Carta IEDI
Financiamento de Longo Prazo: o avanço da intermediação privada
O IEDI retoma, nesta Carta, o acompanhamento do desenvolvimento do mercado de crédito de longo prazo no Brasil, à luz da evolução recente e dos aprendizados com a crise da Covid-19. Toma como base o estudo preparado pelos economistas Ernani Torres Filho, Luiz Macahyba e Norberto Martins, pesquisadores da UFRJ e ex-superintendentes do BNDES e Anbima.
Entre as Cartas IEDI anteriores que também abordaram o tema estão as edições n. 528 de jul/12 “A Reforma do Financiamento de Longo Prazo”, n. 791 de jun/17 “O financiamento de longo prazo no Brasil: análise e propostas para melhorias”, n. 873 de ago/18 “O futuro do BNDES e do mercado de capitais no Brasil”, e n. 1018 de jul/20 “Fundos garantidores e o crédito para pequenas e médias empresas”, apenas para citar alguns exemplos.
Historicamente, o crédito corporativo de longo prazo no Brasil foi liderado pelo BNDES, a partir da intermediação de recursos públicos. O banco de desenvolvimento proveu a maior parte dos fundos usados pelas empresas industriais e de infraestrutura para financiar a expansão e a modernização de sua capacidade produtiva.
Os recursos aportados pelo sistema bancário privado e pelo mercado de capitais costumavam ter menor porte e um caráter complementar às operações do BNDES, isto é, destinavam-se a usos não cobertos pelo Banco ou a adiantamentos a serem liquidados com futuras liberações dessa instituição.
No início da década de 2010, duas reformas foram introduzidas no mercado de capitais que mudaram um pouco este quadro, ao promoverem o desenvolvimento da intermediação privada doméstica. Foram a criação das debêntures incentivadas (Lei nº 12.431/11) e da modalidade de emissões de valores mobiliários com esforços restritos (Instrução CVM nº 476).
Essas duas inovações institucionais permitiram o desenvolvimento de um mercado com maior liquidez, capaz de atender prazos mais longos (até 7 anos) e com custos de intermediação menores. A escala dessas emissões manteve-se, no entanto, contida até a segunda metade da década por força das elevadas taxas de juros.
Nova mudança foi introduzida com a política de ajuste macroeconômico adotada a partir de 2015. A queda abrupta nas taxas de investimento – de 20% para 15% do PIB – e o aumento do custo dos empréstimos do BNDES reduziram a demanda pelos recursos da instituição. O papel do banco foi restringido e o caixa da instituição foi direcionado para a aceleração dos pagamentos de suas dívidas com a União.
Ao mesmo tempo, a redução das taxas de juros neste período levou os investidores a buscarem novas formas de rentabilizar seu patrimônio, o que gerou uma realocação de seus portfólios em favor de ativos de maior risco-retorno, como a dívida corporativa de longo prazo e ações.
Nesta situação, as empresas passaram a se interessar mais por acelerar suas emissões no mercado de capitais, como uma forma de reduzir o custo médio do seu passivo, mas também, em menor grau, para financiar seus investimentos. Os bancos comerciais, por sua vez, substituíram uma parte relevante do papel que o BNDES tradicionalmente desempenhava no financiamento de compras de máquinas e equipamentos pelas empresas.
Como resultado dessas transformações, as emissões de debêntures corporativas foram responsáveis, em 2019, pela captação de R$ 173 bilhões, um volume superior a três vezes o total desembolsado pelo BNDES no mesmo ano (R$ 55 bilhões). As debêntures incentivadas, focadas em projetos de infraestrutura, atingiram seu máximo histórico com lançamentos no valor de R$ 33 bilhões no mesmo ano.
Esses dados sinalizam as mudanças que estão em curso no funcionamento do mercado de crédito de longo prazo no Brasil. A liderança no financiamento corporativo de longo prazo migrou do BNDES para a intermediação privada do mercado de capitais e dos bancos.
Entretanto, a sustentabilidade futura dessa recente mudança dos papéis dos diferentes players no financiamento de longo prazo ainda é uma questão em aberto. A evolução da taxa de juros terá um papel fundamental nessa trajetória. Sua elevação substancial poderá gerar um forte refluxo das emissões corporativas.
Ademais, no caso de uma rápida retomada do crescimento econômico, o mercado de capitais poderá não apresentar as condições de liquidez e profundidade necessárias para conseguir atender adequadamente essa demanda adicional de recursos.
Além desses dois aspectos, a liderança privada introduz novas características no mercado de crédito corporativo de longo prazo. Um fator positivo é a maior elasticidade de oferta, particularmente em momentos de expectativas favoráveis à aceleração do crédito.
Em compensação, a captação privada pode se contrair abruptamente por fatores macroeconômicos ou pelo aumento da fragilidade financeira. Por isso, o país pode se favorecer com a complementaridade das operações do BNDES, mais estáveis ao longo do ciclo econômico.
Mecanismos de garantia pública podem ter maior eficiência que o direcionamento do crédito, desde que tenham aceitação pelas instituições financeiras, de modo a favorecer a manutenção de uma trajetória expansiva do crédito em conjunturas adversas, como mostrou a experiência durante a crise da Covid-19.
Do mesmo modo, o crédito público e o BNDES, em particular, precisam desenvolver instrumentos e adotar critérios para cumprir um papel importante como mecanismo indutor e financiador dos investimentos de prazos muito longos, particularmente, em infraestrutura, e daqueles necessários para promover uma economia mais produtiva, mais inovadora e de baixo carbono no país.
As sugestões abaixo recomendadas pelo já citado estudo contribuiriam para o fortalecimento do crédito de longo prazo:
a) Rever os regulamentos de ofertas públicas da Comissão de Valores Mobiliários de modo a estimular o lançamento a um público mais amplo de títulos corporativos, particularmente daqueles associados às debêntures de infraestrutura. Hoje, as restrições regulatórias impõem custos discriminatórios ao uso da modalidade de emissões pulverizadas (ICVM 400), que praticamente caiu em desuso.
b) Criar a modalidade de emissor qualificado, permitindo que empresas com experiência comprovada de seguir as normas de oferta da CVM, sejam autorizadas a emitir debêntures para o público mais amplo sem precisarem se submeter a uma autorização prévia da Comissão.
c) Fortalecer os mecanismos de garantia de crédito para MPMEs, criando condições para seu funcionamento permanente, a exemplo do Peac, administrado pelo BNDES;
d) Avaliar a aplicação para a parcela fixa da TLP de um redutor permanente de 50% no seu cálculo, acompanhando o exemplo do que a legislação já prevê para os fundos constitucionais para as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
e) Conceder às captações do BNDES a isenção de imposto de renda. O BNDES permanece exercendo papel importante para o financiamento de várias atividades – a exemplo de infraestrutura, inovação, meio ambiente, financiamento às exportações - e para reduzir o componente procíclico da oferta de fundos, que tende a ser mais intenso e pronunciado no financiamento privado, sobretudo, nos segmentos de longo prazo.
f) Autorizar o Banco Central a operar como dealer de última instância no mercado de títulos corporativos em momentos de estresse de mercado; e
g) Criar mecanismos públicos de garantia e incentivos para fundos que promovam o acesso de MPMEs ao mercado de capital.
Introdução
No início dos anos 2010, a economia brasileira viveu um momento particularmente otimista. O país havia atravessado com sucesso a Crise de 2008 e se esperava que a economia continuasse crescendo a taxas elevadas, semelhantes às alcançadas no passado recente.
Nesse ambiente, uma das principais indagações nos meios empresariais, acadêmicos e de governo era a de como financiar um novo ciclo de investimentos, caso a Formação Bruta de Capital Fixo se elevasse para algo próximo a 25% do Produto Interno Bruto (PIB).
De onde viriam os recursos para financiar os novos projetos? Deveria o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) continuar expandindo sua carteira de crédito? Qual o papel que o mercado de capitais deveria ocupar?
Havia uma percepção de que o mercado de debêntures poderia atender uma parte relevante dessa demanda adicional de recursos para investimento, como ressaltou o IEDI em 2012 no estudo “O Elo Perdido: O Mercado de Títulos de Dívida Corporativa no Brasil: Avaliação e Propostas”. O Brasil estaria, assim, seguindo a mesma trajetória já observada no exterior, tanto no mundo desenvolvido quando entre países emergentes.
O debate de 2010 levou à aprovação de uma legislação que criou a isenção de imposto de renda para os rendimentos provenientes de debêntures vinculadas a projetos de investimento em infraestrutura (Lei nº 12.431/11). Estendia-se, assim, para esse setor os mesmos incentivos fiscais que até então eram limitados aos setores agrícola e imobiliário.
Outra inovação importante foi a criação pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) de um mecanismo mais célere, barato e desburocratizado de emissões, desde que voltadas para um público restrito a 50 investidores.
Desde então, o crédito corporativo de longo prazo se expandiu de forma significativa, ao mesmo tempo em que as taxas de juros se reduziram e os prazos se alongaram. Com isso, a profundidade e a liquidez desse mercado aumentaram expressivamente, em particular no segmento incentivado. A expansão ocorrida ao longo da última década permitiu um aumento relevante no estoque desses títulos.
Com isso, houve também mudanças importantes na estrutura da concorrência nas emissões; na gestão desses ativos; e nas estratégias de composição de portfólio dos investidores e de administração de passivos dos tomadores desses recursos.
Como consequência, houve avanços que foram além das expectativas dos participantes mais otimistas do debate do início da década. Naquele momento, a preocupação central era criar condições para que o mercado de debêntures pudesse ter um papel coadjuvante no financiamento doméstico do investimento fixo das empresas. Deveria, assim, atuar complementarmente ao BNDES, principalmente se a taxa de investimento continuasse avançando.
A trajetória da última década, no entanto, seguiu outro curso. Diferentemente do que se esperava, a taxa de investimento colapsou para cerca de 15% a partir de 2015, nível muito aquém dos 25% desejados. Além disso, os empréstimos do BNDES se contraíram a passos largos. Mesmo assim, o crédito corporativo privado (Empréstimos e debêntures, exceto de empresas de leasing) registrou forte expansão.
Os volumes elevados de emissões permitem afirmar que uma parcela crescente desse mercado, que antes buscaria os recursos do BNDES, está atualmente sendo atendida pelo mercado de capitais e pelos bancos. As duas inovações institucionais introduzidas no início da década tiveram um papel importante nessa transformação. Entretanto, o mercado só conseguiu adquirir uma escala relevante, com a substancial redução nas taxas de juros básicas operada pelo Banco Central a partir de 2015.
A experiência internacional mostra que a consolidação de um mercado de crédito de longo prazo liderado pela intermediação privada é funcional ao desenvolvimento quando vem acompanhada de mecanismos públicos. Esses mecanismos devem oferecer um direcionamento do crédito acoplado a objetivos públicos, além do suporte regulatório e de liquidez necessários para estabilizar sua atuação.
A maior importância da gestão privada dos recursos de longo prazo abre espaço para que seja ampliado o rol de instrumentos públicos de facilitação e mobilização desse crédito. No passado, o governo praticamente se restringiu a operar bancos e fundos públicos. Nesse novo cenário, além destes instrumentos, mecanismos de mobilização, como garantias públicas e até mesmo subsídios, onde se justificarem, podem ser igualmente eficazes. A experimentação realizada em 2020, como resposta à crise da Covid-19, teve acertos e erros que podem servir de guia.
Um mercado de longo prazo comandado pelos bancos e pelo mercado de capitais apresenta vantagens em termos de gestão alocativa e de elasticidade de oferta de fundos. Entretanto, introduz também fragilidades, relacionadas a sua natureza procíclica.
Desse ponto de vista, é importante recalibrar os instrumentos públicos existentes, inclusive os de liquidez, de modo a garantir que o financiamento, em particular de projetos de investimento, possa ter um curso mais estável.
Crédito de longo prazo no Brasil: um breve retrospecto
O sistema financeiro nacional atravessou grandes transformações desde a criação do real em 1994. Houve uma profunda alteração nas “regras do jogo”, que até então norteavam o ordenamento dos mercados e a competição entre as diferentes instituições financeiras. Como resultado, entre 1994 e 2000, desapareceram cerca de 50% das instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central.
Essas reformas tinham por objetivo integrar o Brasil ao sistema internacional, então já em um estágio avançado de globalização financeira. Essa incorporação se manifestaria plenamente quando os capitais estrangeiros passassem a compor regularmente seus portfólios com ativos denominados em reais. Para isso, era necessário que as condições de originação, de liquidez, de entrada e saída dos investidores, de informação e de estabilidade sistêmica do mercado local fossem equiparadas às melhores práticas adotadas no exterior.
Esse processo foi seguido pari passu com a ampliação da conversibilidade do real e a liberalização da conta de capitais. Os principais marcos dessas reformas foram: a imposição dos princípios do Acordo de Basiléia em 1994 aos bancos nacionais; as mudanças introduzidas na gestão da Dívida Pública Mobiliária Interna – as chamadas 21 Medidas de 1999; e a reforma do Sistema de Pagamentos de 2002.
A partir dos primeiros anos 2000, a incorporação do mercado financeiro nacional ao sistema global começou a dar resultados palpáveis. A forte entrada de investimentos externos propiciou a acumulação de reservas internacionais e a liquidação da dívida pública indexada ao dólar, o que reduziu a restrição externa do país.
Este cenário abriu espaço para que as autoridades adotassem um novo conjunto de reformas microeconômicas, que tiveram grande impacto nos anos seguintes na expansão do crédito, em particular para as pessoas físicas. Dentre as medidas introduzidas nesse período foram particularmente importantes a criação do crédito consignado e a extensão ao mercado imobiliário do instituto da alienação fiduciária.
Entretanto, ao longo desse período intensamente reformista (1994-2005), o estoque do crédito doméstico se manteve praticamente estagnado e em níveis internacionalmente baixos. No caso dos empréstimos bancários, o saldo dessas operações permaneceu abaixo de 30% do Produto Interno Bruto (PIB), acompanhado por elevadas das taxas de juros e pela concentração em ativos de curto prazo.
Esse quadro de forte restrição financeira só começou a ser rompido a partir de 2005, quando finalmente o crédito passou a crescer mais rapidamente que o PIB. Inicialmente, esse processo ficou circunscrito às operações com pessoas físicas, por causa da rápida difusão de novos produtos, como o crédito consignado e o imobiliário. Também contribuíram positivamente para esse desempenho o crescimento vigoroso do emprego e da renda.
O financiamento às pessoas jurídicas teve um comportamento distinto. Sua expansão foi mais lenta e tardia e, a partir da crise de 2008, teve o BNDES como ator protagonista. Como resposta ao impacto negativo da crise financeira internacional, o banco de desenvolvimento operou para sustentar o nível de investimento, compensando a retração dos empréstimos privados.
Essa atuação pode ser ilustrada por dois indicadores: a participação do BNDES no estoque de crédito bancário passou, entre 2008 e 2010, de 16% para 21%, e suas operações frente ao PIB saltaram de 6% para quase 10%.
A rápida expansão do banco de desenvolvimento suscitou à época um intenso debate acerca do futuro do crédito corporativo de longo prazo. A discussão girou ao redor de dois temas. O primeiro foi a sustentabilidade dos mecanismos de expansão do funding do BNDES, que passou a depender fortemente de aportes do Tesouro Nacional.
O segundo tema se concentrou nos aprimoramentos regulatórios necessários para que o mercado de capitais pudesse vir a desempenhar um papel complementar ao do BNDES como fonte de recursos para o financiamento do investimento produtivo. Tais discussões eram alimentadas pela expectativa, como já foi observado, de que a taxa de investimento, que nesse período havia se elevado de 16% para 20%, viesse a atingir 25% do PIB. Essa trajetória poderia levar a um cenário de escassez de funding de longo prazo.
Havia sinais de que o mercado de capitais teria condições de suprir uma parte dessa demanda adicional de recursos. Antes mesmo da crise de 2008, os capitais estrangeiros haviam entrado em grande volume no Brasil, adquirindo primordialmente títulos públicos e ações denominados em reais.
No tocante aos títulos públicos, a participação dos estrangeiros chegou a atingir uma máxima de 30% do estoque e auxiliou o alongamento de prazos. O prazo médio das emissões se elevou de 1,1 ano em 2002, para 5,1 anos em 2011 e o total da dívida a vencer em 12 meses caiu pela metade. Os títulos sujeitos à correção cambial foram quase todos resgatados.
As emissões de títulos bancários também vivenciaram um período de expansão, impulsionadas pela criação das Letras Financeiras. Este novo ativo pretendia ser a “debênture bancária” na medida em que seus prazos mínimos e regras de indexação ofereceriam aos bancos um instrumento de captação com maior maturidade, reduzindo o potencial de descasamento entre suas operações ativas e passivas.
O mesmo aconteceu com os títulos vinculados às carteiras de crédito, originados pelos bancos. As emissões de Letras de Crédito do Agronegócio (LCA) e de Letras de Crédito Imobiliário (LCI) foram impulsionadas pelo benefício fiscal a que têm direito – seus rendimentos são isentos do imposto de renda quando auferidos por pessoas físicas.
O mercado de debêntures também registrou rápida expansão, mas por força das emissões massivas das empresas de leasing coligadas aos grandes bancos, o que, a rigor, constituía uma captação bancária. A partir da Crise de 2008, as emissões de títulos das empresas não-financeiras – as debêntures corporativas – começaram a tomar impulso.
Ainda assim, ao final da primeira década dos anos 2000, havia um certo consenso de que as emissões de debêntures corporativas tinham ficado “para trás” em comparação ao resto do mercado. O diagnóstico apontava que essa situação se devia: a entraves regulatórios; à baixa liquidez; e ao curto prazo de maturação desses papéis.
Era, portanto, necessário aperfeiçoar o mercado de debêntures para que este pudesse vir a cumprir um papel mais relevante na oferta de recursos de longo prazo para as empresas.
Alguns trabalhos publicados à época ofereceram recomendações de avanços regulatórios e fiscais, que embasaram a criação de um novo marco para o mercado de debêntures. Em particular, criou-se a isenção de imposto de renda sobre o rendimento pago a pessoas físicas domésticas detentoras desses títulos, desde que os recursos captados fossem destinados a financiar projetos de investimentos no setor de infraestrutura.
Gerava-se, assim, um atrativo para fomentar o desenvolvimento desse mercado, eliminando a desvantagem tributária até então existente frente a outros títulos de dívida privada (LCA e LCI). Também se equalizava o tratamento fiscal dos títulos privados aos públicos, quando adquirido por investidores estrangeiros.
Ao mesmo tempo, houve a facilitação pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) da emissão de títulos. Foi criada a modalidade de oferta com esforços restritos, com o intuito de reduzir os custos de emissão e abrir espaço para lançamentos de empresas de menor porte (sic).
Instituída pela Instrução nº 476/2009 da CVM, a oferta com esforços restritos consiste em ofertas destinadas a um número restrito de investidores qualificados. Originalmente com procura de até 50 e subscrição por até 20 investidores, atualmente, são permitidas a procura de até 75 e a subscrição por até 50 investidores. Esses investidores qualificados compreendem instituições financeiras, fundos de investimento e outros investidores institucionais ou pessoas físicas com elevado patrimônio financeiro.
Com o tempo, esse novo mecanismo se mostrou demasiadamente vantajoso frente à opção de distribuição ampla e passou a monopolizar praticamente todas as emissões de títulos corporativos - que continuaram concentradas em grandes empresas. Em 2019, por exemplo, apenas 8,6% das debêntures foram, em valor, emitidas de forma pulverizada (refere-se às ofertas públicas tradicionais, disciplinadas pela Instrução CVM nº 400, de 2003). Com isso, reduziu-se a competição pelas ofertas e alijou-se ainda mais as pessoas físicas dos mercados primários.
A opinião dominante do início da década de 2010 era que a expansão das emissões primárias e o aumento da liquidez no mercado secundário criariam condições para que as debêntures incentivadas viessem a ser uma alternativa de financiamento para os investimentos das empresas.
Entretanto, era claro que o ritmo de expansão desse novo ativo continuaria limitado pelas condições macroeconômicas, em particular pelo nível elevado das taxas de juros. Como alertavam Torres e Macahyba (2012): “O principal fator a restringir o desenvolvimento desse mercado é a persistência das altas taxas de juros – tanto em termos reais quanto nominais. Essa condição vem se mantendo por muitas décadas no Brasil e conseguiu sobreviver até mesmo aos avanços registrados nas condições de estabilidade macroeconômica”.
O Crédito Corporativo de Longo Prazo
No Brasil, as emissões de debêntures e os empréstimos por parte do BNDES (diretos ou por meio de agentes financeiros) respondem pela maior parte dos financiamentos corporativos de prazo mais longo. Entretanto, o crédito do mercado de capitais, assim como o dos bancos, sempre teve um papel menor e operou de forma complementar ao banco de desenvolvimento.
Havia uma certa especialização entre essas fontes. Os créditos do BNDES, em sua grande maioria, eram destinados a financiar investimentos em capital fixo. Já os fundos provenientes de debêntures eram usados, quase que exclusivamente, no alongamento de dívidas e no reforço do capital de giro.
A parcela dos recursos de debêntures alocada a investimentos em capital fixo era pequena, apesar de crescente, impulsionada pelas emissões de debêntures incentivadas. Segundo a ANBIMA, esta parcela atingiu seu valor máximo em 2017, quando respondeu por quase 18% de todas as emissões.
Essa especialização das formas de financiamento derivava da existência de um diferencial de juros e de prazos que tornavam os empréstimos do BNDES quase sempre mais atrativos. A vantagem era grande o suficiente para compensar os custos de transação mais elevados do banco de desenvolvimento, decorrentes dos requisitos de informação e de documentação, bem como dos prazos mais longos de seu processo decisório.
Nos últimos anos, porém, a fronteira entre esses dois segmentos foi desaparecendo. A criação da Taxa de Longo Prazo (TLP), em 2017, institucionalizou um nível mais elevado de taxa de juros do BNDES – que já vinha ocorrendo desde 2015, com a majoração da antiga TJLP – eliminando em grande medida as vantagens de custos dos recursos do banco de desenvolvimento.
Ao mesmo tempo, as taxas praticadas nas emissões de debêntures foram se reduzindo, enquanto os prazos passavam a ser cada vez mais longos, particularmente no caso dos títulos relacionados à infraestrutura – de acordo com a ANBIMA, o prazo médio da 1ª repactuação das debêntures de infraestrutura foi de 12,6 anos em 2019.
Com isso, o mercado de debêntures tomou aos poucos a liderança do financiamento corporativo de longo prazo. Do ponto de vista agregado, essa “mudança da guarda” teria ocorrido a partir de 2013, como mostra a figura a seguir.
Em 2020, o volume das operações de debêntures já era 50% maior que o dos créditos do banco de desenvolvimento. O estoque desses títulos parece, no entanto, ter sofrido um encolhimento semelhante ao observado no crédito do BNDES entre 2016 e 2018, o que sugeriria a manutenção da relação histórica de complementaridade entre os dois segmentos.
Entretanto, os dados desagregados das debêntures revelam uma história diferente. O encolhimento do estoque dessas operações nada teve a ver com a crise. Decorreu de uma decisão regulatória do Banco Central que obrigou os bancos – simultaneamente detentores das debêntures emitidas pelas leasing e controladores dessas empresas – a liquidarem uma grande parcela dessas operações.
Essa determinação da autoridade monetária se baseou no fato de essas debêntures serem simulações de crédito entre duas partes de um mesmo conglomerado financeiro. Os recursos assim captados pelas empresas de arrendamento mercantil eram aportados pelos bancos controladores e retornavam no mesmo instante a seus cofres na forma de depósitos interbancários. Assim, entre 2016 e 2020, o estoque dessas operações se reduziu de 8,4% do PIB (ou 68% do mercado) para 2,2% do PIB (isto é, menos de 25% do total inicial).
Ao se eliminar do cômputo geral as debêntures emitidas pelas leasings, a evolução do mercado adquire uma trajetória diferente. Os títulos estritamente corporativos apresentaram um crescimento vigoroso a partir de 2016. O estoque dessas operações (incluindo as debêntures de infraestrutura) mais que dobrou em uma década, passando de 2,3% do PIB em 2009 para 5,1% em 2020, como ilustra a figura acima.
O destaque foi o segmento das debêntures incentivadas. Inexistentes até 2012, o estoque desses títulos multiplicou-se por cinco entre 2016 e 2020. Com isso, respondeu nesse período por quase metade do aumento de estoque de debêntures corporativas.
A expansão do mercado de títulos corporativos foi impulsionada, principalmente, pela queda da taxa de juros. Do lado da oferta de títulos, as empresas se sentiram estimuladas a lançar debêntures como forma de tomar recursos agora mais baratos e, com isso, promover a redução do custo médio de seus passivos.
Do lado da demanda, houve o aumento da procura, particularmente de pessoas físicas, por ativos que proporcionassem maior rentabilidade, apesar de carregarem maior risco. Esse cenário propiciou a aceleração das debêntures de infraestrutura.
Como se pode ver no gráfico a seguir, a emissão de títulos corporativos de longo prazo (exceto debêntures emitidas pelas leasings) aumentou de R$ 60,3 bilhões em 2016 para R$ 177,4 bilhões em 2019, um crescimento de quase três vezes em apenas três anos. Nesse mesmo período, a oferta de debêntures incentivadas multiplicou por sete, passando de R$ 4,7 bilhões para R$ 33,8 bilhões (20% do total em 2019).
Nesse cenário, ocorreu pela primeira vez uma dissincronia entre as emissões de debêntures e os desembolsos do BNDES, que, entre 2016 e 2019, se reduziram de R$ 88,3 bilhões para R$ 55 bilhões ao ano.
A Crise da Covid-19 teve um impacto negativo sobre o segmento de renda fixa em 2020. O total de títulos corporativos emitidos diminuiu para R$ 111,1 bilhões, cerca de 2/3 do valor do ano anterior. Já o segmento de debêntures incentivadas mostrou mais resiliência, com uma emissão total de R$ 27,8 bilhões, mais de 80% do ano anterior.
Essa diferença entre a evolução das emissões de debêntures e as liberações do BNDES revela uma ruptura na relação de complementaridade que até então existia entre os dois segmentos do mercado de crédito corporativo de longo prazo. Pela primeira vez, observou-se um efeito substitutivo operando, ou seja, parte relevante da demanda que anteriormente era direcionada ao BNDES, passou a ser financiada pelo mercado de capitais.
A dimensão e a cronologia desse efeito substitutivo podem ser ilustradas pela figura acima. A maior parte da retração dos desembolsos do BNDES ocorreu antes de o mercado de debêntures começar a se expandir. Entre 2014 e 2016, as liberações do banco de desenvolvimento recuaram de R$ 188 bilhões para R$ 88 bilhões, uma queda de quase 60%. Trata-se de um período em que o estoque de debêntures corporativas também estava se contraindo.
Assim, nesse primeiro intervalo, a maior parte do encolhimento do banco de desenvolvimento se deveu a outros fatores que não a substituição de mercado. O mais importante deles foi de natureza macroeconômica. Desde 2015, a taxa de investimento se mantém ao redor de 15% contra mais de 20% no período 2010-2014. Ou seja, o principal fator de demanda por fundos do BNDES estava – e ainda está – muito deprimido.
A análise dos usos de recursos captados por meio de debêntures mostra que, entre 2011 e 2020, a maior parte dessas emissões se destinou ao refinanciamento de passivo, capital de giro e recompra de debêntures. Esses três itens responderam pela destinação de mais de 70% dos recursos captados, o que fortaleceria a tese da manutenção da complementaridade.
Entretanto, houve, nesse mesmo período, uma mudança de escala importante nas emissões incentivadas, que passaram de 3,1% do total em 2011 para 25% em 2020. É nessa modalidade de debêntures que se concentra o efeito substitutivo frente ao BNDES. Os montantes absolutos dessas emissões mantiveram-se, no entanto, relativamente estagnados até 2016. Desde então, multiplicaram-se por 8 e atingiram, em 2019 um volume equivalente a 60% dos desembolsos do BNDES.
O setor de distribuição de energia elétrica é um bom exemplo dessa mudança. Essas empresas tradicionalmente submetiam seus programas anuais de investimento ao BNDES para obter financiamentos. Entretanto, recentemente, adotaram um caminho diferente: passaram a solicitar autorização do governo federal para emitir debêntures de infraestrutura com base nos seus planos de investimentos. Trata-se de uma captação que vem se mostrando mais rápida, mais barata e de menor custo transacional.
Outro fenômeno substitutivo importante vem ocorrendo no crédito bancário, relacionado à compra de máquinas e equipamentos. Tradicionalmente, o BNDES supria essa demanda por meio de operações de repasses à rede bancária através da FINAME. Em geral, metade dos desembolsos do banco de desenvolvimento era voltado para essas operações indiretas, das quais 50% se destinavam à aquisição de ônibus e caminhões. Os prazos e os custos do banco de desenvolvimento eram muito competitivos frente às outras fontes à disposição dos bancos comerciais.
Todavia, entre 2013 e 2020, os desembolsos anuais do BNDES para aquisição de máquinas passaram de R$ 72,3 bilhões para R$ 15,3 bilhões, sendo que para equipamentos de transporte (caminhões e ônibus) essa queda foi de R$ 35,1 bilhões para R$ 4,7 bilhões, como mostra a figura a seguir.
Até 2017, essa redução acompanhou a forte contração na demanda de caminhões e ônibus. Mas, desde então, houve uma retomada nas vendas desses veículos, sem que tenha gerado impacto sobre a demanda por recursos do BNDES. A exemplo do que se identificou no mercado de debêntures, houve também um efeito substitutivo do crédito bancário com relação à FINAME.
Esta mudança pode ser ilustrada pelas concessões acumuladas em 12 meses dessas instituições para veículos (inclusive automóveis) para pessoas jurídicas, que triplicaram entre 2017 e 2020, passando de R$ 11,9 para R$ 34,4 bilhões.
A resposta passiva do BNDES a esse processo substitutivo esteve relacionada a dois fatores. O primeiro foi o posicionamento de sua nova taxa de juros – a TLP. Ela foi fixada em níveis pouco competitivos frente às taxas praticadas tanto nas operações de debêntures incentivadas quanto no crédito bancário destinado à aquisição de máquinas e equipamentos (Torres, Macahyba e Martins, 2020). O segundo fator foi a orientação do governo de evitar o desenvolvimento de novos produtos financeiros pela instituição que pudessem ampliar a concorrência do BNDES nessa área.
O gráfico a seguir mostra o desempenho consolidado do crédito de longo prazo na última década. O cenário se caracterizou por um aumento das emissões de debêntures corporativas, principalmente nos últimos anos, ao mesmo tempo em que se registrava uma forte contração do estoque de crédito do BNDES. Desde 2017, os títulos corporativos se tornaram a principal fonte dos recursos desse mercado e, a partir de 2019, passaram a responder pela maior parte do estoque dessas operações.
A mudança na estrutura das taxas de juros – elevação no caso do BNDES e redução no caso das debêntures – foi o principal determinante dessa transformação. As debêntures incentivadas vêm crescendo rapidamente e corresponderam à metade da das liberações do BNDES entre 2019 e 2020.
A crise da Covid-19 e seus impactos
Os mercados bancário e de capitais se depararam com uma conjuntura inesperada no início de 2020. A pandemia e as medidas sanitárias tomadas para lidar com a propagação da Covid-19 impactaram abrupta e negativamente as economias ao redor do mundo. Esse evento representou um choque de grandes proporções, provocando uma forte recessão, que exigiu medidas compensatórias por parte dos governos.
Embora os impactos sobre a renda e o emprego tenham tido maior destaque, a crise da Covid-19 teve uma dimensão financeira relevante. A pandemia desencadeou três processos de fragilização, distintos e interdependentes, a saber: uma súbita e profunda contração dos mercados que disponibilizam liquidez; desequilíbrios fortes e imprevistos no fluxo de caixa dos agentes econômicos; e uma situação de insolvência empresarial.
O primeiro processo ficou marcado, entre os meses de março e abril, pela maciça venda de ativos líquidos e pela queda de preços, que exigiu uma célere atuação dos bancos centrais como compradores de títulos e supridores de moeda (dealers) de última instância. As autoridades monetárias, em todo mundo, adquiriram em poucos dias um elevado volume de títulos, encharcando os mercados financeiros com dinheiro.
O segundo processo colocou em xeque as entradas de caixa de um grande número de famílias e empresas que, para sobreviver, precisaram do suporte de linhas de crédito especiais, auxílios emergenciais, dentre outras medidas. O terceiro processo, inicialmente concentrado em alguns setores (e.g. aviação comercial), ainda está em curso e somente após um período mais longo de tempo será possível avaliar sua extensão.
No Brasil, o choque pode ser resumido em dois movimentos: um externo e outro interno. Na frente externa, houve, no primeiro momento, um aumento relevante na saída de capitais, acompanhado por forte desvalorização da moeda brasileira. No âmbito interno, houve uma corrida na direção de ativos mais seguros. A riqueza saiu de títulos de crédito privado e da parte longa da dívida pública para os títulos públicos com vencimentos mais curtos ou para operações compromissadas.
O resultado de ambos os movimentos foi uma grande depreciação dos ativos financeiros e a diminuição da liquidez de mercado, que se concentraram no mês de março. O Banco Central do Brasil atuou tempestivamente, liberando liquidez às instituições financeiras e reduzindo a taxa básica de juros. Com isso, conseguiu restabelecer o funcionamento desses mercados.
O comportamento do crédito em 2020 pode ser observado na figura abaixo, que ilustra as concessões mensais dessazonalizadas para pessoas físicas e jurídicas. No caso das famílias, as concessões caíram abruptamente num primeiro momento, refletindo tanto fatores de demanda quanto de oferta. No caso das empresas, houve também uma retração no volume de operações, com um comportamento atípico em março, marcado por operações de renegociação de dívidas de grandes empresas. No terceiro trimestre de 2020, as séries já indicavam a retomada de níveis de concessão compatíveis com a trajetória anterior à pandemia.
A figura a seguir mostra que o crescimento do saldo dos empréstimos bancários foi inicialmente explicado pelas operações com grandes empresas. O mesmo só aconteceu com as micro, pequenas e médias a partir de julho, graças à entrada em operação dos fundos garantidores do governo. Essa delonga atrasou o alinhamento dos balanços das firmas de menor porte, mas, a partir do momento em que esses mecanismos se tornaram efetivos, o crédito passou a constituir uma fonte relevante de recursos para as empresas menores. Os valores liberados pelos programas em 2020 alcançaram R$ 147,3 bilhões.
O sucesso das linhas estruturadas pelo governo foi variado. Um caso de fracasso foi o Programa Emergencial de Suporte a Empregos, o primeiro a ser implantado. Ele vinculava a liberação dos empréstimos para as empresas à manutenção dos empregos e ao pagamento da folha salarial. Até o final de outubro de 2020, quando se encerrou, havia desembolsado somente R$ 7,3 bilhões dos R$ 40 bilhões previstos, revelando um desinteresse dos bancos e das empresas.
Houve, em contraponto, dois casos bem sucedidos. O governo capitalizou dois fundos garantidores já existentes: o Fundo Garantidor de Operações (FGO) e o Fundo Garantidor de Investimentos (FGI), que deram suporte, respectivamente, ao Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (Pronampe) e ao Programa Emergencial de Acesso ao Crédito (Peac).
O Pronampe ofereceu condições especiais de taxa e prazos dos empréstimos a empresas com faturamento de até R$ 4,8 milhões anuais. Esses recursos não foram vinculados a nenhum fim específico. O FGO foi estruturado de modo a garantir até 100% de cada operação e até 85% do total da carteira de cada agente financeiro, que poderiam ser bancos públicos e privados.
O Peac se destinou a empresas de maior porte – faturamento entre R$ 360 mil e R$ 300 milhões – e os níveis de garantia foram menores: até 85% de cada operação e até 30% do total da carteira de cada agente financeiro. Adicionalmente, foram estruturados o Programa de Capital de Giro para Preservação de Empresas (CGPE) e o Peac-Maquininhas.
Nesse cenário, o desempenho do mercado de capitais foi condicionado pelo menor nível da taxa Selic em toda sua história, consolidando a trajetória de queda vivenciada nos últimos anos.
Entretanto, em dois momentos, as taxas de juros mais longas não acompanharam esse comportamento, como mostra o próximo gráfico. No início da crise, essa divergência refletiu a liquidação de ativos mais longos e o ajuste dos portfólios na direção de ativos mais seguros. Entretanto, desde agosto, esse fenômeno tomou características distintas. Foi resultado da pressão do mercado sob a alegação de um risco fiscal mais elevado.
A curva de rendimentos, que retrata as taxas de juros para diferentes maturidades e classes de risco, dos ativos privados foi contaminada pelo aumento das taxas longas de juros, resultando na elevação do custo de emissão de títulos de dívida por parte das empresas. Esse fato teve um impacto negativo no lançamento de debêntures em 2020. Na comparação entre as médias trimestrais, o volume emitido caiu de R$ 46,2 bilhões em 2019 para R$ 24,9 bilhões em 2020 – patamar similar ao de 2017.
O mais preocupante, no entanto, foi o fato de que boa parte das emissões foi adquirida pelos próprios estruturadores (intermediários e demais participantes ligados à oferta), o que chama atenção para as dificuldades de colocação desses papeis em momentos de turbulência.
Uma história diferente foi vivenciada na bolsa de valores . Em 2019, esse mercado havia voltado a registrar maior dinamismo, após anos de desempenho tímido, especialmente quando comparado ao mercado de dívida corporativa. No primeiro trimestre de 2020, o volume de emissões havia sido relevante, mas a crise associada à pandemia fez secar as emissões no segundo trimestre. Mesmo assim, ao final do ano, o volume superou o de 2019.
Esse movimento reflete a melhora da liquidez do mercado acionário após o choque inicial, com uma forte recuperação do Ibovespa e um reposicionamento dos portfólios dos investidores na busca por rendimentos num contexto de juros baixos.
A maior parte das emissões diz respeito a empresas que já tinham capital aberto em bolsa (follow-ons), mesmo assim é notável que 27 novas empresas tenham aberto capital, captando cerca de R$ 45 bilhões, o maior número desde 2007. Assim, a retração do mercado de debêntures provocada pela crise foi em parte compensada por emissões de ações, inclusive de novas empresas.
A crise da Covid-19 é um exemplo de que os mercados de longo prazo apresentam um comportamento procíclico. Além disso, mostrou que, em determinadas circunstâncias, as taxas de juros de longo prazo podem não acompanhar as de curto, criando uma segmentação que afeta diretamente o custo do crédito.
Esse modelo está sujeito a instabilidades e pode, inclusive, implicar em fragilidades para as empresas e comprometer a sustentação de seus investimentos. Outra questão trazida à tona pela crise tem a ver com o acesso a recursos por parte de empresas de menor porte. É difícil para as MPMEs emitirem debêntures e ações.
Essas evidências recomendam que seja feito ajustamento nos instrumentos de direcionamento de crédito. É importante fortalecer o papel do governo como agente estabilizador, mobilizando as diferentes instituições ao seu alcance. O poder público atuou em 2020 por meio de estímulos do Banco Central, que envolveram a flexibilização da regulação de provisionamento e classificação de risco, a adoção de requerimentos de capital mais brandos e a promoção de facilidades para renegociação de dívidas.
Além disso, estruturou fundos garantidores para empresas de menor porte, por meio da ação conjunta do Tesouro Nacional com bancos públicos (Banco do Brasil e BNDES). Essas garantias reduziram as incertezas relativas à capacidade de pagamento dos contratantes. No caso de inadimplemento, a garantia pública é acessada e o credor não é integralmente afetado.
Adicionalmente, os requerimentos de capital para os bancos são menores para operações com esse tipo de mitigador de risco, incentivando também as instituições financeiras a carregar essas operações.
O sucesso dessa experiência parece indicar que tais mecanismos adquiriram maior credibilidade e operacionalidade no âmbito do sistema financeiro brasileiro. A prática internacional mostra que o uso de garantias é um instrumento mais eficiente de direcionamento de crédito, sempre que sua operação for feita de forma adequada e o crédito público for visto como de boa qualidade pelo mercado (Torres, 2007).
O sucesso dos mecanismos de garantias para direcionar o crédito às MPMEs durante a crise abriu um debate acerca desses instrumentos. Uma vertente propõe a manutenção desses programas, mesmo após a normalização no funcionamento do mercado crédito. Outra sugere a extensão de escopo do Pronampe e do PEAC de forma a tornar também elegíveis as operações com maior maturidade e voltadas ao financiamento dos investimentos.
A decisão de manter os mecanismos atuais ou mesmo expandi-los precisa considerar aos menos duas questões. A primeira delas é o percentual das operações que deve ser garantido com aporte de recursos públicos. Do ponto de vista financeiro, uma das principais vantagens dos mecanismos de garantias é a de que eles permitem uma alavancagem de recursos privados na originação das operações, que será tão maior quanto menor for o percentual coberto pelos fundos de governo.
Ademais, quanto maior for a parcela de recursos próprios aportada pelos bancos, menores devem ser os riscos de seleção adversa nos processos de originação dessas operações. Programas de garantias que contam com percentuais muito elevados de cobertura com recursos públicos em pouco se diferenciam de operações de crédito diretas subsidiadas. São, portanto, menos eficazes do ponto de fiscal.
Outra questão a ser enfrentada nesse debate é a possibilidade do uso dos mecanismos de garantias para financiar investimentos green field. A utilização de garantias para projetos com riscos de execução, no entanto, não tem precedentes no Brasil. Sua criação exigirá, portanto, uma avaliação rigorosa de viabilidade pelo Governo.
Em conversas realizadas com autoridades e participantes do mercado de capitais sobre essa questão, percebeu-se um certo consenso em torno da ideia de que o BNDES continua tendo um papel relevante em projetos com risco de completion, cabendo ao mercado de capitais suprir as empresas de recursos quando o empreendimento entrar em operação. Essa proposta não reflete a experiência de financiamento de projetos pelo banco de desenvolvimento e precisaria também ser aprofundada antes que qualquer medida nessa direção seja tomada.
Limites e fragilidades do crédito corporativo de longo prazo
A “mudança na guarda” do crédito de longo prazo no Brasil trazem questões relevantes quanto aos limites e às fragilidades de um modelo de financiamento em que o mercado de capitais é protagonista. O caminho em direção a um padrão de financiamento privado recoloca, em outros termos, as perguntas que alimentaram, há uma década, o debate sobre o financiamento corporativo de longo prazo.
Esse modelo é sustentável? Uma eventual retomada dos investimentos poderia enfrentar dificuldades para obter fundos no ambiente doméstico? Quais as opções de mecanismos de direcionamento de crédito que melhor se adequariam à nova realidade de mercado?
A experiência internacional mostra que o desenvolvimento dos mercados de crédito de longo prazo levou as fontes privadas a tomarem uma posição mais proeminente no financiamento de projetos de investimento. Esse processo induziu o setor público a mudar a combinação de instrumentos de direcionamento de crédito em favor de incentivos que tivessem uma forma de atuação complementar. Houve uma ênfase no uso de garantias e subsídios e um maior foco no uso dos recursos públicos.
No caso do Brasil, o desenvolvimento do mercado de longo prazo é um processo que depende muito da manutenção de um cenário macroeconômico favorável – baixas taxas de juros e estabilidade financeira. Ademais, o porte do segmento de debêntures de infraestrutura ainda é pequeno para atender integralmente uma demanda que venha a se elevar intensa e rapidamente, como acontece nos ciclos de investimento.
Esse problema de escala torna-se mais grave em função do forte encolhimento dos recursos públicos destinados aos investimentos em capital fixo sob gestão do BNDES. A aceleração dos pagamentos do banco de desenvolvimento ao Tesouro reduziu substancialmente a liquidez própria da instituição, o que diminui a disponibilidade de fundos direcionados para investimentos no futuro.
As limitações de escala das debêntures incentivadas e do BNDES poderiam, em cenário de retomada de investimento, ser superadas por meio da mobilização de outras fontes de financiamento e de liquidez.
Uma das opções seria uma maior captação de recursos externos, o que, no entanto, traria o agravante de aumentar a exposição das empresas a um passivo de longo prazo com cláusula cambial. A experiência brasileira mostra que o aumento do endividamento em moeda estrangeira e da vulnerabilidade externa devem ser encarados com cuidado.
Outra saída poderia ser uma nova capitalização do BNDES com recursos públicos, com implicações sobre o resultado das contas públicas, mas essa opção parece se chocar com a política de redução do endividamento público.
Alternativamente, se poderia ainda aumentar a emissão de letras financeiras pelo banco de desenvolvimento ou de debêntures, por meio da sua subsidiária, a BNDESPar. Esta possibilidade permitiria ao banco fornecer uma solução de continuidade no direcionamento de crédito, mas esses recursos estariam sempre sujeitos às condições correntes do mercado financeiro, o que poderia inibir a demanda de potenciais tomadores.
Outro fator de fragilidade diz respeito à proposta em discussão no Poder Legislativo para ampliar o público-alvo do benefício fiscal das pessoas físicas detentoras dos títulos para incluir também as empresas emissoras. Essa alteração, na prática, pode vir a comprometer o desenvolvimento do mercado de títulos corporativos.
Por fim, em um cenário de expansão dos investimentos no qual as taxas de juros permaneçam em patamares baixos, o mercado de capitais doméstico deverá assumir uma posição de maior protagonismo. Essa liderança deveria ser apoiada por um conjunto amplo e atualizado de mecanismos de direcionamento de crédito, que incluam não só o BNDES, mas também subsídios e garantias.
Essa modernização deveria também contemplar funções estabilizadoras que minimizassem o comportamento cíclico de financiadores privados. Esse papel poderia ser cumprido pelo Banco Central do Brasil – com auxílio do próprio BNDES – na função de market-maker ou dealer de última instância, que, segundo Bank of International Settlements (BIS), outros bancos centrais, inclusive de economias emergentes (Colômbia, Chile, México, Turquia, África do Sul e Índia, entre outros), já vêm assumindo ao redor do mundo.
Recomendações para o Aprimoramento do Mercado de Crédito Corporativo de Longo Prazo
A emissão de títulos privados tomou, pela primeira vez, uma posição proeminente em um mercado que tradicionalmente foi suprido por recursos públicos, intermediados pelo BNDES. Esse cenário é muito diferente do existente no início dos anos 2010. O desafio à época era completar o mercado de crédito brasileiro com um segmento privado capaz de suprir recursos de longo prazo, por meio do mercado de capitais, o chamado “Elo Perdido”.
As medidas então sugeridas tinham como foco principal o desenvolvimento de um mercado de títulos corporativos incentivados de longo prazo. O intuito era reduzir o “atraso relativo” observado nessa parcela do mercado de crédito brasileiro frente a outros segmentos domésticos e à experiência de outros países desenvolvidos e periféricos.
No quadro atual, as preocupações são diferentes. O foco passa a ser garantir a expansão do crédito corporativo de longo e promover sua maior funcionalidade com relação ao desenvolvimento, em termos de custo de intermediação, acesso de investidores e emissores e atendimento de segmentos da economia ainda marginalizados desse processo.
Mudanças nas regras básicas que atualmente regem esse mercado podem eventualmente ter impactos deletérios nesse processo. É o caso, por exemplo, do Projeto de Lei n. 2.464/2020 que tramita no Congresso Nacional, que propõe ampliar o benefício fiscal do imposto de renda das debêntures incentivadas da pessoa física para incluir alternativamente a empresa emissora. Essa alteração não trará benefícios para os investimentos no formato de Project Finance, uma vez que, por definição, esses empreendimentos não geram lucro nos primeiros anos.
Do mesmo modo, fará com que as empresas já constituídas que têm programas permanentes de investimento – por exemplo do setor elétrico – deixem de ter interesse na emissão de debêntures incentivadas para pessoas físicas, reduzindo a concorrência e a liquidez do mercado.
Ao mesmo tempo, não permitirá atrair novos investidores, como os fundos de pensão, conforme alegado pelos proponentes dessa medida. Entretanto, poderá provocar uma forte redução das emissões com benefício para as pessoas físicas e, com isso, colocará em tela de juízo o segmento mais dinâmico e inovador desse mercado.
A despeito da incerteza com relação ao segmento de debêntures incentivadas, antevemos que o mercado de crédito corporativo tem condições de manter uma trajetória expansiva. O ritmo desse crescimento deverá, no entanto, ser menor do que o alcançado no passado recente, que foi influenciado conjunturalmente pela forte redução nas taxas de juros. O processo de ajustamento de passivo das empresas deve perder força ao longo do tempo e pode até ser comprometido por uma eventual elevação das taxas de juros.
Nesse cenário, sugerimos as seguintes medidas voltadas para o fortalecimento das inovações que deram certo e a correção de entraves:
a) Rever os regulamentos de ofertas públicas da Comissão de Valores Mobiliários de modo a estimular o lançamento a um público mais amplo de títulos corporativos, particularmente daqueles associados às debêntures de infraestrutura. Hoje, as restrições regulatórias impõem custos discriminatórios ao uso da modalidade de emissões pulverizadas (ICVM 400), que praticamente caiu em desuso;
b) Criar a modalidade de emissor qualificado, permitindo que empresas com experiência comprovada de seguir as normas de oferta da CVM, sejam autorizadas a emitir debêntures para o público mais amplo sem precisarem se submeter a uma autorização prévia da Comissão;
c) Fortalecer os mecanismos de garantia de crédito para MPMEs, criando condições para seu funcionamento permanente, a exemplo do Peac, administrado pelo BNDES;
d) Avaliar para a parcela fixa da TLP a aplicação de um redutor permanente de 50% no seu cálculo, a exemplo do que a legislação já prevê para os fundos constitucionais para as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste;
e) Conceder às captações do BNDES a isenção de imposto de renda.;
f) Autorizar o Banco Central a operar como dealer de última instância no mercado de títulos corporativos em momentos de estresse de mercado; e
g) Criar mecanismos públicos de garantia e incentivos para fundos que promovam o acesso de MPMEs ao mercado de capital.