações geográficas de terceiros países devem ser lidas à luz das negociações recentes com a União Europeia, em que o Mercosul reconheceu cerca de 350 indicações geográficas de territórios de países da União Europeia.
Ou seja, a lista de indicações geográficas dos países da União Europeia protegidas nos membros do Mercosul já foi elaborada e aceita por meio de negociação, enquanto, no caso do Mercosul, a decisão em questão trata precisamente das regras e procedimentos para a elaboração das listas nacionais dos Estados partes a serem validadas entre os países do bloco.
Além da criação de regras em áreas não reguladas no Mercosul e do incentivo à regulação em setores específicos, o acordo entre Mercosul e União Europeia sinaliza a necessidade de revisão do regime de origem do Mercosul previamente abordada na resposta à quarta pergunta.
No novo cenário, definido pela conclusão do acordo extrarregional, ganha prioridade a revisão do regime de origem do bloco, de forma a evitar a convivência de regimes muito distintos e, eventualmente, a aplicação aos sócios de um tratamento menos favorável do que o dispensado aos produtos europeus e de outras origens com base em acordos extrarregionais firmados pelo bloco.
Mesmo antes da divulgação do Protocolo de Origem do acordo entre Mercosul e União Europeia, as negociações demonstravam que seria inviável a adoção do padrão Mercosul, considerado ultrapassado e pouco adaptado às condições econômicas e comerciais vigentes, após vinte e quatro anos de sua implementação.
Tornava-se imprescindível adaptar as regras de origem à evolução da tecnologia e das cadeias produtivas globais e regionais, permitindo maior complementariedade no comércio de insumos e bens intermediários entre os sócios do novo acordo.
A revisão do regime de origem tem sido feita de maneira gradual. Pelos ajustes promovidos em acordos bilaterais adequando regras de origem ao padrão de requisitos específicos, é possível identificar uma estratégia de reformar o regime do Mercosul em diversas frentes, em especial naquelas que devem sofrer impactos diretos das regras acordadas no acordo entre Mercosul e União Europeia.
Este processo vem ocorrendo nos acima mencionados acordos bilaterais no setor automotivo. Uma vez concluída a revisão do Regime de Origem do Mercosul, ainda restará a necessidade – ou a conveniência – de ajustar os regimes de origem que regem o comércio com os demais países latino-americanos. Na América do Sul, é imperiosa a convergência dos regimes de forma a promover cadeias regionais de valor, ainda mais se for considerada a condição de livre comércio entre o Mercosul e a Bolívia, a Colômbia, o Chile, o Peru e o Equador.