Carta IEDI
Indústria 4.0 e a Guerra Tecnológica China-EUA
Em 2019, EUA e China protagonizaram uma escalada de tensões diplomáticas e comerciais sob o pretexto do expressivo desequilíbrio entre seus saldos de comércio exterior. Isso afetou negativamente tanto a indústria mundial como o PIB global naquele ano. Em 2020, em função da Covid-19, a relação entre os países continuou distendida.
A Carta IEDI de hoje trata deste tema a partir de uma perspectiva nem sempre devidamente enfatizada. A partir do estudo realizado pelos economias Antônio Carlos Diegues (Unicamp) e José Eduardo Roselino (UFSCar), aborda o âmbito tecnológico da disputa sino-americana por uma posição de protagonismo na indústria 4.0 e na digitalização da economia mundial.
Neste trabalho, intitulado “Política Industrial, tecno-nacionalismo e indústria 4.0: a guerra tecnológica entre China e EUA” , os autores analisam a estratégia de desenvolvimento tecnológico chinesa em direção à indústria 4.0, procurando compreender o papel da política industrial na estratégia de desenvolvimento socioeconômico da China.
Destacam que um dos principais motivos do sucesso chinês nas últimas décadas é o elevado grau de pragmatismo e a capacidade de permanente reconfiguração tanto na dimensão política quanto institucional desta estratégia.
Enfatizam ainda que a política industrial chinesa não deve ser compreendida de maneira homogênea, uma vez que coexistem diferentes objetivos, segundo distintas realidades da estrutura produtiva local. Há ações voltadas a segmentos de baixa intensidade tecnológica e há políticas direcionadas a setores próximos da fronteira tecnológica internacional, como os de inteligência artificial, 5G e serviços inteligentes.
Lembram, assim, que uma estratégia de sucesso para alavancar o desenvolvimento de um país emergente deve estar preparada para lidar com a heterogeneidade de sua estrutura produtiva que lhe é típica. Ou seja, precisa retirar alguns do atraso, impulsionar outros para a fronteira tecnológica e melhorar as condições de crescimento para todos. Para dar conta dessa heterogeneidade, o trabalho aborda as estratégias das empresas chinesas a partir de três segmentos.
O primeiro deles é o das grandes estatais tradicionais, que atuam principalmente no complexo petroquímico, em indústrias de base e metal mecânica, obtendo a maior parte de seu faturamento no mercado chinês. Suas estratégias se concentram na busca pela modernização e atualização produtiva e tecnológica, que é coordenada indiretamente pelo governo chinês, por meio da SASAC, a holding das empresas estatais.
O segundo segmento é o de grandes empresas privadas voltadas majoritariamente ao mercado local. Para estas, o principal objetivo da política industrial e tecnológica chinesa consiste em acelerar o “emparelhamento” de suas competências com as de seus concorrentes internacionais, principalmente, por meio da melhora de capacidade de P&D, design e criação de marcas.
Já o terceiro segmento compreende as empresas de base tecnológica que se encontram próximas da fronteira tecnológica internacional e são centrais para a estratégia chinesa de avanço na economia digital e na indústria 4.0. Entre os principais expoentes, estão as empresas de telecomunicações Huawei, ZTE, Vivo, Oppo, Xiaomi, empresas de semicondutores, como SMIC e Hisilicon, além de inúmeras outras empresas de tecnologia de informação e com forte presença em inteligência artificial, como Baidu, Alibaba, Tencent, Iflatek, Megvii.
Para estas últimas, a principal estratégia da China consiste em fomentar o aprendizado via consolidação do sistema nacional de inovação. São a ponta de lança das pretensões chinesas de adquirir protagonismo na economia do futuro e, por isso, suas atividades receberam especial atenção em diversos planos recentes, a exemplo do Made in China 2025, a Internet Plus Strategy e o Next Generation Artificial Intelligence Development Plan. Estes planos foram tema das Cartas IEDI n. 827 de 26/11/18 e n. 961 de 29/11/19, entre outras.
Existem, porém, obstáculos importantes a serem superados pela estratégia de desenvolvimento da China em direção à indústria 4.0 que não devem ser subestimados. É o que destacam Diegues e Roselino em seu estudo.
Segundo os autores, é no segmento de serviços inteligentes que a economia chinesa parece ter maior proeminência relativa nas tecnologias associadas à indústria 4.0. Via integração entre Inteligência Artificial e Big Data, as empresas chinesas apresentam vantagens em relação a suas concorrentes internacionais, inclusive americanas.
Evidenciam essas vantagens a construção de cidades inteligentes em diversas metrópoles asiáticas a partir do Alibaba City Brain e o estabelecimento das TaoBao Villages como forma de integração da estrutura produtiva rural à plataforma global de comercialização da empresa. É também o caso da quase onipresença da plataforma WeChat em todos os aspectos cotidianos da vida econômica e social dos chineses.
É na infraestrutura tecnológica habilitadora das fábricas e serviços inteligentes onde reside a maior fragilidade da China e onde se concentra o maior potencial de conflito com os EUA, segundo os autores. O ponto mais sensível são as áreas da nova geração de semicondutores. A desvantagem chinesa decorre da grande dependência tecnológica em semicondutores, mas não apenas, e se configura como um importante entrave ao pleno desenvolvimento da indústria 4.0 na China.
Não à toa, o setor de semicondutores recebeu especial atenção do Plano Biden, que tem o objetivo de modernizar e ampliar a competitividade da indústria dos EUA, conforme discutido na Carta IEDI n. 1083, de 28/05/2021. Além desta “reação positiva”, os EUA e alguns de seus aliados também têm procurado restringir o acesso de empresas chinesas, como HUAWEI, ZTE, SMIC, às tecnologias de última geração em semicondutores, potencializando esta fragilidade da estratégia de desenvolvimento da China.
Este movimento discriminatório, segundo os autores, ocorre tanto por meio da imposição de restrição de vendas de chips já manufaturados pela TSMC a empresas chinesas quanto pelo bloqueio à aquisição de máquinas de última geração que permitiriam aos chineses serem capazes de desenvolverem sua própria capacidade produtiva em semicondutores. Este é o caso, por exemplo, da pressão americana para restrição da vendas dos equipamentos da holandesa ASML à SMIC, a maior fabricante de chips da China.
Com base neste cenário, Diegues e Roselino concluem que, apesar dos notórios avanços chineses em inúmeros segmentos da indústria 4.0, as restrições recentemente impostas pelas potências ocidentais colocam em evidência a magnitude dos desafios a serem superados e a forte dependência tecnológica que ainda existe em relação aos EUA.
Esta dependência, principalmente em semicondutores, somada às restrições crescentes à penetração de empresas chinesas em alguns mercados estratégicos, como é o caso da disputa em torno dos padrões de 5G, impõe limites às aspirações chinesas e alimentam a continuidade dos conflitos sino-americanos na construção de um “mundo 4.0”.
Embora contornar todas estas limitações no médio prazo não seja trivial, deve-se levar em consideração o fato de que as políticas industriais chinesas têm apresentado, nas últimas décadas, um inquestionável sucesso ao estimular o avanço tecnológico doméstico. Por esta razão, o quadro identificado pelos autores do estudo deixa claro que as tensões entre EUA e China estão longes de serem superadas, ainda que venham assumir características distintas daquelas dos tempos de Donald Trump na presidência americana.
Indústria 4.0 e Política Industrial na China
Esta Carta IEDI aborda o estudo “Política Industrial, tecno-nacionalismo e indústria 4.0: a guerra tecnológica entre China e EUA”, de autoria dos economistas Antônio Carlos Diegues, professor do IE/Unicamp, e José Eduardo Roselino, professor da UFSCAR, publicado neste início de 2021.
Ao se analisar a estratégia de desenvolvimento industrial chinês, um dos principais motivos que podem ser apontados para seu sucesso é o elevado grau de pragmatismo. Por meio de uma constante experimentação e redefinição de rumos, esta estratégia apresenta uma permanente capacidade de reconfiguração. A reconfiguração ocorre tanto na dimensão política quanto institucional.
Na dimensão política os objetivos e as metas são ajustados a partir dos desafios colocados à estrutura produtiva doméstica. Na dimensão institucional, são fomentadas reformas para adequar os instrumentos e viabilizar as modificações nas decisões políticas. Dentre eles podem ser citados os instrumentos de financiamento, de gerenciamento, de mensuração e avaliação, entre outros.
Outro ponto destacado pelos autores é a constatação de que essas transformações ocorreriam como uma espécie de coevolução entre as mudanças nos estágios de desenvolvimento chinês nos últimos 40 anos e as diretrizes nacionais de política industrial. Assim, se observaria uma transformação nessas políticas à medida em que os desafios ao desenvolvimento chinês migrassem da necessidade de construção de uma estrutura produtiva capaz de ser a “fábrica do mundo” nos anos 1980 para os atuais desafios de se construir uma economia orientada à inovação.
Além desta coevolução, outro ponto destacado é a coexistência entre diferentes políticas adequadas à distintas realidades da estrutura produtiva local. Como a economia chinesa é extremamente heterogênea em questões produtivas, tecnológicas, no que se refere à distribuição regional e social da renda, essa coexistência garantiria incentivos adequados às mais distintas realidades da indústria local.
Por um lado, é necessário para determinadas regiões prover incentivos – fiscais, trabalhistas etc. – que garantam a manutenção da produção manufatureira baseada em baixa qualidade e baixos custos. Por outro lado, regiões e setores mais desenvolvidos exigem estratégias de política industrial muito mais complexas, que incentivem os sistemas locais de inovação e aprendizado.
A coexistência desses diversos movimentos decorre do fato de se observar na economia chinesa ao mesmo tempo o prevalecimento de regiões que se encontram mais próximas da fronteira tecnológica internacional – como a região de Shenzhen –, enquanto outras ainda apresentam baixos índices de modernização produtiva.
A título de ilustração, os autores observam que, em 2018, os setores têxtil e de vestuário foram responsáveis por um superávit comercial de US$ 365 bilhões, enquanto que os setores de eletrônica e equipamentos elétricos tiveram um superávit de US$ 383 bilhões. Assim, a despeito do rápido avanço tecnológico chinês ser quase um fato notório, a dualidade ainda é uma marca característica da sua economia.
Tal dualidade faz com que a estratégia chinesa não possa ser compreendida como algo próximo a uma réplica das estratégias de sucesso utilizadas por países como Japão e Coréia do Sul. Isso porque o gigantismo da economia chinesa, seu elevado contingente populacional e sua elevada heterogeneidade interna não permitem que o país sustente sua estratégia de desenvolvimento apenas a partir da integração em elos de alta tecnologia nas cadeias globais de valor.
Ou seja, ao mesmo tempo em que esta estratégia de alta tecnologia se aprofunda, a sustentabilidade do crescimento chinês não pode prescindir dos segmentos que atuam em atividades de baixa intensidade tecnológica e baixo custo. Mesmo com o grande avanço tecnológico chinês nas últimas décadas, em 2017 os setores intensivos em trabalho e em recursos naturais ainda representavam 38% do valor adicionado da indústria local.
A existência dessas diferentes vertentes de política industrial só é possível devido à elevada capacidade de coordenação e de planejamento econômico de longo prazo. Coordenados pela National Development and Reform Comission e com papel crescente da holding de empresas estatais – a SASAC, State-Owned Assets Supervision and Administration Comission – os esforços de política industrial e tecnológica têm ganhado proeminência na última década. Merecem destaque neste contexto iniciativas que remontam ao Medium and Long Term Plan for the Development of Science and Technology e os recentes Made in China 2025 e Internet Plus Strategy.
Tais planos fazem parte da estratégia de longo prazo convencionalmente interpretada como o China Dream, que consiste na busca pela consolidação de uma economia moderadamente próspera em 2021 e a cristalização de uma superportência tecnológica em 2049. Por meio desta estratégia, segundo Diegues e Roselino, a China utilizaria o avanço industrial como meio de contornar um duplo enfrentamento, que coloca desafios a sua estratégia de desenvolvimento.
O primeiro desses enfretamentos decorre dos esforços das principais potências internacionais para empurrarem a fronteira tecnológica em direção à indústria 4.0. Esses esforços teriam como objetivo de reafirmar a liderança tecnológica e produtiva de países como EUA, Alemanha e Japão. Ao mesmo tempo, ao redefinirem os determinantes da competitividade em inúmeros setores, a revolução em direção à indústria 4.0 seria utilizada como uma tentativa de reduzir a competitividade relativa e barrar o avanço das empresas chinesas no mercado internacional.
O segundo enfrentamento decorreria do movimento de deslocamento de unidades produtivas da China em direção a outros países do leste e sudeste asiático, em busca de menores custos. Esse movimento poderia reduzir a competitividade relativa chinesa em setores de média e baixa intensidade tecnológica. Conforme dito anteriormente, tais setores ainda são importantes fontes de geração de emprego, renda e exportações para a China.
Assim, a busca permanente pela modernização tecnológica de seu parque produtivo seria um instrumento para se aumentar a produtividade e a competitividade doméstica e minimizar essa ameaça de deslocamento manufatureiro em direção a outros países.
Como forma de se posicionar estrategicamente quanto a estes enfrentamentos – que se acirraram pós crise de 2008 – o estudo de Diegues e Roselino sugere a necessidade de se entender a política industrial chinesa a partir de três grandes eixos de atuação. Cada um desses eixos seria pensado a partir de uma estratégia top-down, com grande coordenação central e seriam instrumentos do avanço tecno-nacionalista chinês.
Segundo os autores, essa segmentação é necessária para se entender a política industrial e tecnológica chinesa dada a grande heterogeneidade de sua estrutura produtiva, tecnológica, regional e social doméstica. Uma maneira ilustrativa de compreender essa heterogeneidade seria examiná-la a partir dos diferentes perfis de empresas.
As empresas estatais tradicionais (state-owned enterprises - SOEs) atuam principalmente em setores como complexo petroquímico, indústrias de base e metal mecânica e concentram a maior parte de seu faturamento no mercado chinês. Dentre as mais expoentes destas empresas podem ser citadas as gigantes petroleiras (Sinopec, China National Petroleum, CNOOC), de geração de energia (State Grid, Three Gorges) do setor químico (Chemical China e Sinochem), dos setores de equipamentos de transporte e engenharia (China State Construction Engineering), de alimentos e bebidas (COFCO) entre inúmeras outras.
De maneira geral a estratégia tecnológica destas empresas ainda se concentra na busca pela modernização e atualização produtiva e tecnológica. Esta busca é coordenada indiretamente pela SASAC, a holding das empresas estatais, principalmente via sinalização e direcionamento das estratégias de investimento das empresas em áreas prioritárias. Dentre os principais instrumentos para isso, se destacam as tradicionais políticas de reserva de mercado, conteúdo local e utilização de licenças para atuação no mercado doméstico.
A partir de uma sólida presença no mercado chinês, estas empresas de porte muitas vezes gigantesco se beneficiariam de enormes economias de escala e escopo, e se internacionalizariam como forma de buscar acesso a recursos e outros mercados para ampliar seu potencial de acumulação. Conforme lembram os autores, segundo o Ranking 500 Fortune, em 2019, entre as 100 maiores empresas mundiais em receita, havia 24 chinesas. Já entre as 500 maiores, esse número é de 124, face a 121 dos EUA.
O segundo perfil de empresas é o das grandes voltadas majoritariamente ao mercado local. Para essas empresas o principal objetivo da política industrial e tecnológica consiste em acelerar seu “emparelhamento” com as concorrentes internacionais, principalmente via melhora da capacidade de P&D, design e criação de marcas. Algumas destas empresas atuam em segmentos de eletrodomésticos – como a Haier e a Midea –, automobilística – estatais ou privadas, como SAIC, DongFeng, BAIC e BYD -, fabricantes de máquinas e equipamentos – também estatais ou privadas, como XCMG, LiuGong e Sany – do setor aeronáutico – COMAC, entre outras.
Como estratégia para viabilizar o avanço de tais empresas para segmentos de maior valor agregado –no mercado tanto nacional quanto internacional –, o primeiro vetor é o incentivo às F&A entre elas, de modo a aumentarem seus portes. A ideia é fomentar tais conglomerações de modo a viabilizar que as empresas se beneficiem do enorme mercado interno para acumularem e viabilizarem contínuos investimentos em novos segmentos, com elevado potencial de crescimento futuro e alto dinamismo tecnológico.
O segundo vetor é disponibilizar uma vultosa quantidade de crédito em condições vantajosas que potencialize os novos investimentos. Esses créditos são disponibilizados pelos Big Four bancos chineses (ICBC, CCB, ABC e Bank of China), pelo China Development Bank, pelo Export-Import Bank of China e por bancos regionais. Como ilustração, vale lembrar que os “Big Four” ocuparam a 3ª e a 5ª posição entre os maiores bancos do mundo em termos de ativos em 2019, e a soma de seus ativos foi 57% maior que a soma dos 4 maiores bancos estadunidenses neste mesmo ano.
Outro ponto de incentivo a estas empresas que merece ser destacado é a utilização desta disponibilidade de crédito virtualmente ilimitada e para a aquisição de marcas consolidadas no mercado internacional. É nessa estratégia que deve ser entendida a compra da Volvo pela Geely, da MG Rover pela SAIC Motors, da Pirelli e da Syngenta pela Chemical China, entre outras.
O último perfil da tipologia apresentada no quadro acima é o de empresas de base tecnológica. Em geral, estas se constituem por empresas que se situam próximas à fronteira tecnológica internacional e são centrais para a estratégia chinesa de avanço na economia digital e na indústria 4.0. Dentre as principais expoentes estão as de telecomunicações Huawei, ZTE, Vivo, Oppo, Xiaomi, aquelas de semicondutores – SMIC, Hisilicon –, além de inúmeras outras de tecnologia de informação e com forte presença em inteligência artificial, como Baidu, Alibaba, Tencent, Iflatek, Megvii.
Como diretriz principal de incentivo, nota-se a ampla disponibilidade de financiamento às atividades de P&D por meio do fortalecimento do sistema nacional de inovação. Além disso, os esforços do governo chinês para fomentar a disseminação internacional de padrões tecnológicos dominados pelas empresas locais também são importantes incentivos para a consolidação destas frente às concorrentes internacionais. O caso da guerra tecnológica em torno dos padrões de 5G é o maior expoente desta estratégia.
A partir de um conjunto vasto de incentivos sistêmicos disponibilizados pelo Estado, tais empresas têm pautado sua estratégia de internacionalização como instrumento para aumentar seu potencial de aprendizado inovativo. Assim, esse movimento congrega ao mesmo tempo esforços para a busca por novos mercados, aquisições de capacitações tecnológicas e inovativas, bem como de tentativa de internacionalização de padrões tecnológicos nacionais. Deste modo, tende a se direcionar a países onde os sistemas nacionais de inovação são consolidados e podem contribuir para o incremento da competitividade tecnológica local.
A Guerra Tecnológica e as estratégias nas diversas camadas da Indústria 4.0
A estratégia chinesa de busca pela construção de uma Superportência Tecnológica em 2049 começou a ter contornos mais claros a partir de meados da década passada. Com a crise de 2008 e com o acirramento da concorrência internacional os esforços até então incipientes, mudaram de patamar. A partir de então, Diegues e Roselino mostram que a política industrial chinesa tem se articulado cada vez mais aos objetivos geopolíticos do Estado Chinês.
É exatamente nesse cenário de reforço das políticas tecno-nacionalistas que os autores propõem que deve ser entendida a estratégia chinesa de incentivo às tecnologias da indústria 4.0. Essas podem ser compreendidas a partir de iniciativas recentes como o Made in China 2025, a Internet Plus Strategy e o Next Generation Artificial Intelligence Development Plan.
Uma primeira característica que chama a atenção na política industrial e tecnológica chinesa recente é a intensidade do esforço empreendido. Entre 2000 e 2018, os gastos em P&D em relação ao PIB chinês evoluíram de 0,89% para 2,4%, com um crescimento de 275% entre 2007 e 2018. Assim, neste ano os gastos em P&D chineses representaram, em paridade de poder de compra, 95% do volume dos EUA, quase 4 vezes os da Alemanha e 3,2 vezes os gastos japoneses.
Esses gastos têm possibilitado um grande avanço do sistema nacional de inovação em inúmeras dimensões. Especificamente com relação à indústria 4.0, destaca-se a estratégia de estabelecimento de 40 centros nacionais de P&D em tecnologias core da nova revolução industrial em andamento, de 646 projetos pilotos em green manufacturing, 854 em smart manufacturing, 388 em manufacturing & internet integration, entre outros.
Outro ponto importante desta estratégia, segundo os autores, é a disponibilização de uma quantidade substancial de recursos em uma miríade de programas de fomento direto e indireto. Pode-se citar entre as principais iniciativas o National Integrated Circuit Fund (com dotação de 19 bilhões de euros) e o Emerging Industries Investment Funding (5,4 bilhões de euros).
Tais recursos, além de fomentarem o aprendizado tecnológico local, servem como instrumentos de capitalização para as estratégias de empresas locais em busca da aquisição de concorrentes internacionais com o intuito de incorporar tecnologias centrais à indústria 4.0. O caso paradigmático desta estratégia é a aquisição por parte da MIDEA – que já havia comprado a fabricante de condicionadores de ar Springer Carrier – da empresa alemã KUKA, com forte atuação no segmento de robôs industriais.
Por fim, um terceiro eixo das políticas dedicadas à indústria 4.0 tem sido o incentivo por parte do Estado à atuação conjunta entre empresas locais no sentido de fomentar a construção de plataformas tecnológicas que tenham como objetivo criar padrões dominantes nas tecnologias emergentes.
Assim, via coordenação direta do Estado, empresas como Baidu, Alibaba, Tencent, iFlytek, SenseTime, Megvii foram escolhidas como responsáveis pelo desenvolvimento daquelas que se pretendem ser as tecnologias e soluções habilitadoras no avanço da Economia Digital e da Indústria 4.0 na China.
Este grande esforço de construção de uma economia orientada à inovação já tem trazido resultados reconhecidos internacionalmente. Segundo o ranking The Global Unicorn Club da influente plataforma de inteligência de mercado em áreas de alta tecnologia CB Insigths, em julho de 2020 haviam 476 unicorn startups no mundo, das quais 122 eram chinesas – avaliadas em US$ 312 bilhões – e 229 dos EUA – com valor de mercado de US$ 316 bilhões.
Neste contexto, o trabalho de Diegues e Roselino procura analisar em detalhe o avanço tecnológico chinês nas tecnologias da nascente indústria 4.0 a partir de uma segmentação desta em camadas.
Na intepretação dos autores, o segmento da indústria 4.0 no qual a economia chinesa parece ter maior destaque relativo é o de Serviços Inteligentes. A partir da integração entre Inteligência Artificial e Big Data, as empresas chinesas apresentam algumas vantagens relativas às concorrentes internacionais, inclusive americanas.
Essas vantagens decorrem do enorme e pujante mercado doméstico protegido, do gigantesco volume de dados gerados e utilizados para treinamento dos algoritmos de inteligência artificial, das políticas públicas de incentivo à construção de cidades inteligentes e do benefício por parte das empresas locais das externalidades derivadas de suas plataformas tecnológicas.
Dentro dessas plataformas baseadas em serviços inteligentes, o primeiro caso de destaque é o WeChat. Com mais de 900 milhões de usuários, a plataforma permite a integração crescente entre sistemas físicos e virtuais por meio do oferecimento de uma miríade de serviços, os quais tem viabilizado a explosão dos pagamentos virtuais feitos na China – da ordem de 40 vezes o valor realizado nos EUA. Estes serviços, em essência, são virtualmente onipresentes no cotidiano da população chinesa.
Outra iniciativa de destaque é o Alibaba Cloud e suas experiências City Brain e TaoBao Villages. A primeira refere-se aos esforços de desenvolvimento de uma plataforma que permita a construção de cidades inteligentes. Construída a partir de um projeto piloto na cidade sede do Alibaba (Hangzhou), o City Brain permite a digitalização de uma infinidade de serviços públicos no sentido de aumentar a eficiência das cidades e o bem estar da população.
A partir desse projeto piloto, o Alibaba tem se beneficiado da influência chinesa na Ásia e da farta disponibilidade de financiamento doméstico para “empacotar” as tecnologias associadas ao City Brain, de modo a fornecer uma plataforma tecnológica pronta para outras 23 grandes metrópoles asiáticas, como Kuala-Lumpur na Malásia.
Este esforço reforça a disseminação de padrões tecnológicos coordenados por empresas locais e incentiva a internacionalização a reboque de outras empresas chinesas como as fabricantes equipamentos de vigilância via vídeo Hikvision e Dahua, a fabricante de equipamentos de transmissão de dados New H3C Technologies, entre outras.
Outra iniciativa de destaque do Alibaba refere-se às TaoBao Villages. A partir do empacotamento de soluções – de gestão, comercialização, produção etc. – na plataforma Alibaba Cloud, um número crescente de vilas chinesas tem conseguido integrar os produtores locais às plataformas de comercialização do Alibaba.
Utilizando-se de um amplo pacote de serviços baseados em inteligência artificial, os produtores locais conseguem identificar padrões de comportamento dos consumidores de maneira preditiva e assim ajustar sua produção às oscilações do mercado. Deste modo, com agilidade e flexibilidade e o amplo suporte tecnológico oferecido pela plataforma em todas as etapas do processo produtivo, conseguem combinar customização e escala.
Segundo o estudo, estes esforços buscam incentivar o estabelecimento de padrões tecnológicos locais como forma de contornar a dependência por tecnologias externas, tal qual expresso nas versões ainda iniciais do plano China Standards 2035. Entretanto, as pressões dos EUA e de outros países europeus para que seus aliados históricos busquem adotar padrões tecnológicos de suas empresas ao invés daqueles estabelecidos por empresas chinesas – como a HUAWEI – são desafios não desprezíveis a essa estratégia.
Nos segmentos de manufatura inteligente e nas áreas de integração tecnológica que habilitam os sistemas cyber físicos manufatureiros – como robotização, machine learning e impressão aditiva – as empresas chinesas também parecem ter boas possibilidades de desenvolvimento. A existência de um sólido parque produtivo doméstico, de uma vasta e diversificada cadeia de suprimentos e da ampla disponibilidade de crédito barato para investimento nestas tecnologias são elementos que contribuem positivamente.
Entretanto, os autores destacam que a indústria chinesa é bastante heterogênea e apresenta índices de robotização muito menores do que países como Japão, EUA, Alemanha e Coréia do Sul, por exemplo. Ou seja, não é realista esperar em um médio horizonte de tempo, um amplo fenômeno de universalização destas tecnologias no parque produtivo local.
Como tais tecnologias são mais disseminadas em um amplo conjunto de empresas espalhadas por vários países, e devido ao fato de apresentarem uma menor ameaça à hegemonia militar dos EUA, o potencial de conflito nestes segmentos parece ser menor.
É exatamente nos segmentos de infraestrutura tecnológica habilitadora das fábricas e serviços inteligentes (como cloud computing, internet of things, sensorização etc.) que reside o maior potencial de conflito entre EUA e China, com especial destaque para as áreas de nova geração de semicondutores e de telecomunicações 5G.
Tal qual nas demais áreas, as firmas chinesas têm demonstrado uma enorme pujança financeira e tecnológica nestes segmentos, com destaque para Huawei e ZTE e as de internet Alibaba, Baidu e Tencent. No entanto, desde o recrudescimento da guerra tecnológica nos últimos anos, as principais potencias internacionais lideradas pelos EUA tem imposto restrições crescentes à escalada tecnológica das empresas chinesas.
Tal fato, para os autores do estudo, se configura como um importante entrave ao pleno desenvolvimento da indústria 4.0 na China, dada a grande dependência externa nas áreas que habilitam as tecnologias da revolução digital em andamento. Em outras palavras, apesar do grande avanço chinês em áreas mais voltadas à aplicação das soluções da indústria 4.0 – com especial destaque para serviços inteligentes e IA nas camadas de infraestrutura tecnológica a distância chinesa da fronteira ainda não é desprezível.
Neste sentido, a principal fragilidade é a dependência para a importação de semicondutores de alta performance de empresas como TSMC, Qualcomm, Samsung, ARM. Essa dependência tem se tornado ainda mais grave na medida em que os EUA têm imposto seguidas restrições à comercialização a empresas chinesas de produtos e serviços estratégicos que tenham tecnologias americanas embarcadas.
O caso mais emblemático é a recusa da principal fabricante de semicondutores do mundo – a taiwanesa TSMC – em comercializar seus chips de última geração à HUAWEI e a outras empresas chinesas. Tal fato tem barrado, ao menos momentaneamente, o rápido movimento de emparelhamento tecnológico destas empresas até então em curso.
Como forma de tentar contornar estas limitações, vale destacar os vultosos investimentos recentes feitos na principal fabricante chinesa de semicondutores – a SMIC, Semiconductor Manufacturing International Corp – como forma de acelerar seu aprendizado inovativo. Apenas entre maio e julho de 2020, esta recebeu quase US$ 9 bilhões de injeção de recursos de diversos fundos de investimento vinculados ao governo chinês.
Entretanto, apesar dos esforços e do volume gigantesco de recursos, estima-se que a SMIC ainda se encontre cerca de 5 anos atrasada com relação à fronteira tecnológica – ela é capaz de produzir unidades de 14nm enquanto que a TMSC produz unidades de 5nm, e tem um faturamento de cerca de 10% o da TSMC.
Ainda como forma de barrar o avanço tecnológico chinês, destaca-se a proliferação de restrições internacionais à venda de empresas estratégicas locais à concorrentes chinesas (ver também a Carta IEDI n. 1004). São inúmeros os casos neste sentido, com destaque para a proibição por parte do governo alemão da venda da empresa Aixtron, fabricante de máquinas utilizadas no processo produtivo para a manufatura de chips, a um suposto fundo de investimento ligado ao governo chinês.
Não suficiente, empresas centrais na cadeia produtiva da fabricação de semicondutores também têm sido fortemente pressionadas a cancelarem seus contratos comerciais com empresas chinesas. Esse é o caso da ASML, que é a principal empresa responsável pelo desenvolvimento das máquinas de litografia extremamente avançadas que são necessárias para o processo produtivo dos circuitos integrados.
Em outras palavras, é o avanço tecnológico da ASML que dita o ritmo e a intensidade do progresso em virtualmente todos os produtos eletrônicos mais avançados no mundo. Assim, além de serem impedidas de adquirirem os chips já manufaturados, as empresas chinesas tem sido impedidas de adquirirem máquinas que as capacitem a produzirem no futuro tais chips.
Um último ponto de destaque nessa guerra tecnológica é a pressão dos EUA para que seus aliados e países em sua área de influência restrinjam a entrada em seus mercados de empresas chinesas em segmentos estratégicos da indústria 4.0, com destaque para as redes de 5G.
Assim, pode-se concluir que, apesar dos sólidos avanços chineses, em diversos segmentos das tecnologias da indústria 4.0, as restrições recentemente impostas desnudam sua ainda forte dependência indireta das tecnologias de empresas dos EUA, principalmente nas camadas de infraestrutura habilitadora. Essa dependência nos segmentos de semicondutores parece impor restrições e limites à estratégia chinesa de busca por rivalizar com os EUA no paradigma em gestação.
Ao menos no médio prazo, a busca pelo contorno a estas limitações é longe de ser trivial. Entretanto, a política industrial e tecnológica chinesa caracteriza-se há décadas pela grande capacidade de permanente adaptação aos cenários em transformação e, sem dúvida alguma, tem apresentado uma notória efetividade deste então.
Como elemento ainda mais complicador deste cenário, segundo Diegues e Roselino, cabe destacar a grande dependência das empresas de tecnologia americanas do pujante mercado chinês. Ou seja, entender até que ponto esse cerco tecnológico poderá conviver harmonicamente com a acoplagem entre o grande capital americano e a economia chinesa é um desafio para se compreender os próximos desdobramentos desta guerra tecnológica.